ORIGEM DO MAL

- Mas, por que o senhor quer que a gente abata esse aqui também?

A pergunta do capataz era direcionada ao fazendeiro.

- Porque esta noite celebraremos o aniversário do meu filho com uma grande festa, será o maior churrasco que este lugar esquecido por Deus já viu.

- Mas, senhor – tentava argumentar o funcionário – esse animal costumava ser o preferido da saudosa patroa, ela o criou desde "bezerrinho".

- Cuidado com o que você fala, ô Miguel – o rancor e a amargura haviam feito morada no coração e alma do senhor daquelas terras.

Desde que sua esposa falecera, encontrar ânimo para vencer cada dia, se tornara uma tarefa árdua e cada vez mais penosa – faça o que te mando, rapaz, eu quero ver a carne do bicho queimando na brasa esta noite.

No fundo, o capataz sabia que o real desejo do patrão era tentar acabar com a lembrança que sempre o invadia quando olhava para aquele bicho. Encarar o animal trazia o rosto da mulher à sua mente.

O animal, um dos mais belos exemplares de nelore que já passaram por aquele pasto. O pêlo, de tão alvo, chegava a reluzir sob a luz do sol, o porte elegante e majestoso, o destacava entre os demais do rebanho.

- É meu velho, eu fiz o possível para evitar que as coisas chegassem a esse ponto – o capataz alisava o focinho do bicho enquanto falava. A tristeza de seus olhos, parecia revelar a consciência sobre o seu inevitável destino.

Uma pancada violenta atrás da cabeça levou o pesado animal ao chão. Quem o olhasse naquela situação, poderia jurar que clamava por misericórdia, devido a posição na qual se encontrava. Por mais que quisesse atender ao pedido sem palavras, Miguel sabia que não poderia, era sua função obedecer ao chefe. Com o coração partido executou sua missão com a habilidade que lhe era peculiar. Mesmo debaixo de todo aquele sangue, o peão teve a impressão de que a face do animal se contraía, permitindo várias expressões. Dor, medo, e principalmente raiva.

- Desculpe, amigo, eu não tenho medo.

O sangue do animal abatido parecia se acumular sobre o pêlo de sua cabeça. O efeito produzia um contraste nefasto entre o branco reluzente de seu dorso, e a parte manchada pelo líquido que, de forma curiosa e estranha, era muito mais escuro do que escarlate.

A banda tocava alto as canções típicas daquela parte do país. As pessoas dançavam e cantavam. Uma imensa fogueira queimava forte, fazendo estalar os galhos secos em brasa. Num círculo de pedra, ardia também o fogo, mas de forma mais branda, pois o propósito era apenas assar os pedaços suculentos da carne que estava fixada num espeto preso entre duas forquilhas.

Todos se deliciavam com a abundância e variedade de atrativos daquela que, de fato, já poderia ser classificada, como a maior festa da região.

Um vento forte e repentino espalhou pelo gramado um mar de folhas e pequenos galhos, deixando praticamente nuas as árvores que cercavam aquele pedaço da fazenda. Os fios com as gambiarras foram ao chão, e gritos sucessivos foram ouvidos quando um estrondo forte anunciou que o transformador de energia elétrica havia explodido. Um princípio de incêndio teve início no compartimento das máquinas, quase ao mesmo tempo as primeiras gotas da tempestade caíram.

O capataz correu até o local onde o fogo havia se instalado, embora ali mesmo, onde a festa acontecia, as fogueiras se multiplicavam, como se a chuva que caía forte não fosse composta por água, mas por algum tipo de combustível.

A correria e a histeria se espalhavam de forma tão rápida quanto o fogo que a tudo consumia. O aniversariante havia corrido para o único local em que encontrara conforto desde a morte da mãe. E por falar nela, o fazendeiro, ajoelhado no terreno cascalhoso, gritava desesperado, em sua cabeça a voz da morta ecoava, de forma alta e persistente.

“Enquanto eu era viva, você não dava o valor e a atenção que eu merecia. Só vivia para a fazenda, e, agora que estou morta, você resolve acabar com a única coisa que distraía a mim e ao meu filho? Só para esquecer a minha existência? Você vai pagar”.

- Não Maria! Não faça isso comigo, por favor! – As lágrimas de seu choro se mesclavam às águas quentes oriundas do céu. Um ácido não queimaria a sua pele com maior eficiência. Mas não era tudo. Um som que parecia brotar das profundezas do inferno. O toque de um berrante soprado pelas chamas que lá ardiam. Essa foi a sensação que o fazendeiro teve. Um estrondo que fez a terra tremer, a impressão de um estouro jamais visto na fazenda.

O capataz desistira de tentar aplacar o fogo e correra em socorro de sua própria família, e para lá também havia se dirigido o filho do fazendeiro.

Os convidados e o anfitrião, estes não experimentaram semelhante sorte, todos, sem exceção, foram retalhados e pisoteados, enquanto seus corpos queimavam no fogo proporcionado pelo espírito vingativo. Espírito este, que escolhera uma forma irônica de se fazer presente novamente no mundo terreno.

Na pequena casa, afastada do complexo principal da fazenda, permaneciam abraçados o capataz e sua esposa, e as crianças , o filho do casal e o dos patrões. Pela janela da sala, observavam a chuva diminuir de intensidade. Mas, a aflição não diminuía na mesma proporção. Um som característico e conhecido por todos ali, se tornava mais próximo. Nem nos piores pesadelos uma figura tão bizarra poderia habitar. Diante deles, pela abertura da janela, uma enorme cabeça se apresentava. Seus chifres em nada lembravam os que ali deveriam estar, eram maiores, retorcidos. Em sua boca, fileiras de dentes inimagináveis se mostravam, eram afiados e longos, incompatíveis a um ruminante. Olhos vermelhos como brasas se destacavam naquele pêlo extremamente escuro, manchado pelo sangue ressequido e podre que se espalhava por todo o semblante da fera. O corpo continuava alvo, mas a cabeça era negra.

A fera olhava diretamente para eles, soltava uma fumaça espessa enquanto respirava, sua fisionomia mudava de diferentes formas, uma mais aterradora que a outra.

- Não tenham medo, não tenham medo – dizia Miguel – se vocês não sentirem medo da cara dele, nenhum mal ele fará. Não tenham medo.

Repetia baixinho para todos. Quando abriram os olhos, não havia mais nada na janela. Sem esperar, e de forma decidida, o capataz colocou todos na velha caminhonete da fazenda e deixou o lugar, sem nem ao menos levar qualquer objeto ou roupas consigo.

Após o reconhecimento e as investigações, as autoridades constataram que o responsável pela chacina na fazenda seria o capataz chefe, este não fora encontrado entre os mortos, bem como sua família e o filho do dono. Um seqüestro poderia ser caracterizado, e as buscas haviam começado.

A única coisa que não conseguiram explicar, foram as estranhas marcas no chão, como se um rebanho enlouquecido tivesse passado pelo local. Mas nenhuma evidência desse fato fora localizada.

Muito distante dali, uma mulher não consegue contornar o choque que acometera as duas crianças. Não havia lugar para o sono durante as noites, e apenas uma ameaça se fazia útil, ela colocava os dois nos braços e cantarolava: - Boi, boi, boi....

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 02/03/2009
Reeditado em 03/11/2009
Código do texto: T1465192
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