A Carta da Masmorra Assombrada

Quarta-feira, 1 de novembro de 1780

Escrevo esta carta com nada mais que algumas folhas de papel e um velho pedaço de carvão que, na pressa, ainda me lembrei de esconder sob as roupas que vestia. Não sei porque, de toda a barbárie que presenciei, apenas eu sobrevivi e fui trancafiado nesta masmorra... meu destino é incerto e, por isso mesmo, no momento de desespero resolvi iniciar esta carta.

Sem acusação alguma e sem nenhuma explicação, centenas de homens, gigantescos e armados com espadas e tochas invadiram a minha aldeia, matando, na calada da noite, todos os habitantes.

Ainda incerto e desorientado pelos gritos e pelas chamas que começavam a devorar tudo o que havia, fui levado em meio a um mar de sangue e de corpos das pessoas que conheci certa vez até a presença de um homem, que chegava a ser muito maior que seus gigantescos companheiros, e que bradava numa língua que eu desconhecia completamente.

Bradando nesse estranho idioma, o homem gigante pareceu irritar-se e, com um golpe violento de uma bola maciça de ferro fez-me perder os sentidos.

Foi dessa forma que, ao acordar, já me encontrava preso neste tipo de átrio onde a luz do dia não penetra e a umidade é constante.

Para que se tenha idéia desse terrível local, revelo que escrevo muito mais com a ajuda do instinto que com a visão, uma vez que meus olhos, na treva quase completa, não sabem distinguir as palavras que escrevo.

Movimento-me, quase que completamente, pelo tato. Sei que existem grades à minha frente e que estou cercado por trás e pelos flancos por paredes de pedra maciça... aos poucos, na verdade, os olhos começam a se acostumar à pouca luz do ambiente e já posso distinguir algumas formas.

O mau cheiro intenso me revela que outros infelizes passaram por estas paredes: há fezes e restos indistinguíveis amontoados a um dos cantos e me esforço por não pensar nos ratos ou animais peçonhentos que rastejam, nesse exato instante, sobre os meus pés.

O medo que sinto é mistura de todos os piores medos que se pode ter em vida: medo do desconhecido, medo do incerto, medo da escuridão e, principalmente, medo da morte, mas, sobretudo, que morte seria essa? Que tormentos hediondos seriam possíveis a essa gente que eu desconhecia? Não tenho água e não tenho comida... também temo ser esquecido para sempre neste lugar e, simplesmente, definhar com lentidão até a morte... pensei ter ouvido um som estranho... algo como rugidos que me vinham indistintos e fracos. Seriam leões?

Quinta-feira, 2 de novembro de 1780

Se hoje é realmente dia 2, eu não sei... com a falta do sol para me orientar nos dias e nas noites, perdi o senso. Cheguei a dormir por algumas horas e, por esse motivo associei que um dia se passara – talvez menos.

Meu terror da morte por inanição revela-se, afinal, um terror bastante plausível, já que um dia se passou e meus captores não apareceram para me trazer um pedaço de pão sequer.

Tento ocupar a minha mente com tarefas simples e bobas para escapar à loucura que sinto aflorando dentro de minha alma: imagino conjuntos de letras desenhadas na escuridão e organizo estas letras em diversos anagramas. Quando as possibilidades se esgotam, começo novamente, com outras letras.

Novamente ouvi os rugidos, contudo, dessa vez, mais nítidos e claros me pareceram os sons.

Não devem ser leões, pois a estes conheço muito bem. Os rugidos que ouvi eram ritmados, com variações de tom específicas, quase como uma comunicação.

Os guinchos dos ratos são insuportáveis: ouço-os passeando pelos cantos; às vezes, chego a tocá-los.

Uma simples observação que me havia escapado antes é que esta não deve ser, afinal, uma masmorra, pois não ouço os demais prisioneiros... não há gemidos de dor e nem súplicas e, quando chamo, ninguém responde. Ainda não tive sinal de meus captores.

Sexta-feira, 3 de novembro de 1780

Sem comer nem beber há três dias as minas forças começam a esmorecer. Este relato, afinal, deverá ficar incompleto, pois não conseguirei mais manusear o carvão e nem segurar os papeis em breve.

Um desânimo gigantesco me abateu; já não me importa que os ratos vaguem sobre o meu corpo e que construam seus ninhos entre as minhas pernas debilitadas pela fraqueza. Alguns desses animais chegam a escalar as paredes e roçam-me seus corpos fétidos pelos lábios.

É com esforço que escrevo estas últimas linhas, mas sei que o meu tormento ainda se estenderá por outros vários dias, quando, fraco demais, mas ainda vivo, os bichos das trevas deste calabouço começarem a devorar meu corpo, começando, provavelmente, pelos meus pés ou pelos meus olhos...

Balbuciei algumas preces, mas o meu cérebro já não pensa na salvação, apenas na morte.

Adeus...

Sábado, 4 de novembro de 1780

Chegado um certo momento, fechei meus olhos e aguardei a morte e eis que ela respondeu: deitado no piso imundo e fétido, escutei um som estranho, como se uma porta se abrisse ao longe.

Os ratos fugiram, desempoleirando-se de cima de mim e entrando nas tocas encravadas nas pedras.

Sem energias, pude apenas virar a cabeça na direção das grades que sabia estarem à minha frente... o rugido se aproximava.

Notei que a luz do ambiente aumentara um pouco, de forma quase imperceptível. Parou diante das grades uma figura gigantesca que me atirou na cara um naco de carne sangrenta e úmida.

Tossindo muito pela umidade, gritei algumas palavras à figura que me trazia essa comida asquerosa, mas, para minha grande surpresa, fitando a face de meu algoz, reparei que seus grandes olhos vermelhos brilhavam na escuridão como brasas vivas, mostrando os dentes irônicos e desdenhosos, presas brancas e reluzentes faiscaram nas trevas.

Forçando mais os olhos, reparei que aquilo não era um homem... sua estatura era gigantesca, mas as suas mãos se arrastavam pelo chão. O tórax imenso apresentava uma magreza cadavérica; o crânio pequeno, tinha um grande nariz agudo e um tufo de cabelos vermelhos no topo.

A criatura se virou e desapareceu nas trevas.

Não posso descrever o terror que senti então...

Os ratos começaram a se amontoar sobre o meu pedaço de carne... era a minha salvação e não iria permitir que os malditos a tirassem de mim.

Num esforço sobre-humano, com chutes e socos, afugentei os roedores que se aglomeravam em montes que chegavam às centenas e devorei avidamente aquele precioso e imundo alimento.

Foi desta forma que consegui escrever este dia a mais de minha triste vida...

Uma parte de meu ser crê que, talvez, fosse a decisão mais sábia me deixar morrer, mas o instinto me cegou; eu somente comi e garanti, por mais algum tempo, a minha sobrevivência.

Domingo, 5 de novembro de 1780

Faz cinco dias que dura meu cativeiro e, conseqüentemente, meu tormento. O inimigo pior de todo esse horrível instante é a angustia que se aloja e não vai embora. Meu coração já não pode mais desacelerar, tamanho é o medo que sinto...

Uma doença, provavelmente causada por este ar pestilento e esta umidade incessante, começa a se manifestar em enormes crises de uma tosse dolorosa.

Se meus olhos não me enganaram, creio que estou ficando louco, pois, a criatura que surgiu ontem e me deu a carne que salvou-me a vida não poderia ser, de forma alguma, uma entidade humana. A sua respiração era demasiado pesada e a sua constituição física disforme demais.

Repassei na cabeça a fisionomia por inúmeras vezes e concluo que não posso estar enganado; mas, isso não faria sentido... na verdade, de todos esses acontecimentos impossíveis que me sucederam, qual deles faz sentido? Estou preso sem motivo num ambiente de pesadelo, rodeado por ratos e comendo a carne crua como se fosse um animal selvagem... não há sentido.

Busquei nas pedras da parede uma escapatória, mas, embalde. Meu cárcere parece incrustado numa montanha e não me deixa a mínima esperança de fuga. As grades são imensas... não posso parti-las.

Nesse instante cada pensamento que tenho está voltado para uma escapatória, mas sempre me vêm à mente pensamentos de coisas menos importantes, assim como os amores que não vivi e as sementes que não cultivei... sinto arrependimentos ridículos causados pelos bons dias que não desejei e pelas dívidas que não cheguei a quitar... grandes penas.

Segunda-feira, 6 de novembro de 1780

Não me restam mais as mínimas condições mentais para prosseguir este relato... um frio de pavor sacode meu corpo por inteiro e a náusea faz revirar meu estomago em espasmos de dor aguda.

Hoje despertei com o som pesado da respiração de alguém que me observava. Receei muito em abrir os meus olhos, mas, num assomo de coragem, levantei-me.

Beirando o descontrole, constatei que a criatura que me mantém encarcerado, realmente, não é humana... ele me observava como se examinasse um bicho, olhando com curiosidade... devia medir três metros, não tinha os braços musculosos, mas, suas mãos, deformadas, arrastavam-se no chão. O tórax exibia todas as costelas; os olhos grandes, redondos e vermelhos eram a mais absoluta expressão da maldade insana...

Não se podia tratar de uma criatura viva... a coisa exalava um odor pútrido e sua pele descamava-se em diversos pontos, revelando-lhe os músculos e os nervos em decomposição avançada.

Por um instante quase me passou despercebido que estava enxergando com clareza agora, uma vez que a criatura, adentrando o lugar, deixara aberta a porta que, antes, barrava a luz por completo.

Não tenho explicações para esta impossibilidade que se desenhava diante de meus olhos: um morto que caminhava e soltava urros de agonia está me mantendo preso num local desconhecido e por motivos que me são estranhos... Isto seria possível, quem sabe, num pesadelo absurdo, mas, eis- me aqui: vítima de toda essa insânia.

Ao menos, com a entrada da luz, pude reparar, numa ligeira impressão, o feitio do local onde me encontro enclausurado: trata-se de uma espécie de cela que está, na verdade, dentro de uma outra maior... os ratos e as baratas, assim como todas as outras criaturas filhas da escuridão, fugiram apavorados diante do monstro que me observava.

Grandes cipós de musgo se dependuravam pelo teto de pedra, pingando incessantemente em gotas de água... outros fungos e bolores cresciam por toda parte.

O fato mais terrível, contudo, é que neste instante já começo a perder o que me resta de humano... o monstro, atirando-me um novo pedaço de carne, viu quando eu, ensandecido, arranquei grandes bocados com os dentes e mastiguei com prazer...

Mas ainda, meu Deus, com o sangue me escorrendo pelos cantos da boca, apenas depois de matar a minha fome hedionda constatei que devorava as costelas de um ser humano... uma carcaça de onde mutilaram os membros e a cabeça. A náusea e a revolta, revirando-me o estômago, fizeram com que eu vomitasse.

Fiquei, depois, pensando se aquele primeiro pedaço de carne que comi não poderia, também, ser proveniente de um outro ser humano...

Terça-feira, 7 de novembro de 1780

Por inúmeras vezes surpreendi-me pensando em por que eu fui escolhido para este tormento...

não sei a resposta... tudo o que sei é que os demônios me têm por cativo e que meu destino repousa nas suas mãos malignas... Sete dias neste ambiente inóspito foram o bastante para minar a minha saúde e a minha sanidade... meus pulmões ardem pela doença que se adianta neste lugar imundo e infestado de ratos.

Este diário é tudo o que me resta de humano e digno... e não me sai da cabeça que, antes, quando comi a carne em meio à treva, esta carne causou-me um prazer mórbido de saciedade...

Espere... ouço barulhos na fechadura da porta principal... sim! São eles... eles vêm me buscar...

já não há mais tempo... deus tenha piedade de minha alma..........

Henrique de Castro Silva Junior
Enviado por Henrique de Castro Silva Junior em 04/03/2009
Código do texto: T1468886
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