DESEJO MORTAL

Como ele era lindo. Nunca antes, seus olhos de menina ficaram diante de algo tão magnético. A sensação que experimentou fez seu corpo tremer e encheu seu coração com um desejo incontido, irresistível, até mesmo insano. Nem na ocasião de seu primeiro beijo sentira tamanha euforia e ansiedade.

Suavidade, mas com ação impactante. Presença marcante, mesmo estando inerte. A distância entre ambos lhe causava dor, e esta se somava à falta de ar que lhe acometia ao vislumbrar o vermelho que fazia seus olhos saltarem das órbitas. Ela jurava poder ouvir as batidas aceleradas de seu coração transtornado.

- Clara!

Mas, o chamado de sua mãe fazia concorrência pela sua atenção.

- Desça para jantar, menina!

Retirada de seus devaneios, a adolescente de dezesseis anos se levantou da cama e lamentou pelas limitações que a vida lhe impunha. Seus suspiros ficaram restritos às paredes de seu quarto, pois ela reconhecia que suas necessidades eram sempre supridas, embora seus desejos, obrigatoriamente, eram postos de lado em favor destas.

A família da menina se restringia a ela e a mãe, e esta, trabalhava duro para garantir que a filha tivesse maiores possibilidades na vida, visto que, ela mesma, nunca fora preparada para agarrar as raras chances que foram postas diante dela.

Clara recebia alimentação, roupas e lazer, sem grandes extravagâncias, era verdade, mas estudava em um dos melhores colégios da região. A mãe fazia questão absoluta de colocar a educação da menina como prioridade.

No entanto, era ignorado pela mãe o fato de que tal atitude, colocar a filha em um ambiente tão diferente de sua realidade, poderia causar certos transtornos no convívio social de Clara.

A menina, não raramente, sofria com o deboche e o escárnio dos demais colegas de escola. Geralmente, ela procurava se isolar em seu próprio mundo, mas, no fundo de sua alma desejava, de forma ardente, pertencer àquele círculo.

Foi durante um dos freqüentes passeios solitários, que ela o viu pela primeira vez. No fim daquele corredor, no andar térreo do shopping, naquela loja minúscula e mal localizada. Mesmo esquecido no canto escuro e empoeirado, com todas aquelas caixas diante dele, mesmo assim ele se destacava. Reluzente e poderoso! Brilhante e cativante! Lágrimas verteram de seus olhos quando a atendente da loja de roupas usadas lhe disse o valor. O que a mãe lhe dera, seria suficiente apenas para o sorvete de sempre.

Clara visitava a pequena loja todos os dias. Permaneceu nesta rotina rigorosa durante algumas semanas. Seu sonho não demonstrava possibilidades de se tornar real, mediante os poucos recursos e as prioridades que a mãe impunha.

Na loja, a senhora de rugas profundas e com o semblante cansado, já havia presenciado cenas como aquela, inúmeras vezes em sua longa vida. Já havia perdido a conta de quantos rostos deslumbrados, como o de Clara, se renderam àqueles mesmos encantos.

A mãe perguntava pela segunda vez.

- Já terminou, filha?

Clara, desperta das lembranças, respondeu.

- Sim, mãe. Estava delicioso como sempre.

- Você não vai à festa com as suas amigas?

- Não, prefiro dar uma volta sozinha. Minha cabeça não está para festas.

Na verdade, o que mais ela queria era ir a tal festa. Mas, a última experiência que tivera não fora a das melhores. Ela tinha um destino certo na cabeça. Precisava vê-lo, admirá-lo ao menos, talvez a simples visão de tamanha beleza aplacasse as amarguras de seu coração.

Desceu as escadas, percorreu o corredor e entrou na loja, como sempre. Gritou e seus gritos não passaram imperceptíveis no interior da loja vazia. A mulher de pele enrugada sabia o motivo de tal desespero, ele não estava lá. Nem mesmo o manequim plástico, o qual ele costumava revestir.

Clara não pediu explicações. Simplesmente abandonou o local, sendo seguida pelos olhos tristes da senhora, que balançava a cabeça em negativa, como se lamentasse profundamente pela situação.

A menina correu apressada pelas ruas escuras daquele início de noite. Parou no ponto de ônibus, o qual estava deserto. Tomou lugar no assento plástico, não conseguia conter o choro. Soluçava enquanto as lágrimas encharcavam a pele de seu rosto juvenil, o qual fora tomado por uma coloração avermelhada devido ao fato.

Seus olhos úmidos e irritados não puderam acreditar no que viram. Apesar de estar coberto por um revestimento plástico e preso a um cabide, era ele, com toda certeza, ela sabia, seu coração sentia. O braço de uma desconhecida o trazia, como um adereço irrelevante. Como era possível aquela mulher não demonstrar o devido respeito e valor a tamanha preciosidade? Clara não entendia, achava um absurdo que beirava a loucura tal atitude da estranha.

Clara se levantou, mas antes que pudesse abrir a boca para produzir qualquer palavra, a mulher a interrompeu.

- Sei o que você deseja, menina.

A garota olhou fixamente para o rosto belo da mulher de cabelos loiros e elegantemente vestida.

- Estou aqui para ajudá-la – continuou.

Clara esticou os braços para alcançar o que a mulher trazia, mas fora impedida pela negativa desta.

- Calma, menina. Tudo tem seu preço.

- Mas, eu não tenho dinheiro.

- Não quero dinheiro. Também não será necessário que você mate, roube ou faça mal a alguém.

- Como assim?

- Só preciso que você faça algo para mim. Algo que só depende de você.

- E o que seria?

- Espere. Primeiro me diga uma coisa. Você deseja mais do que tudo ir àquela festa de uma forma que as outras meninas não possam menosprezá-la, não é? E acha que ele pode ser o instrumento que te fará ser notada e admirada, estou certa?

- Sim – diante de tais ponderações, a menina não poderia conflitar.

- Então façamos assim, pegue-o, vá a festa, mas amanhã, neste mesmo horário, vá até a loja e devolva-o, eu estarei te esperando para conversarmos. Certo?

Clara apenas concordou com a cabeça, tomou o embrulho das mãos da mulher e correu. Não quis esperar pelo ônibus, sua felicidade não poderia ficar contida, ela queria seguir livre, mostrar para todo mundo que os sonhos podem se realizar. Sorria da forma mais plena do mundo.

Contornava os postes. Abraçava as árvores. Seguia feliz para casa, a fim de aprontar-se para o momento mais feliz de sua vida.

A noite corria perfeita para a menina. Estava mais linda do que sonhara em seus melhores pensamentos. Sentia-se poderosa. Irresistível. Atraía olhares de cobiça por parte dos garotos, e era motivo de inveja pelas demais meninas. Estava no topo do mundo, num verdadeiro conto de fadas.

Sorriu e dançou. Abraçou a felicidade e aproveitou o momento, da forma mais intensa que pôde.

- Clara, desça minha filha, o jantar está pronto.

A menina desceu as escadas, como fazia todos os dias, mas a última semana mudara o seu modo de vida e o fato fora notado.

- O que há com você, Clarinha? Você tem andado tão distante nos últimos dias?

- Não é nada, mamãe, talvez eu esteja crescendo, talvez eu esteja mudando...

As palavras da menina foram ditas de uma forma seca, um sorriso cínico pôde ser notado num dos cantos de sua boca. A mãe concordava, balançando a cabeça afirmativamente. Mas, o que ela não sabia, era que, de fato, a menina havia mudado.

Clara não conseguira devolver o vestido como havia sido acordado, não tivera força de vontade suficiente para isso. E ela não sabia que era exatamente tal atitude que a mulher de cabelos loiros esperava. A mulher que tivera sua alma aprisionada no manequim que apresentava o vestido, há muito tempo atrás, vítima da mesma cobiça de Clara, esperava a chance de passar adiante a sua maldição. Agora, ela enxergava através dos olhos da menina, uma alma sofrida, em um corpo novo.

E Clara, cuja alma estava agora aprisionada no corpo plástico, esperava por alguém que fosse influenciável o bastante, para sucumbir perante o magnetismo do vestido que tanto desejara e que agora revestia o seu corpo imóvel. Como ela desejava se livrar do vestido. Como ela queria voltar a ser livre.

A sineta da porta da loja tocou, alguém entrava. Os olhos da senhora de rosto cansado, fitaram o semblante da mulher de vestes finas. Ela conhecia aquela expressão. Ela sabia reconhecer uma nova vítima do desejo.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 29/03/2009
Reeditado em 04/11/2009
Código do texto: T1511621
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