A NAVALHA DO BARBEIRO

Quinze minutos. Exatos quinze minutos. Esse foi o tempo que passou desde que morri. Não morri simplesmente, o incomum sempre me acompanhou durante toda a minha vida e não seria agora, na hora de minha morte, que seria diferente. Na verdade, eu fui assassinado. Também não se tratou de um assassinato comum, o trabalho foi realizado através das mãos de uma pessoa que eu costumava chamar de amigo. Alguém que me acompanhou durante muitos anos, na ingrata missão de ser um policial.

Meu amigo, o dito assassino, já estava aposentado dos atributos da lei na ocasião. Ocupava o tempo com um novo ofício, ganhava alguns trocados exercendo a nobre arte atribuída aos barbeiros. Isso mesmo, aparava os cabelos e deslizava a navalha afiada nos rostos revestidos pela espuma de suave fragrância de menta.

Pelas circunstâncias do destino, sucumbi exatamente desta forma, tive a garganta cortava pela lâmina manuseada pelo meu amigo.

Obviamente não se tratou de uma morte gratuita, uma execução sumária, longe disso. Meu algoz tivera suas razões, nada nobres é fato, o motivo que o conduziu a praticar o crime fora o simples fato de minhas investigações, sobre a série de crimes hediondos cometidos na cidade, terem apontado para seu ambiente de trabalho. A barbearia.

Além de ceifar a minha vida, o meu ex-colega policial, também matou o seu próprio ajudante, na mesma noite. Seu medo atual se resume a uma testemunha. Uma mulher que conseguira escapar com vida de seu ataque e que, supostamente, ostenta a capacidade de poder reconhecê-lo.

Para infortúnio desta mulher, o transtornado barbeiro segue, neste exato momento, em seu encalço. Isso porque, de forma astuta, ele se apoderou de informações sigilosas que estavam em meu poder.

Mesmo protegida, nossa testemunha não está a salvo. O fator surpresa está ao lado do assassino e, para piorar a situação, ele é um exímio conhecedor do modus operandi de nossa corporação.

A casa não demonstra nada em especial. Ela se mistura a tantas outras naquele quarteirão residencial. Diferente mesmo, só o fato daquele homem, um policial à paisana, estar posicionado em um banco no extenso jardim, oculto pelas árvores frutíferas que se espalham na entrada do esconderijo.

Palhares, o barbeiro, já havia notado a sua presença. Ele sabia que apenas dois homens faziam a segurança. O outro, no caso eu, estava abatido no chão da barbearia. Desta forma, ele teria apenas aquele sujeito no caminho até a testemunha.

Mas, mesmo assim, ele evitaria ao máximo o conflito direto com o homem da lei, nunca era aconselhável assassinar um policial, e ele já havia cometido este tipo de crime naquela noite.

Contornou a casa em absoluto silêncio, o tempo não apagou as habilidades que o acompanharam durante toda a vida. Uma chave mestra permitiu o desejado clique, um passaporte rumo ao seu objetivo.

Passos calculados com maestria e precisão. Tornara-se um perito na arte de matar. Desde que se aposentara, nunca mais sentira desejo em manusear novamente uma arma de fogo, preferia se deliciar com o sofrimento de suas vítimas, sentir o sangue escorrendo em suas mãos, riscar a delicada carne das mulheres com a lâmina de sua navalha. No entanto, aquela noite se mostrara diferente, já dera cabo do seu ajudante, utilizando para isso a minha arma, o instrumento de trabalho de seu antigo colega da lei.

A situação pedira, não fora um ato premeditado. Agora, via-se novamente com a necessidade de apertar o gatilho, apenas mais uma vez, pensava ele. Precisava executá-la de uma forma rápida e simples, o silenciador acoplado à pistola viria a ser útil naquela empreitada.

Chegou ao final do corredor, seus olhos vislumbraram a silhueta da mulher, de forma estranha seu rosto não lhe soava familiar. Ela estava sentada no sofá, vidrada nas imagens da televisão, assistia com especial interesse ao musical de terror estrelado por Johnny Depp, estava totalmente alheia ao perigo que lhe rondava.

Palhares apontou a pistola para a nuca da mulher e, sem hesitar um segundo, apertou o gatilho. Um estampido seco e o corpo da mulher pendeu sobre o braço do sofá. Missão cumprida.

Sem perder tempo, o barbeiro retornou pelo mesmo caminho, percorrendo o corredor de forma mais acelerada desta vez. Cruzou a cozinha, abriu a porta e deparou-se com um pesadelo. Não tenho palavras para descrever o prazer que senti ao vê-lo diante de mim, sua fisionomia desesperada perante alguém que retornara da morte.

- Surpreso em me ver? – Perguntei de forma debochada.

Como resposta obtive apenas a mão enlouquecida de Palhares a apertar o gatilho de forma repetida. A arma produzia apenas um inofensivo ruído, nenhuma munição saía do cano.

- Agora chega – disse a ele de forma incisiva, apontando-lhe o cano de um revólver calibre trinta e oito – esse aqui dispara, posso te garantir.

- Como...

- Como foi que te enganamos, Palhares? – Interrompi.

A essa altura a casa já estava cercada por policiais, seu antigo ajudante, o qual também deveria estar morto, se aproximou de onde estávamos.

- Simples. Na verdade, desde o início, suspeitávamos de você. Meu amigo Ricardo – apontei para o ajudante da barbearia – nos ajudou e muito, para que tudo fosse possível.

- Não entendo...

- Nunca houve uma testemunha. Nós o fizemos acreditar nisso para atraí-lo. Sabíamos que você tentaria matar alguém que pudesse reconhecê-lo, assinando desta forma a sua culpa.

- Mas, eu matei vocês dois.

- Não me faça rir. Eu apenas aproveitei de sua distração com o Ricardo, para substituir a navalha, a qual você fazia a minha barba, por uma outra, especialmente confeccionada, a lâmina seria inútil.

Seu ajudante nos forneceu uma das suas como molde, até o peso e as ranhuras são iguais. Quando você aplicou o golpe, só precisei levar a mão à garganta e pressionar o invólucro com sangue falso e simular o ferimento fatal. Confesso que o golpe imprevisto que você me aplicou com aquela bengala pontiaguda produziu um ferimento de verdade, mas nada que pudesse me levar à morte.

- Evidentemente calculamos que você utilizaria a minha arma para atentar contra a vida de Ricardo, por isso, tratamos de substituí-la por uma que fizesse apenas barulho, com um silenciador para você não perceber a diferença, afinal, você é bem familiarizado com o assunto. Você foi seguido e monitorado o tempo todo, para impedir que fizesse uso de outra arma ou que utilizasse outro método contra a nossa atriz.

Nesse momento a moça atravessou o quintal amparada por um dos policiais.

- Você caiu como um pato. Todo o momento em que você permaneceu dentro da casa, estava sendo acompanhado pelas lentes de um atirador de elite. Um ponto eletrônico dava as coordenadas para a garota, sua suposta vítima. Tudo devidamente sincronizado.

Você deve estar se perguntando por qual motivo não demos o flagrante quando você nos atacou na barbearia. Simples, você seria acusado pela tentativa de assassinato de apenas duas pessoas, mas, atacando uma possível testemunha, você torna-se apto a responder por todos os crimes que cometeu.

O barbeiro foi levado algemado rumo à delegacia. Toda a imprensa, que a essa altura já estava no local, seguiu em comboio para lá.

Ricardo, o ajudante, foi o único que ficou no local. Ainda estava atordoado com tudo aquilo. Um par de olhos brilhantes chamou sua atenção. Era um gato que rondava as latas de lixo. O rapaz lhe estendeu a mão para um afago, tão logo o animal se aproximou, fora agarrado com fúria. Fazendo uso de uma lâmina afiada, Ricardo fatiou a carne do pobre gato, manchando o gramado com o seu sangue.

O aprendiz de barbeiro limpou a navalha em um lenço que trazia no bolso. Olhou para o sobretudo e o chapéu estendidos no chão, foram jogados ali pelo seu antigo patrão no momento da prisão. Aquela era a marca pessoal, o uniforme do assassino. Ricardo recolheu ambos e os experimentou. Sentia-se pronto para continuar aquele legado. Ele sempre quisera aquela função, por isso havia colaborado e enganado a todos.

Já tomado pelo espírito assassino, desceu calmamente a rua, assobiando e torcendo para encontrar um cliente que se encaixasse no perfil indicado aos seus serviços.

Vista por aquele ângulo, com a luz da lua incidindo sobre ela, a moça parada no ponto de ônibus lhe pareceu bastante atraente.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 06/04/2009
Reeditado em 17/11/2009
Código do texto: T1525541
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