CRIATURAS DA NOITE

Só pode ser brincadeira, meu relógio deve estar mentindo para mim. Trinta minutos? É esse o tempo que se passou desde que eu caí nesse maldito buraco? Não pode ser. Parece que estou aqui há horas...

Não posso desanimar agora, não agora, afinal, quem sabe eles não venham a me encontrar aqui? Sim, quem sabe não sou contemplado com a sorte que muitos não tiveram...

Quando acordei hoje, não poderia imaginar o que a noite me reservaria, na verdade, acho que ninguém aqui no bairro poderia imaginar. Aliás, será que isso ocorreu só aqui no bairro? E a cidade? O país? Meu Deus, como será que está o mundo? Eu queria ter a certeza de que as luzes do astro rei pudessem ter a força necessária para levar esse mar de trevas que se abateu sob as nossas cabeças.

Minha perna dói, acho que a quebrei na queda, a visão que tenho quando olho para cima me preocupa. As nuanças avermelhadas que enfeitam o céu me trazem receio, me lembram do sangue que vi tão próximo a mim, faz tão pouco tempo, mas parece que estou aqui há uma eternidade. Isso só me faz lembrar daqueles momentos terríveis.

Começou com um estrondo, em seguida veio o black out, achei que fosse apenas a incompetência dos serviços que pagamos tão alto.

Quisera eu que fosse. Logo ouvi uma gritaria se espalhando, as vozes vinham de todos os lados, barulho de vidros sendo quebrados, o som de colisão de automóveis. Olhei pela janela, moro no terceiro andar de um prédio, e a visão que tive preencheu-me de pânico em todos os aspectos. O caos havia se instalado em meio àquela escuridão total.

Corri em direção ao aparelho telefônico, mudo. Tentei o celular, sem sinal. Voltei a olhar através da janela, tive a sensação de que meus olhos me pregavam uma peça, figuras que eu não consegui precisar o que eram saltavam sobre as pessoas que corriam e gritavam, todas tomadas pelo mais profundo desespero. O que seria aquilo?

Ouvi passos no corredor, coisas quebrando e mais gritos no apartamento vizinho, decidi não esperar mais, corri até a gaveta da cômoda no meu quarto, não sem antes tropeçar na mesa de centro, jogando vários objetos ao chão. Alcancei a pistola e a lanterna, sem pilhas. Não adianta, eu precisava sair dali o mais rápido possível.

Algo se chocava contra a minha porta, insistia em vencer o obstáculo a qualquer custo, executava golpes repetidos contra a folha de madeira. Mesmo armado, eu não queria esperar que entrasse, resolvi sair pela janela. Minha intenção era me pendurar pela grade e alcançar a varanda vizinha e, de lá, passar para a próxima, até a garagem.

Coloquei a arma na cintura, presa no jeans que eu usava, contornei a grade de alumínio, agarrei firme a base e deixei a gravidade fazer o resto. Era bem mais alto do que eu imaginava, me faltava a coragem para abrir as mãos. Pelo som que notei, deduzi que a porta de entrada teria vindo abaixo, algo se movia dentro do apartamento. Olhei para baixo, a visão poderia não ser convidativa, mas ao sentir uma gosma cair sobre a minha cabeça, pude perceber que seria infinitamente melhor do que aquilo que me aguardava se ali ficasse.

Abri as mãos, mas não tive forças para fazer o mesmo com os olhos, caí sobre as grades da varanda logo abaixo, com o meu peso estas vieram a ceder, me agarrei como pude ao parapeito, mas despenquei logo em seguida, rumo ao primeiro andar. Caí no piso revestido por azulejos, um corte se abrira em minhas costas, proveniente do choque com o alumínio. Uma dor imensa me consumia, mas não havia tempo para refletir sobre ela, pois aquilo que me olhava do meu apartamento havia desaparecido, o que só poderia significar que ele estaria vindo em meu encalço.

Saltei até o gramado, mesmo sofrendo com a dor lancinante, executei um rolamento perfeito, as aulas de judô tiveram sua utilidade.

Fiz uso de minha pernas como nunca imaginei ser capaz de fazer, os gritos no lado de fora eram argumentos mais do que suficientes para tal, olhei para trás, nada me seguia. Entrei na garagem, só havia o meu carro, muitos deveriam ter escapado, era um bom sinal. A chave presa no jeans fora, de fato, um golpe de sorte, pois no meio daquela confusão, eu havia esquecido completamente deste detalhe.

Posicionei a chave no local a ela destinado, mas tive a atenção desviada, aquela incômoda sensação de estar sendo observado me invadiu. Mesmo não querendo, fui virando lentamente a cabeça para o lado, minhas pernas tremiam, o coração estava disparado, um filete de suor frio escorria pelo meu rosto, o breu era absoluto, a única coisa que consegui identificar foi aquele par de olhos. Duas esferas amareladas boiando no meio da escuridão total.

Torci para ser rápido o suficiente, saquei a arma e disparei, a coisa saltou em minha direção, o projétil o atingiu em cheio, visto que ele tombou bem próximo de onde eu estava, cheguei a sentir o seu hálito quente e fétido.

Entrei na pick up e dei a partida no motor, as grandes rodas do carro esmagaram a carcaça caída. Acelerei, o portão da garagem estava destruído, subi a rampa e ganhei as ruas. Estas pareciam uma sucursal do inferno, as trevas dominavam todo o lugar, veículos, lojas e casas em chamas, pessoas em histérica correria. Vultos escuros surgiam em toda parte, as luzes dos faróis eram incapazes de focalizá-los, pois estes saltavam incessantemente, sem guardar posição.

Vários homens faziam uso de armas atirando para todos os lados, atingindo tanto as criaturas, quanto inocentes incautos. Avistei viaturas da polícia no final da minha rua, faziam uma barricada em frente ao hospital municipal. Vários carros aglomeravam-se naquela direção, seria impossível seguir adiante.

Olhei pelo retrovisor, aqueles malditos pontos amarelos vinham saltando atrás de mim, engatei a marcha a ré e fui de encontro a eles. Senti o estrondo de vários sendo esmagados, executei uma manobra arriscada e posicionei o veículo no sentido contrário da rua, no que seria a contramão normalmente, mas essa não era uma noite normal.

Joguei a frente do carro contra um bando deles, os faróis foram quebrados com o choque, senti passos no teto da cabine, empunhei a pistola e disparei produzindo alguns furos na carroceria. Não foram suficientes, eu não conseguia enxergar o que estava à minha frente, mas pude perceber a ação contínua das criaturas, pisei mais forte com o meu pé direito, conforme o carro ganhava velocidade e espaço, mais alvos eu atingia, o líquido vermelho manchava o pára-brisas, eu torcia para ser somente fruto daqueles odiosos seres, mas no fundo de minha alma, a incerteza rondava.

Fazendo uso da força do motor e do quebra-mato, eu segui abrindo caminho por entre as ruas, ignorando completamente os outros veículos abandonados ali no meio.

Quando achei que havia deixado o caos para trás, senti o chão faltar, a pick up saiu da pista asfaltada, culpa da completa escuridão, e despencou num barranco íngreme, derrubando bananeira e arbustos, a mim, só restava rezar. Minha cabeça chocou-se contra o vidro à minha frente, resultado da colisão com uma árvore. Eu deveria estar naquele vestígio de Mata Atlântica que circundava o bairro. A dor e o sangue que escorria pela minha testa fazia, agora, companhia a que eu já sentia nas costas. Desci no veículo usando a luz de um isqueiro para me guiar. Eu olhava para o alto e notava a fumaça causada pelo fogo atravessar a noite e ganhar os céus, meu bairro estava arruinado.

Prendi a respiração quando percebi a vegetação próxima a mim se mexer de forma suspeita, encostei em uma árvore e estiquei o braço esquerdo para frente, utilizando a tênue luminosidade para aguçar a visão.

Minha mão apertava firmemente o punho da pistola. Algo se arrastava diante de mim, ao menor sinal eu atiraria, um leve brilho cruzou rápido os arbustos, mas antes que eu pudesse agir, senti dentes finos e afiados cravarem-se no meu ombro. Gritei e minha voz ecoou através da mata, o brilho que eu havia visto saltou sobre mim, agarrando-se ao braço que segurava o isqueiro.

Não pensei, agi por instinto, encostei o cano da arma na criatura e apertei o gatilho, sem levar em consideração se poderia atingir o meu próprio braço ou não. Partes do bicho voaram para os lados, sem que eu fosse atingido, para minha sorte. Agarrei o que ainda estava preso, e este era revestido por uma pele espinhosa, mesmo ferindo a mão, não hesitei em segurá-lo com vontade. Puxei-o com toda a força que eu tinha, uma parte de meus tecidos veio junto, atrelado aos seus dentes.

Investi contra ele mais munição da arma. Ajoelhei-me no terreno barrento e comecei a chorar, não somente pela dor física, mas pelo conjunto da situação, pela sensação de fragilidade.

Mas, eu não poderia ficar parado ali, já não era possível distinguir a realidade entre o que meus ouvidos percebiam e o que a minha mente imaginava, na dúvida, coloquei-me a correr de forma enlouquecida pela mata, eu sentia que algo me perseguia.

Quedas, tropeços, e açoites efetuados pelos galhos espalhados pelo caminho, tudo isso dificultava a minha situação, eu só não contava com o que veio a seguir.

Despenquei, uma queda espetacular no vazio, um buraco no meio do chão, estreito, fundo, cheio de pedras no final. Acho que fraturei a perna.

Agora estou aqui, literalmente no fundo do poço. A luz do isqueiro começa a fraquejar. Disponho de apenas mais uma bala na arma, não a utilizarei em vão. Prometi a mim mesmo, não serei devorado vivo, se existe uma forma pior de morrer, eu desconheço. Se aquelas criaturas estiverem atrás de mim, e não for possível resistir, esse projétil estará destinado a ser o instrumento de um ato final.

O céu continua com a tonalidade rubra, não consigo para de olhar para cima, não posso entregar os pontos, assim que amanhecer tudo ficará bem, tudo ficará...

Não, não pode ser, esses olhos amarelos novamente, não. Ele vai descer até aqui...o que vou fazer? Sinto o seu apetite insaciável diante de mim...uma bala, uma bala...meia-noite e trinta minutos...o que fazer?

Muitas coisas podem acontecer na noite...um disparo foi ouvido.

* Réplica dos meus amigos e escritores:

Isak Damasio

Álvaro Luís

http://www.recantodasletras.com.br/contosinsolitos/1538044

Suzana Barbi

Josadarck

Maith

http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/1538980

Fábio Codonho

http://www.recantodasletras.com.br/contos/1539203

Michele CM

http://www.recantodasletras.com.br/contossurreais/1540521

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 13/04/2009
Reeditado em 07/01/2010
Código do texto: T1537076
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