Um conto amazônico - A lenda do Mapinguari

- Cauã, entra pra dentro menino! – berrou a mulher preocupada, da janela da casa.

Era uma casinha de madeira e palha caindo aos pedaços. Isolada na imensidão da floresta Amazônica, entre milhões de árvores que encobriam a maior parte da luz do luar. Fazendo a noite parecer duas vezes mais tenebrosa do que o normal.

- Cauã!

A mulher apareceu na porta, carregando uma pequena criança no colo e segurando um lampião.

A mãe de Cauã era uma mulher bem morena. Com longos cabelos lisos bastante negros, ela não negava sua descendência indígena.

- Cauã! – chamou novamente, e sua voz ecoou pelo breu da floresta deserta.

Ela caminhou tropeçando por entre as raízes mortas no chão. A luz de seu lampião era a única fonte de iluminação do local. O silêncio se fez novamente e ouviu-se o cri-cri incessante dos grilos no matagal. O pio agourento de alguns pássaros e o que pareceu um silvo de serpente. No seu colo, o bebê parecia estar dormindo.

Agora ela seguia por uma trilha, parecia ao mesmo tempo aflita e assustada. Então, aconteceu tudo muito rápido:

Barulho de galhos quebrando, passos corridos, e uma saraivada de morcegos disparou floresta adentro. Suando frio, ela pôde jurar ter visto um borrão vermelho.

Em seguida um ruído de galopes preencheu seus ouvidos e a mulher suspirou aliviada, indo de encontro ao homem que chegava montado num cavalo. Ao contrário da mulher, ele era muito branco.

- Graças ao meu bom Deus! Evaldo, Cauã desapareceu!

- Mas outra vez? – o homem descia do cavalo, amarrando uma corda na sela.

- O menino tava dentro de casa sozinho, ora... Eu deixei ele sair pra brincar um bocadinho... Mas quando eu fui chamar ele pra janta, ele havia de ter sumido...

- Eu te disse pra não deixar o moleque sair sozinho pro meio desse matagal! Sabe quanto de bicho tem por aí? Hãm? Tem até o que nunca se viu! – ele lançou um olhar desconfiado à floresta escura ao redor.

- Ele nunca demora tanto assim, Evaldo! Eu tô com medo.

- Eu vou procurar ele. Você fica dentro de casa com a neném.

Evaldo amarrou o cavalo num tronco de árvore e pegou o lampião da mão da mulher.

Juntos, seguiram pela trilha de volta ao casebre. A esposa já ia entrando em casa com a criança no colo, quando a voz do marido lhe deu um susto.

- Espera, Ceci, não entra!

A mulher ficou parada na porta. Evaldo se aproximou, examinando marcas no chão, que Ceci logo reconheceu como pegadas - saindo de dentro da casa.

- Que bicho saiu daí de dentro?

- Não saiu... – Evaldo segurou a porta devagar e fechou – Entrou.

Ela o olhou confusa e assustada, e ambos ouviram o estrondoso barulho de panelas sendo jogadas com força no chão.

Ceci ficou paralisada, se agarrando a filha, enquanto Evaldo deu a volta e espiou por cima da janela. O susto foi tão grande que ele caiu sentado de costas no chão. Levantando-se depressa e pegando a criança do colo da esposa.

- Pega o lampião e corre.

Ela obedeceu, pegando o lampião caído no chão e correndo no encalço do marido que se atirou floresta adentro.

- Pelo amor de Deus, Evaldo, o que era aquilo?

Evaldo não respondeu, apenas correu sem rumo, com a filha no colo, pulando os galhos e raízes secas que entupiam o caminho. A mulher vinha atrás, em estado de prantos.

- O Cauã tá sozinho, Evaldo! O Cauã vai voltar lá! Deus tenha misericórdia do meu menino! – e ela sentou ofegante embaixo de uma árvore, fazendo uma oração, as lágrimas escorrendo pelo rosto.

Quando Evaldo percebeu que ela tinha ficado pra trás, voltou impaciente, puxando-a pela mão.

- Vamos, mulher! Vamos! – era visível seu temor.

- Mas o que era aquilo? Meu Deus! Era uma onça?

- Não é onça coisa nenhuma! É o bicho ruim, Ceci! Vamos pra aldeia! Depressa!

Ela se levantou e então os dois ficaram quietos.

- Shhh... – ele fez sinal pra ela se calar, em seu colo a neném começava a chorar.

Um barulho de passos ecoou pelo caminho de onde tinham vindo.

- E se for o Cauã? – sussurrou a mulher.

- Shhh!

Os dois se calaram, mas a neném não. Agora ela berrava escandalosa, se contorcendo no colo do pai, que tampava sua boca com a enorme mão suada.

Estava escuro demais para ver o que estava se aproximando e a luz do lampião estava a um triz de se apagar, mesmo assim denunciava a posição deles.

Ouviram uma espécie de grunhido diabólico, que lembrava a risada de uma hiena. O homem abraçou a mulher e se afastaram de costas, apreensivos para o que seus olhos pudessem encontrar. Um borrão vermelho passou por entre os galhos e Ceci o reconheceu de algum lugar.

Silêncio.

A neném resmungou, a mão do pai a apertou e ela foi impedida de chorar.

Foi quando uma criatura medonha surgiu de dentro do matagal. Parecia um bicho preguiça gigante. Era grande. Enorme. Duas vezes maior que um homem normal. Seus pêlos muito vermelhos. Seus pés eram virados ao contrário. Suas mãos dotadas de longas garras afiadas. E sua pele era semelhante à de um crocodilo.

Por muito tempo contado como uma lenda entre os índios. O Mapinguari era real.

Ceci agarrou a cintura do marido e Evaldo apertou a filha com força total, rezando pra ela não chorar.

O monstro soltou uma respiração rouca e passou direto, parecendo não vê-los escondidos ali.

- Ele se foi... – sussurrou o pai, enfim tirando a mão do rosto da filha.

Ceci apenas chorava, apavorada demais para dizer algo.

- Era ele, não era? O caramunhão... – Evaldo estremeceu ao falar. – Mapinguari... – sussurrou muito baixo.

A neném estava muito quieta. Quieta até demais. Seus olhinhos estavam fechados e ela parecia sonhar, mas não respirava. Evaldo sentiu um soco de gelo lhe arrancar as entranhas. Sacudiu a filha devagar. A cabecinha caiu. Leve. Imóvel. Sem vida.

- Marié... – o pai abriu os olhinhos da menina e eles o miraram com a inigualável frieza do olhar da morte. – Marié!

O homem se ajoelhou no chão, começando a berrar. Não se importava com a besta que por ali rondava, não se importava com nada, aquela dor era pior.

Ceci segurou o cadáver inanimado da filha no colo, enquanto o pai arrancava tufos de cabelo da própria cabeça, dominado por uma fúria sem igual.

- Eu não tenho medo de você, besta do demônio! – ele se levantou, quebrando um dos galhos de árvore e segurando firme nas mãos. – Vem me pegar, coisa ruim!

Ele lançou um olhar desesperado para Ceci, que parecia paralisada com a filha morta no colo.

- Foge, Ceci! Foge!

A mulher se levantou cambaleando e tentou correr o mais rápido que pode. Mas suas pernas não a obedeciam e tremiam como vara verde.

Um novo grunhido, e a fera surgiu de repente. Evaldo sentiu a espinha congelar, mas não correu. Manteve-se firme, segurando o pedaço de pau, como se sua vida dependesse daquilo.

A esposa corria para longe, tropeçando entre as pedras, até ver que seu caminho havia chegado ao fim. Ouviu o melodioso som de água corrente. Ainda que muito escuro, ela pode perceber, pela luz da lua, que estava à margem de um rio.

Atirou-se na água, sem soltar a filha morta dos braços, e nadou até a outra margem, quando algo se mexeu naquela direção. Detrás de um arbusto saiu um garoto pequeno, moreno, de cabelo de cuia. Parecia um índio. Ele não olhou para a mulher que atravessava o rio, mas sim para o que acontecia na outra margem, de onde ela viera.

O Mapinguari derrubou o homem com um só golpe. E o sangue jorrou entre os galhos e as folhas das árvores. Em seguida esquartejou o corpo dele, que tentava se levantar. Houve um longo grito de agonia, no momento em que a besta dilacerava sua pele como se estivesse sendo arrancada com ferro quente. O Mapinguari soltou aquele grunhido alto, que lembrava a gargalhada de uma hiena rouca. Em seguida segurou o corpo do homem nas garras e o arremessou no rio, fazendo a água jorrar.

Ceci acabava de subir na outra margem. Se agarrando nas plantas, ela deitou-se completamente molhada no chão, a filha nos braços; então desmaiou.

O menino se aproximou dela, sem tirar os olhos daqueles pêlos vermelhos, que o olhavam do outro lado do rio. Uma mistura de ódio e tristeza se apoderou dele ao ver o corpo do pai, boiando, ser levado pela correnteza, deixando um rastro de sangue negro.

A criatura se aproximou sequiosa até a margem do rio. Do outro lado, Cauã se pôs na frente da mãe e da irmã, deitadas no chão. Encarou o Mapinguari, quatro vezes maior do que ele. Mas o medo não o dominou. Ele gritou:

- Você matou o meu pai! – suas palavras ecoaram pela floresta deserta – Você matou o meu pai e eu também vou matar você!

Houve silêncio. Então, aquela abundância de pelos vermelhos marchou receosa para longe do rio, como se a água fosse ácido puro.

Cauã achou que o Mapinguari tinha entendido o seu recado. Custe o que custasse, vingaria a morte do pai. Ele ia o caçar até o último dia de sua vida.

E assim o fez.

Os cientistas ainda desconhecem essa criatura. Uma hipótese que explicaria a existência do Mapinguari, sugerida pelo paleontólogo argentino Florentino Ameghino no fim do século XIX, seria o fato da sobrevivência de algumas preguiças gigantes (Pleistoceno, 12 mil anos atrás) no interior da Floresta Amazônica.

Entre muitos, o ornitólogo David Oren chegou a empreender expedições em busca de provas da existência real da criatura. Não obteve nenhum resultado conclusivo. Pêlos recolhidos mostraram ser de uma cutia, amostras de fezes de um tamanduá e moldes de pegadas não serviriam muito, já que como declarou, “podem ser facilmente forjadas”.

Glaucio Viana
Enviado por Glaucio Viana em 23/04/2009
Reeditado em 24/04/2009
Código do texto: T1554573
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