Peste Suína - A última lembrança

O mundo mudou drasticamente.

Eu jamais imaginei que um espaço tão curto de tempo separaria o paraíso da minha infância do inferno em que hoje estou vivendo.

A todo tempo eu me pergunto: "O que eu me tornei?"

E embora não muito agradável, a resposta eu sempre soube.

Eu já sabia o que viria a me tornar, e sabia que isso não era o que eu queria ser. Então por que eu me permiti ser traído por si próprio?

O que aconteceu naquela tarde foi apenas um resumo do que já vinha acontecendo por muitos anos na minha vida: a destruição, o caos, a certeza do fim, o desfile da morte.

Eu me levantei cedo, como sempre, e tomei o café da manhã sozinho, no meu apartamento minúsculo de merda.

Meus pais sempre sonharam com uma casa grande, com piscina e tudo mais, só que isso não era o que me fazia falta. Pra falar a verdade, o fato de eu morar sozinho com vinte e três anos era o que realmente me aborrecia. Embora minha mãe sempre enchesse o saco por conta disso, eu não tinha namoro fixo com nenhuma moça legal, na verdade eu só tinha encontro marcado com prostitutas, sempre que saía à noite pra encher a cara. Era de se esperar que com um emprego de merda desses, eu só conseguiria pegar umas putas mesmo.

Nenhuma mulher me levava a sério. Na verdade nem eu mesmo me levava à sério. Elas queriam caras poderosos, ricos, com carro do ano e tudo mais. E tudo o que eu tinha era um Chevete caindo aos pedaços, dois reais no bolso e uma coleção de vinil dos Beatles. Eu era o típico adolescente daqueles que envergonham o país. Minha mãe queria que eu fosse médico. Puts... Ela nunca ligou muito pros meus desenhos e disse que não valia a pena investir na carreira artística, que era pra eu arrumar um emprego decente. Mas eu não queria isso pra mim. Eu tinha sonhos. Queria montar meu próprio estúdio. Eu sempre fui meio babacão, acreditando nessas coisas de sonho e é por isso que hoje eu sou um fodido na vida. Eu devia ter ouvido ela. Nada me magoa tanto quanto a discussão que eu tive com meus pais, na mesma semana em que fugi de casa. Eu senti tanto ódio, tanta raiva de mim mesmo que nunca mais pus os pés lá de volta. Tudo o que eu queria era poder reencontrá-los de novo, com um diploma de doutor nas mãos, um carro maneiro e uma boa esposa, mas eu jamais poderia. Jamais iria vê-los de novo. Queria poupar-lhes da vergonha de ter um filho vagabundo. Eu nunca mais vi meus pais durante todos esses anos.

Ainda naquela manhã, enquanto tomava café, liguei a TV para assistir o telejornal. A coisa estava feia mesmo. As notícias eram o esperado, um plantão atrás do outro noticiando a pandemia de gripe suína que se alastrava pelo mundo como uma praga de gafanhotos. Milhões de pessoas estavam morrendo e os governos estavam completamente vulneráveis. Ninguém sabia mais o que fazer, as pessoas estavam pirando. Suas famílias estavam morrendo, eles estavam cometendo suicídios adoidados. Era a peste negra de volta a Terra, dessa vez veio para exterminar a raça dos homens da face do planeta.

Desliguei a TV, terminando de comer. Tragédia era última coisa de que eu precisava na minha vida.

Quando eu entrei no carro e fui pro trabalho, a primeira coisa que eu notei foi o trânsito caótico que estava naquela manhã. Eu nunca vi tantos carros juntos saindo ao mesmo tempo. Mas além das buzinas, gritos e fumaça. Havia também centenas de pessoas nas ruas, carregando malas e bolsas cheias. Todos pareciam estar querendo deixar a cidade. O que estavam pensando? Em fugir pro Alasca?

Foi difícil suportar o trânsito por duas horas a mais do que o normal, até o meu trabalho.

Assim que eu entrei, os corredores estavam vazios e as luzes apagadas. Eu já tinha uma breve idéia do que provavelmente estava acontecendo, mas jamais cheguei a imaginar que a realidade seria mil vezes pior.

- Samuel, precisa sair agora, estamos evacuando o prédio... – me disse a inspetora do meu setor. – O Estado todo está infectado, o governo teme que o vírus se alastre pro norte, onde a situação ainda está um pouco controlada. Eles vão evacuar a cidade com o armamento nuclear...

- Eles vão o quê? – perguntei confuso demais pra meter toda aquela loucura na minha cabeça.

- Saiu em todos os noticiários de hoje, você não viu?

- Não, eu fiquei preso no trânsito, mas...

- Ótimo, volte pra casa, arrume só o que precisa e abandone a cidade. Eles vão detonar tudo. – ela me entregou um jornal, na capa exibindo o grande cogumelo da famosa bomba atômica, naquele momento surreal demais pra mim.

Despedi-me da inspetora e voltei para casa, o trânsito estava duas vezes pior. Agora havia carros na contramão, pessoas correndo pelas ruas, muitos gritos e as malditas buzinas.

O céu estava claro e limpo, não dava pra acreditar que dali a pouco tudo estaria reduzido a cinzas. Isso era loucura. Eles não avisaram a população com antecedência, porque certamente queriam evitar que todos fugissem pro Norte, queriam manter os infectados no Sul e deixa-los morrer com a bomba atômica. Estavam explodindo cidades. Pior do que qualquer vírus, isso era cruel demais. Era desumano.

Quando cheguei ao meu prédio, que já estava vazio, sentei na beirada da minha cama, segurando o jornal nas mãos e lendo as notícias.

As páginas mais pareciam um gibi de filme de horror. Só morte atrás de morte. Doenças, sofrimento, falta de médicos, torturas, guerras e mais mortes...

Deitei a cabeça no travesseiro, sentindo a luz do sol no meu rosto, entrando pelas frestas da janela semi-aberta. Dali a poucas horas ele não mais brilharia.

Sem malas e sem nada, apenas com a roupa do corpo eu peguei o carro e parti dali. Tinha noção de que era a última vez que eu estaria vendo a cidade. Mas mesmo que eu fosse pro Norte, não ia demorar muito pra peste chegar lá também.

O caminho pela cidade foi a coisa mais assustadora que eu já vi na vida.

Na porta dos hospitais haviam filas quilométricas, com milhões de pessoas usando máscaras, todas sofrendo sentadas no chão, aguardando pela ajuda que jamais viria. Ambulâncias entupiam as garagens, descarregando cadáveres gelados, mortos há muito e que agora apodreciam pelos chãos, atraindo hordas de abutres, exalando um odor insuportável. Algumas crianças sangravam pelo nariz, tossiam sangue e desfaleciam em febre alta. As mães não sabiam o que fazer e o caos tomou conta de tudo, porque as ruas agora eram um mar de gente doente, chorando, gritando e brigando umas com as outras. Todos estavam enlouquecidos, dominados pela insanidade que antecede a morte. Deus! Jamais pensei ver aquilo na vida. Era o apocalipse real. E de repente algo me ocorreu. Toda a minha dor desapareceu, porque foi apagada pela dor do mundo ao meu redor. Não demoraria muito chegaria a minha vez. Então por que adiar e sofrer mais? Não, eu era um homem agora e pelo menos para encarar a verdade eu tinha que ter coragem.

Larguei o carro e saí correndo entre a multidão. Alguns me pediam ajuda, mas eu não podia fazer nada, exceto continuar correndo, vendo as máscaras eu seus rostos. Vendo caírem um por um. Todos eles. Entregues ao destino final. Entregues à morte.

Corri e apenas corri o mais depressa que eu pude. Não faltava muito, não era muito longe dali. Estava quase lá. Quando passei por um mutirão de corpos estarrecidos num canto, observei-o. O grande penhasco. Corri até lá e subi na ponte. Era alto demais. Um pouco mais a frente estava o que eu queria, era só ir. Então eu fui. Para a humilde casinha do outro lado da ponte, na beira do rio sujo e lamacento. Tudo era deserto. Todos haviam ido. Todos, exceto alguém.

Empurrei a maçaneta e entrei na sala. Encarei-os, surpreso. Os dois estavam lá. Abraçados e usando máscaras. Eram muito velhos e mal conseguiam ficar de pé direito. Os olhos inchados demais, pareciam que haviam chorado durante anos.

Não sabia o que dizer. A minha única reação foi deixar as lágrimas caírem. E em seguida eu os abracei como nunca havia os abraçado na vida.

- Me perdoem... Por favor... Me perdoem... – era só o que eu sabia dizer, entre soluços e lágrimas, meus e dos meus pais.

Minha mãe limpou meu rosto e então eles tiraram as máscaras, me abraçando outra vez.

- Me perdoa pai...

Então meu pai falou e eu arrepiei ao ouvir a voz dele que não ouvia durante tantos anos.

- Nós sempre tivemos orgulho de você, filho... Sempre...

- Você é um menino maravilhoso e abençoado por Deus – minha mãe me beijou na testa e continuamos nos abraçando.

- Eu amo vocês... – foi tudo o que eu me lembro de ter dito.

Eu não sabia se eles estavam realmente vivos ou não. Não sabia se algum dia iriam me perdoar. Não sabia nem mesmo se eu estava lá. Mas de uma coisa eu tinha certeza:

Se eu amava meus pais, eles me amavam muito mais.

E assim, com a rapidez que minha dor desapareceu, meus sentidos também deixaram de existir. O mundo virou um clarão branco e a minha última lembrança foi o sorriso deles, que eu vou levar comigo por toda a eternidade.

Glaucio Viana
Enviado por Glaucio Viana em 01/05/2009
Código do texto: T1570164
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