A CAVERNA

Tudo começou como uma expedição com características ecológicas e aventureiras. Caminhávamos há horas, mas não sentíamos o peso do cansaço nas pernas. Possivelmente, os atrativos naturais serviam ao propósito de aliviar todo o esforço que fazíamos, pois a beleza intacta do lugar era algo surpreendente.

Não tínhamos pressa, acamparíamos próximo ao Funil, como era conhecida a gruta que se apresentava em um percurso vertical, cujas paredes de pedra eram brindadas por quedas d’água em toda a sua circunferência, proporcionando, de fato, uma semelhança ao objeto quando este recebe líquido em seu interior.

Ainda teríamos algumas horas antes do pôr do sol. O guia, profissional experimentado e profundo conhecedor da região, propôs que nos aventurássemos em uma descida com rapel através da grande abertura no solo. Ele usava, como argumento, a piscina natural de águas límpidas e revigorantes que existia a cerca de trinta metros abaixo.

Nosso grupo estava acostumado a participar de todo tipo de esporte radical, logo um mergulho no interior daquela caverna seria o encerramento perfeito para um dia que havia sido de total proveito para o nosso propósito.

O uso da experiência cultivada pelos anos nos credenciou a executar uma descida rápida e eficiente. O guia estava correto, o local superava de longe todas as expectativas.

A curiosidade sempre foi algo inerente à minha natureza. Assim, enquanto todos aproveitavam a água morna do pequeno lago, eu decidi explorar um pouco o interior da caverna. A tarefa não se mostrou difícil. As pedras no chão pareciam ter sido cuidadosamente distribuídas pela natureza, talvez, nem em uma calçada de uma grande cidade, a harmonia e a simetria se mostrassem com tamanha perfeição.

Quanto mais eu andava, mais câmaras e túneis encontrava. Ao olhar para trás, era possível visualizar os meus amigos se divertindo. A lanterna em punho e a bússola no bolso me davam a segurança para continuar em frente. Nunca antes eu havia visto estalactites tão perfeitas e belas. A água , que escorria através da superfície rochosa, emitia um som cadenciado ao chocar-se contra o solo. Parecia que a caverna entoava uma canção agradável aos ouvidos.

Conforme eu adentrava pela escuridão, a luminosidade produzida pelo objeto já não se mostrava tão eficiente na missão de desvendar os caminhos. Eu também já não percebia a presença dos meus companheiros de jornada. Nem mesmo os morcegos, que brincavam no teto minutos atrás, me faziam companhia. Consultei a bússola e, para a minha surpresa, os ponteiros estavam tão perdidos quanto eu. Para completar a situação, meu único ponto de referência, a luz da lanterna, lentamente começou a minguar.

Estava só, sem enxergar nada e sem saber para onde ir. Abaixei-me rente ao chão. Procurei permanecer o mais quieto quanto fosse possível, no intuito de tentar destacar algum ruído que pudesse me orientar para fora daquele lugar. De início, eu nada ouvia além do gotejar incessante, que a essa altura trazia irritação ao invés de distração. No entanto, aos poucos, comecei a ouvir um ruído ritmado no solo, alguma coisa se aproximava.

Encostei-me na parede rochosa. Não seria surpreendido pelas costas. Empunhei a faca de caça, que sempre me acompanhava, e esperei. O som aumentava, e um círculo amarelado também, conforme se aproximava. Estiquei o braço armado com a faca e gritei, minha voz ribombou por toda a câmara. Silêncio. Logo quebrado por uma outra voz, mas esta era suave e familiar. Respirei aliviado ao perceber que se tratava da minha amiga. O guia lhe fazia companhia.

Eles haviam decidido me procurar, preocupados com a minha demora, finalmente a sorte resolvera sorrir para mim, pena que por pouco tempo.

Como tudo sempre pode piorar, as luzes que traziam também foram se extinguindo à medida que se aproximavam, logo ficamos completamente à mercê da escuridão. E agora? O que fazer? Tentar achar uma saída às cegas? Esperar e torcer para que o restante do grupo viesse em nosso resgate? Sentar e esperar por um milagre?

Dentre as possibilidades escolhemos tentar escapar dali, talvez, com um pouco da sorte, a qual estava tão rara naquele momento, conseguíssemos encontrar o caminho de volta seguindo pelo mesmo lado que eles utilizaram para me encontrar. Em vão. Caminhamos por cerca de meia hora, pelo menos essa foi a impressão, a noção de tempo já estava prejudicada àquela altura, nada encontramos além de paredes de pedra e água.

Uma insuportável sensação de vertigem nos atingiu. Apesar da escuridão, tínhamos a impressão de que o mundo girava freneticamente. De forma simultânea, como se tivéssemos ensaiado, nos abaixamos e gritamos. Tirei as mãos dos ouvidos. Ouvi um som, que num primeiro instante julguei tratar-se de um retorno causado pelo eco, então, chamei a atenção dos outros a fim de certificar-me de que a loucura não havia se instalado em mim.

Não, eu não estava louco. Eles confirmaram a minha suspeita. O som de uma voz quase inaudível vinha do lado direito de onde estávamos.

Então, nos levantamos e seguimos em direção ao ruído. Eu liderava a fila, não que fosse movido por coragem, longe disso, certamente o desespero e a ansiedade detinham mais importância nessa minha decisão.

Conforme andávamos, o som da voz ficava cada vez mais nítido, porém, indecifrável, não dava nem para distinguir se era uma voz feminina ou masculina, quem sabe um misto dos dois. Na verdade, não era possível saber se era realmente o som de uma voz. Subitamente, o som cessou. O silêncio voltou a reinar absoluto. Nem as gotas ousavam interferir naquele momento.

Minha amiga, que vinha logo atrás de mim, apertou minhas roupas, suas unhas chegaram a ferir a pele das minhas costas. Uma faísca. Foi o que eu imaginei ter visto. Um brilho. Eu não havia me enganado. Não posso negar, o medo era o sentimento mais forte dentro de mim, mas eu não pensei muito, uma luz em meio àquele breu era reconfortante, e poderia significar não morrer naquela armadilha de pedras.

Conforme eu adentrava naquela câmara, uma luminosidade alaranjada tomava o ambiente, embora fraca, a luz trouxe um pouco de alegria aos nossos corações.

O brilho dourado provinha de uma pequena caixa retangular, e essa luz competia com o tom alaranjado que envolvia toda a câmara. A superfície do objeto apresentava desenhos esculpidos em alto relevo, e sob um primeiro olhar parecia feita de ouro.

Um impulso incontrolável me mandava tomar a caixa e abri-la, mas fui impedido pelas mãos de minha amiga. Ela a queria para si. Caímos no chão, com caixa, tampa de pedra e pedestal. Eu desferia potentes golpes em seu rosto, mas fui atingido pelo pé direito do guia, um chute forte e certeiro nas costelas me tirou o ar. O homem agarrou a caixa e a forçou tentando romper o lacre, a tampa se soltou de uma vez e o pó que saiu do interior se espalhou sobre o seu rosto. Ele se contorcia como se tivesse inspirado a substância mais nociva do mundo. Talvez, nem as mais poderosas bactérias ou vírus fossem capazes de produzir o que os meus olhos viram: o corpo do guia havia sido consumido de dentro para fora de uma maneira rápida e cruel.

Naquele instante, fui invadido por um momento de lucidez. Olhei para a minha amiga de longa data, ela estava caída, desacordada, caberia a mim a missão de tirar nós dois daquele lugar maldito.

Mas, sempre tem um "mas" nessas horas, a caixa dourada veio a cair próxima de mim. Meus olhos vislumbraram algo aterrador: um coração, transpassado por um punhal, também de ouro, pulsava forte ali dentro, era inacreditável. Mais incrível ainda foi a minha atitude, ignorei o medo e o bom senso, lacrei a caixa novamente, tomei a minha amiga nos braços, sem largar a caixa, e me preparei para enfrentar novamente a escuridão. Um terrível sentimento de urgência se espalhava em mim, parecia que o cérebro me alertava de algum perigo iminente.

Um ruído estranho, parecia o som causado pelo atrito de alguma coisa pesada junto ao solo. Um chiado, era como se algo estivesse sendo arrastado. Nesse momento, a caixa na minha mão direita começou a tremer. Ouvi as batidas aceleradas do coração, não do meu, mas do que estava no interior do recipiente. Apesar da luz dourada e intimidadora que era expelida pelo objeto me causar arrepios, eu não a largaria por nada nesse mundo, era muito mais forte do que eu...

Um urro infernal ecoou em todas as direções. Era a mesma voz que havíamos ouvido instantes antes. Olhei para trás e, apesar de não ver nada, eu sentia que algo seguia em meu encalço. Apertei o passo, mas a escuridão era cada vez maior e isso dificultava a missão. Olhei novamente para trás e vi uma silhueta estranha tremeluzir sobre a parede rochosa. No meu desespero, choquei-me contra um obstáculo e fui ao chão. Por mais absurdo que possa parecer, o meu reflexo instruiu-me a procurar a caixa em detrimento a mulher que eu trazia nos braços.

Um novo urro. Juro que eu não consegui definir, com exatidão, os contornos da criatura que surgia sob a luz bruxuleante, fraca e alaranjada.

Na minha frente, a escuridão ameaçadora. Atrás de mim, algo desconhecido e com evidente ira. A garota caída. A caixa em minhas mãos. De repente, tudo ficou no mais completo breu, como um blecaute dentro da caverna. Eu precisava agir. Levantei e já havia decidido fugir só, no entanto, senti um toque em minha panturrilha, parecia uma mão revestida por algum tecido, não sei, talvez um pano úmido e áspero. Proferi um chute no mesmo instante, acertei algo duro como pedra, mas a mão me soltou.

Comecei a correr. Ouvi estalos. Parecia um bicho comendo. Uma agonia preencheu meu coração ao lembrar-me da garota, mas eu não poderia fazer nada por ela, não poderia. Eu pensava desta forma para tentar obter conforto para a minha atitude insana.

Eu corria o mais rápido que o meu corpo permitia, a dor na perna direita tornava mais difícil alcançar o objetivo. Uma coisa boa acontecia, parecia que um estranho senso de direção me guiava. Eu contornava as galerias escuras como se tivesse um radar em minha cabeça. A criatura me perseguia, dava para sentir. Eu desejava que a minha faca de caça não tivesse se perdido naquela maldita câmara. O ser proferia grunhidos ameaçadores, ouvi um som familiar, parecia uma queda d’água. Segui o ruído, ficava cada vez mais forte, logo a água tocou meus pés. Não tive escolha, mergulhei e deixei a água me levar. Meu corpo era arrastado, sentia os golpes das pedras açoitando-me, então, desmaiei.

Quando abri os olhos, estava em uma das margens da piscina natural. Olhei para o alto e vi as cordas do rapel. A luz do luar incidia sobre a abertura do Funil, clareando, de forma satisfatória, o ambiente. Meu sangue gelou. No outro lado da margem estava o restante do grupo. Todos mortos. Vi poças do líquido escuro sob os corpos, e vi também algo pior.

A criatura estava lá. Encoberta pelas sombras, mas estava lá. Ela olhava diretamente para mim. Não havia para onde correr. O vão, por onde explorei a caverna, ficava do outro lado. Atrás de mim, apenas uma gigantesca parede de pedra. Entre nós, o lago. Como se pudesse sentir o meu medo e tirar proveito disso, a criatura pôs-se a caminhar em minha direção, uma sensação de incapacidade me dominou. Encostei nas rochas, apertei a caixa dourada contra o peito e iniciei uma prece.

Por alguns instantes, achei que a minha oração havia surtido efeito, pois o ser desaparecera submerso nas águas cristalinas. Mas, minhas esperanças findaram logo a seguir. Uma movimentação no espelho do lago indicava que ela surgia no mesmo lado onde eu me encontrava.

Minhas mãos estavam mais ensopadas do que os trapos imundos que revestiam o seu corpo. Um odor, que remetia à morte, invadiu minhas narinas. Um olho vermelho e acusador escapava por entre os farrapos que envolviam-lhe a cabeça. A boca escancarada produzia um sorriso cínico e feroz. Com os braços esticados, ela caminhava até mim.

Engoli um grito. Deixei escapar algumas lágrimas. Pensei no que a minha amiga deveria ter sentido nos seus instantes finais, não cheguei a nenhuma conclusão, mas em breve eu teria minha própria experiência.

Os corações batiam de forma acelerada, o meu e o da caixa. A tampa se abriu e o punhal se ofereceu a mim. Então, enlacei o cabo com a palma da mão, apertei-o forte, puxei a lâmina e comecei a golpear o músculo palpitante. O sangue negro escorria, a criatura cambaleava, mas continuava o seu andar compassado. Eu golpeava com fúria, mas o coração continuava a bater e o ser a caminhar. Eu gritava, a criatura urrava e se aproximava, suas mãos pegajosas envolveram o meu pescoço, desferi um golpe com toda a força do meu corpo, no mesmo instante em que senti um aperto tão forte quanto.

Naquele momento, naquela fração de segundo, o véu da morte tremulou no interior gelado e úmido da caverna.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 07/05/2009
Reeditado em 19/10/2010
Código do texto: T1580628