O ÚLTIMO DRINK

Estendi o dedo indicador a fim de chamar a atenção do atendente, pedi que ele completasse o copo de vidro parecido com aqueles de geléia. Pode-se dizer que a aguardente quase não permaneceu no recipiente, pois a ansiedade fez com que o líquido descesse pela minha garganta imediatamente.

Não sei se foi por culpa da situação na qual me encontrava ou pela própria composição da cachaça, mas a bebida me queimava e entorpecia intensamente durante o trajeto, como se eu sorvesse um tipo de ácido altamente corrosivo. Fiz uma careta e olhei para o dono do estabelecimento, um senhor de cabelos e barba grisalhos, seus olhos brancos causavam um certo incômodo a quem os encarasse, mas a cegueira não o limitava em hipótese alguma.

A angústia me assolava de forma impiedosa, todas as tentativas que eu empreendia na busca incansável de amenizar os problemas que me atormentavam se mostraram inúteis, nem mesmo o álcool que poderia servir para esse fim se mostrara eficaz. Eu não esquecia. A culpa não me abandonava. O arrependimento martelava forte em minha consciência.

Quem compôs o dito que prega nunca ser tarde para recomeçar, certamente não sabia, de fato, o que estava dizendo. Nunca fui uma pessoa muito preocupada com escrúpulos, sempre acreditei que tudo vale para se alcançar algo. E esse estilo de vida, esse pensamento, foram fatores cruciais quando aceitei a proposta feita por aquele estranho homem que me procurou durante o trabalho.

Trajava negro, era articulado e muito, muito convincente, suas promessas mexeram comigo. Tenho certeza absoluta que todos vocês me criticariam pela escolha que fiz, mas juro que tentei observar pela ótica que o sujeito me ofereceu, e essa visão não mostrava o horror, a maldade e a falta de caráter que muitos podem perceber nos atos que cometi.

Nos meses iniciais, após o pacto que fizemos, tudo correu maravilhosamente a contento, para ambas as partes. Eu executava com maestria e perfeição todas as tarefas para que o resultado que desejávamos fosse alcançado plenamente e sem causar maiores alardes. Posso afirmar que o estranho ficara bastante satisfeito, pois com certeza eu estava.

O que me era dado em troca transformou a minha vida, me proporcionou muito mais do que eu conseguiria se permanecesse dentro dos padrões da sociedade.

Comecei a experimentar coisas que há muito eu desejava, mas as circunstâncias da vida me impediam, ultrapassava as fronteiras que as classes determinavam, mudei e pude viver intensamente todas as possibilidades que poderiam ser compradas. Então tudo começou a mudar.

Naquele final de tarde eu seguia de forma tranqüila pensando sobre tudo o que poderia fazer ainda com base no que o meu sócio oferecia. Dirigir aquele carro novo me enchia de satisfação. Dobrei a esquina e a distração nos pensamentos bloqueou totalmente a minha atenção, e por ironia do destino aquela ambulância que seguia apressada fechou-me o caminho, mal tive tempo de desviar. Meu veículo seguiu firme, reto e decidido de encontro àquela árvore, como se o próprio demônio tivesse tomado a direção do automóvel.

Apaguei. Quando acordei estava cercado por bombeiros, médicos e policiais, sentia uma dor imensa por todo o corpo. Eles tentavam falar comigo, mas eu não conseguia compreender nada do que diziam.

Minha esposa estava ali, na minha frente, tomada pelo pranto, senti que a situação me condenava. Naquele instante comecei a pensar em todas as coisas ruins que fiz. A proposta daquele homem. Ele me disse que o meu trabalho oferecia inúmeras possibilidades, eu era enfermeiro de um grande hospital, e se eu fizesse tudo o que ele dizia, poderia ganhar muito, muito dinheiro, e assim eu fiz.

Todas aquelas pessoas, todas aquelas vidas que encurtei para que ele, o homem, assediasse as famílias e oferecesse os seus préstimos naquela hora difícil, a morte de um ente querido. Sim, eu matava as pessoas internadas, aquelas acometidas por doenças graves e desacreditadas, eu entregava de bandeja os mortos para que o sujeito fizesse o seu serviço, eu levava clientes para a sua empresa em troca de um bom pagamento.

A dor era imensa. Naquele instante tudo já estava claro para mim, eu não conseguiria sair vivo daquela situação, preso às ferragens do jeito que estava seria questão de tempo. Sabe o que mais me doeu nisso tudo? Não foi a dor, o arrependimento ou a iminência da morte. Foi notar, quase ao fechar definitivamente os olhos, aquele homem, aquele maldito se aproximar da minha mulher e falar algo em seu ouvido. Mesmo sem ouvir o que dizia, eu sabia o que ele falava, eu conhecia aquele discurso. Logo eu estaria deitado em um de seus caixões.

Agora estou aqui, sentado perante esse balcão. Não sei ao certo como vim parar nesse lugar, só me lembro das pessoas gritando: “Todos precisam ir”. “Andem, todos para o botequim”. “Vamos todos ao botequim”. Eu era empurrado, arrastado em uma fila. Logo esse senhor de idade avançada surgiu diante de mim, apontou aquela porta, aquela mesma que está logo ali à minha direita, ela leva para um lugar onde as contas serão pagas, e não me refiro à despesa do bar.

Imploro por mais um gole, mas o senhor, com aqueles olhos selados me diz com uma voz seca e grave: “Você já teve direito ao último drink, siga seu caminho”.

Réplica dos amigos:

Michelle CM

Victor Meloni

http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/1614179

Josadarck

Suzana Barbi

Helena Frenzel

http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/1615074

Fábio Codonho

Isak Damásio

Alex Ribeiro

Maith

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1616748

Ian Morais

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 29/05/2009
Reeditado em 07/01/2010
Código do texto: T1621233
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