A RAINHA

Eu morava no final da rua naquela época, e ainda não havia presenciado o horror que viria a me acompanhar nos dias que se seguiram logo após aquela mulher chegar à vizinhança. Uma tristeza imensa me invade o coração quando me vem à mente a imagem de como era o local antes de sua chegada. Árvores frondosas se espalhavam pelos dois lados da via, jardins bem cuidados davam vida às entradas das casas, pomares exuberantes tomavam os quintais, quando não eram hortas que traziam o colorido.

Lembro que costumávamos correr pelo chão de paralelepípedos até a pequena praça localizada próxima à estrada, levávamos nossos cães para se exercitarem, era assim que dizíamos, pela ciclovia que contornava os bancos de concreto e os brinquedos de ferro e madeira. O cheiro do sangue escorrendo pelo metal enferrujado me vem à lembrança... Eu conseguia enxergar possibilidades infinitas alicerçadas pelos meus sonhos infantis, mas tudo me fora tomado, de forma dura, cruel e desumana. Todas as minhas esperanças e expectativas desmoronaram como um castelo de cartas ao mais suave sopro.

Eu queria jamais ter olhado pela janela do meu quarto naquele final de tarde, como eu desejava possuir um dom que me proporcionasse a capacidade de teleportar para bem longe a minha família. Infelizmente eu olhei, e minha vida mudou.

A caminhonete estava estacionada há algum tempo, homens carrancudos carregavam os móveis de madeira escura de maneira quase automática. O motorista não abandonou o volante, o velho de barba e cabelos grisalhos olhava diretamente para mim, um olhar vítreo e tétrico, parecia querer transmitir alguma mensagem, mas seus lábios mantiveram-se lacrados e suas mãos fixas à roda de direção.

Eram quase dezenove horas, mas ainda assim o sol brilhava forte, como costumava ser, mas de forma repentina, nuvens negras e carregadas cobriram todo o anil, antecipando a chegada da noite.

Desde aquele dia, o astro rei nunca mais mostrou a sua imponência plena, os dias tornaram-se melancolicamente opacos e sem graça. Ainda naquele dia, deparei-me com ela pela primeira vez. Alta, esguia, tão inacreditavelmente linda que minhas palavras não são capazes de reproduzir com exatidão o que meus olhos viram. O rubro de seus cabelos lembrava o fogo produzido pela queima de uma madeira nobre em uma noite de inverno. Mesmo eu, um garoto ainda longe da adolescência, senti-me completamente enfeitiçado pela turquesa de seus olhos.

Ela trazia um gato de cor caramelo nos braços, e estava cercada por alguns outros, de vários tons e tamanhos. Senti um arrepio percorrer-me a espinha quando ela sorriu para mim, mostrando os dentes extremamente alvos em contraste com o vermelho de seus lábios. Fechei a janela e não me atrevi a olhar novamente naquela direção, embora eu não conseguisse eliminar a imagem de seu rosto dos meus pensamentos.

Naquela noite encontrei muitas dificuldades para achar o sono. Debati-me durante algumas horas, rolava de um lado para o outro. Decidi que precisava de um copo d’água, então levantei-me com a intenção de buscá-lo. No entanto, fui impedido por uma atração irresistível, uma força que me impulsionava a chegar à janela. A fina cortina balançava com a suave brisa que entrava pela fresta.

Cheguei bem próximo, a fim de espiar pela abertura, mas quando o espaço aberto estava preste a se expor, as duas lâminas da janela se abriram de forma súbita e inexplicável, o susto me levou ao chão, levantei-me e olhei para a rua pela janela escancarada. A noite estava escura e extremamente abafada, até a brisa que instantes atrás se fazia presente havia desaparecido.

E lá, no outro lado da rua, na casa que até pouco tempo estava fechada, uma silhueta se destacava na soleira da porta. Era a nova moradora, envolta em um tecido branco que tremulava apesar da ausência de vento. Seu braço direito estendido apontava em minha direção, e então, gatos, inúmeros, começaram a sair de todas as partes de sua casa e espalhavam-se rapidamente pela rua, tranquei a janela tomado pelo impulso, comecei a chorar, pensei em chamar pelos meus pais, mas a vergonha me impedia, então, posso contar isso aqui, escondi-me debaixo da cama e lá permaneci até ser tocado por um sono profundo.

Quando acordei, tratei logo de descer as escadas e notei a porta da sala aberta, atravessei o vão e encontrei várias pessoas na rua, incluindo os meus pais, várias crianças choravam desesperadamente, seus cães estavam mortos. Imediatamente fui tomado pela sensação de urgência pelo meu animal.

Como se adivinhassem meu pensamento, alguns amigos apontavam o caminho para a praça, entrei em uma corrida desabalada, meus pais vieram em meu encalço, mas não conseguiam me alcançar, cheguei ao local e caí de joelhos. Rex estava amarrado às correntes do balanço, seu sangue escorria pelos elos. Meus pais me pegaram no colo e tentavam trazer calma e consolo para uma situação onde não haveria espaço para tal.

Palavras desconexas saíam de minha boca enquanto as lágrimas lavavam-me o rosto. Eu lembro bem das acusações que fazia contra a nova vizinha. Xingava-a de todas as formas. Não sei se levados pelo total desespero que me dominava, as pessoas que ali estavam decidiram falar com a mulher, ainda que não dando muito crédito ao que eu dizia ter visto, meus pais foram junto.

Naquele momento, somente nós, as crianças, ficamos na rua. Elas queriam saber mais detalhes sobre o que eu havia visto e sentido, todas compartilharam do mesmo medo que havia se instalado em mim. Aguardamos confiantes pela lição que nossos pais dariam àquela forasteira, no entanto, quando saíram estavam convictos do contrário, pregavam que a jovem senhora, de rara beleza, seria uma jóia entre os seres viventes, a melhor pessoa do mundo.

Fui arrastado pelas mãos enquanto debatia as pernas na tentativa inútil de me soltar e ir, eu mesmo, acertar as contas com ela. Virei o rosto para encará-la enquanto era levado, um misto de preocupação e raiva me invadiu quando ela piscou maliciosamente para mim, deixando escapar um risinho enquanto alisava o bichano.

Dentro de casa meus pais posicionavam-se em frente à televisão, olhos vidrados e inexpressivos, respondiam mecanicamente , de forma monossilábica, aos meus questionamentos. Tudo por culpa daquela mulher, aquela maldita me pagaria, eu encontraria uma forma de me vingar e nada nem ninguém seria capaz de impedir-me.

Esperaria até o cair da noite, não que a escuridão me favorecesse, longe disso, mesmo porque os dias estavam tão negros quanto. Apenas defini que eu atacaria da mesma forma que ela, longe de olhos curiosos.

O dia seguiu longo e arrastado, vigiei pela janela do quarto todo o tempo, não sentia fome nem sede, apenas o desejo de vingança me alimentava. As pessoas entravam e saiam o tempo todo da casa da estranha, parecia que estavam tomados por alguma força que era incompreensível para mim. Então o véu da noite caiu sobre nós e seria questão de tempo até nosso encontro.

A madrugada seguia alta quando abri a porta do quarto e saí, entrei sorrateiramente no quarto dos meus pais, ambos dormiam, ou assim pareciam, pois permaneciam com os olhos abertos e vidrados em algum ponto desconhecido, eles não estavam ali, definitivamente não estavam, seus corpos poderiam estar, mas era só isso.

Empunhei o velho arpão de pesca do meu pai e parti decidido a acabar com aquela que trouxe a desgraça para todos naquele lugar. Cruzei a porta e me deparei com uma cena inesperável, parecia que todas as crianças das redondezas estavam ali, em vigília frente à casa da maldita. Avancei por entre elas e segui em direção à porta de madeira escura, e esta, de maneira curiosa e amedrontadora se abriu para mim.

Olhei para trás e meus amigos apenas acompanhavam. Estavam estáticos, mudos, completamente alheios a tudo que acontecia. Dei de ombros e continuei meu caminho pela casa. Comecei a ouvir uma voz rouca e arrastada, extremamente convincente, que falava não aos meus ouvidos, mas diretamente à mente.

Ela dizia que sabia o que eu procurava, afirmava que conhecia os meus desejos. Tentei ignorá-la e continuar com a missão. Vi uma luz tênue surgir oriunda de uma espécie de porão, ainda que repleto de medo, decidi que não poderia recuar. Apertei mais forte o cabo do objeto em minhas mãos e deixei escapar algumas lágrimas. Caminhei lentamente até a origem da luz e então eu vi.

Sua cabeleira reluzindo no mais intenso escarlate. Ela estava sentada de costas para mim, completamente indiferente à minha presença. A voz, ela me dizia, de forma cristalina e em alto e bom som, me ordenava, não, me comandava naquele instante, então, bati. Bati com toda a força que meus músculos infantis eram capazes de produzir.

Acertei a ponta do arpão na nuca da mulher, ela caiu vertendo o líquido tão vivo quanto a cor dos seus cabelos, e o que seguiu me fez soltar um grito de pavor, espanto e horror.

A mulher de beleza tão espantosa e sedutora começou a perder todo o viço enquanto seu sangue manchava a madeira escura do assoalho. Ela enrugava, definhava, simplesmente desaparecia até tornar-se apenas osso e em seguida pó. Um pó acinzentado e de cheiro forte.

A primeira coisa na qual pensei fora na sensação de vingança. Pura e limpa. Vingança, sim, foi nisso que pensei.

Hoje estou crescido e muito mais velho, embora não pareça. Confesso que sinto saudades da infância, dos meus amigos e pais. Mas tudo na vida passa, precisa passar, preciso alcançar novos objetivos. Minha beleza cativa a todos que se deparam com ela. É inevitável. Enquanto criança meus cabelos eram tão escuros quanto a noite, mas hoje queimam em brasa. Não ouço mais aquela voz em minha cabeça, hoje a percebo de forma diferente, ela chega até mim através da minha amiga felpuda em meus braços.

Embora seu corpo de cor caramelo aparente uma fragilidade preocupante, seu poder é imensurável e sua vontade indiscutível. Quando ela ronronou para mim naquela noite, percebi tudo afinal.

Minha missão havia apenas começado, eu teria muito mais a fazer, a começar por aqueles que aguardavam do lado de fora.

Agora estou aqui, olhando os sujeitos que descarregam a minha mudança. Fico aqui pensando enquanto aliso seu pêlo macio, muita coisa me aguarda aqui nessa rua, sim senhor, muita coisa. Não é minha rainha? O que desejas de mim?

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 07/06/2009
Reeditado em 23/11/2009
Código do texto: T1637427
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