O DEMÔNIO DA AMAZÔNIA



1 - OS CAÇADORES E A CAÇA

A patrulha se desloca lenta e silenciosamente pela selva amazônica, fuzis ParaFAL em MAC (arma Municiada-Armada-Carregada), empunhadura correta e firme. Atenção máxima. Não são meros garotos da conscrição nem "recos" novatos (os famigerados bisonhos). O mais jovem ali é o cabo Beronha, operador da Metralhadora MAG, com seus 24 anos, grandalhão e ágil, o metralhador nato, ao menos para os treze quilos de uma MAG descarregada, e aquela leva um cofre de cinquenta cartuchos calibre 7,62 x 51. O comandante da patrulha, 1º Sargento Guerra (nome de família, Máikon Simon Guerra), lidera à frente, junto com o Batedor, um índio Xavante, baixote e entroncado, conhecido por todos como "O Paisano", por seu hábito de entrar e sair do quartel vestindo roupas civis, frequentemente bêbado. Punições e mais punições em nada resultaram, além de mantê-lo na patente de soldado raso aos 36 anos, sendo o mais velho da tropa e só não tendo sido desmobilizado por ser simplesmente - e de longe - o melhor batedor do exército: dizia-se que era capaz de literalmente farejar emboscadas, tal talento tendo salvado muitas vidas, inclusive a de seu atual comandante, mais de uma vez. E aquele GC (NdA - Grupo de Combate, unidade básica da Infantaria) do 1º BIS (Primeiro Batalhão de Infantaria de Selva) é muito especial: sua única e exclusiva função é rastrear, caçar e neutralizar (NdA - eufemismo para matar) guerrilheiros das FARC e outros irregulares que rotineiramente invadem o território do Brasil em busca de refúgio, suprimentos e novos recrutas, além de fazer "negócios" com organizações criminosas endógenas. Todos os integrantes são veteranos de muitos combates "esquecidos", jamais revelados na mídia. Todos já haviam disparado suas armas em combate. Todos já haviam sido feridos de algum modo. Todos já haviam matado. E todos bem mais de uma vez...

A tensão aumenta entre os soldados, apenas pela observação do comportamento do Paisano: ele frequentemente coça atrás da orelha e cheira, indício certo, para os que o conhecem bem, de que há problema e bem perto. Cochicha algo ao ouvido do comandante, que imediatamente se agacha, ao mesmo tempo em que ergue a mão esquerda e a fecha. O índio segue em frente sozinho. Todos, ao ver o gesto do sargento, se agacham também, automaticamente tomando posições de defesa do perímetro. Beronha, silenciosamente, desliza até uma posição ao lado do sargento:

- E aí, sarja? - sussurra.
- Inimigo à frente, bronha. O Paisano vai ver e reportar.

Passa-se mais de uma hora até o índio voltar, engatinhando de costas para a patrulha, olhos penetrantes, sempre varrendo em leque à sua frente, a cabeça mal se movendo.

- Esse pele-vermelha deve enxergar até com o olho do cu, 'taqueopariu, não olha pra nós uma só vez e vem retinho na...
- Calaboca, bronha! - sibila o comandante.
- Sim, senhor. - fiadaputa emproado - pensa mas não fala, claro.

Rápida conversa aos sussurros e com alguns gestos entre o sargento Guerra e o Paisano. A um sinal do Sgt, os soldados se aproximam mais. O comandante explica de modo conciso o quadro tático:

- São sete, pequena clareira a uns cem metros (estica a mão esquerda para indicar a direção). Quase tudo AK, um RPG e uma RPK. Duas mulheres, uma com a RPK. Todos INI, nem sinal de refém. Prioridade para a RPK e o RPG. Formação de combate  Lima, você (apontou para o cabo Silva, que comandava a segunda esquadra de tiro) siga o Paisano com o seu pessoal, ele mostra onde posicionar, o resto comigo. Aproximação em pinça, sem pressa. Esperem a gente começar o baile, só após a resposta do INI (NdA - inimigo) vocês entram. Em suma, operação padrão.

E é mesmo. A rigor nada precisaria ter sido dito, uns poucos gestos bastariam. São todos experientes até demais, verdadeiros experts em suprimir vidas e seguir em frente. Fim parte 1 Twitter

Ninguém pergunta sobre prisioneiros. Mata fechada, impossível conduzir. Impossível pedir helitransporte também, a área é praticamente desconhecida, mesmo para aqueles veteranos da Amazônia, e fica muitos quilômetros além do alcance máximo de qualquer helicóptero do inventário do EB (NdA - Exército Brasileiro). Sabem exatamente o que fazer: matar todos, recolher ou inutilizar as armas e munições, filmar o resultado da operação para o pessoal da Inteligência, fotografar rostos (de quem ainda tiver) para riscar das listas dos "pedidos" e cair fora.

Progressão à máxima cautela. Cerca de meia hora depois de cuidadoso avanço, Guerra finalmente está satisfeito com o posicionamento da tropa em relação ao INI.

Na clareira, os guerrilheiros conversam e fumam. Pelo cheiro, maconha. Parecem estar totalmente relaxados, se sentindo seguros. Um deles, mulato alto e forte, abraça uma das mulheres (a do RPK), morena jambo surpreendentemente bonita, magra e esbelta, porte altivo. Esta o empurra proferindo o que parece ser um palavrão. Ele ri e diz algo em castelhano. O sargento quase se compadece, na selva dá para ouvir palavras neste volume a quase um quilômetro, frequentemente mais. Outro tinha se recostado a uma árvore e parece dormir. Dois bebem de um cantil e dão risotas. Ninguém parece estar de sentinela. De fato - pensa o sargento - aparentemente se sentem mesmo seguros ali. Pobres diabos...

Guerra então aponta seu pesado fuzil para o mulatão, que empunha displicentemente o RPG, ainda rindo da reação da bela morena. O primeiro disparo do PARAFAL o atinge na garganta, cortando ao meio o comentário jocoso que fazia com outro cumpañero, com quem repartia um baseado no instante do primeiro disparo. Violento tiroteio se segue, os guerrilheiros - ao menos alguns, os que sobreviveram ao início da emboscada - tentam reagir, se abrigando em posições opostas ao som dos tiros e abrindo fogo. Então, na diagonal dos inimigos (mais ou menos na forma da letra "L", daí a formação ser chamada "Lima"), o grupo  que segue o Paisano abre fogo, arreganhando ainda mais as portas do inferno aos narcoguerrilleros. Mais baixas. Um vulto indistinto corre velozmente para a mata fechada, seguido por vários disparos.

- Tá fugindo, o fiadaputa - berra o cabo Beronha, voltando a MAG para a selva e esvaziando o que resta do cofre de munição da potente metralhadora em uma exasperada série de rajadas curtas.

- Cessar fogo! Cessar fogo! CESSAR FOGO, PORRA!- comanda o Sgt. Guerra.Fim parte 2 Twitter E volta o silêncio, agora quase sepulcral. Então, alguém gemeu. Guerra:

- Paisano, tudo legal aí?
- Sim, senhor. Nem um arranhão em nós.
- Cubram a gente, vamos verificar.
- Sim, senhor.
- Bronha, vai na frente, estaremos nas alas.
- Falou, sarja. - coloca outro cofre de cinquenta cartuchos na MAG, insere um cartucho no "pronto" e puxa fortemente a alavanca do ferrolho. Gosta muito do clique que isso faz.

Encurvados, adentram a clareira. O mulatão do RPG está irreconhecível, vários outros disparos o haviam atingido, destroçando-lhe (a cabeça pende por uns fiapos de carne, após o disparo que lhe atingiu o pescoço) grande parte do tórax. Outros corpos vão sendo encontrados e ajuntados em fila para a filmagem que deve ser entregue ao Comando do Batalhão. Ao ser agarrado para arrastar para a fila, um dos homens geme. Beronha, como metralhador, tem a desculpa perfeita para não fazer trabalhos pesados e/ou desagradáveis, está dando cobertura aos demais e observando. Grita:

- Um tá vivo, Sarja!

O comandante se aproxima. O guerrilheiro tinha sido atingido numa perna e no ombro, este praticamente destroçado. Jamais poderia disparar de novo qualquer arma que exigisse o emprego das duas mãos, aquele braço já era.

- Por Diós, no me mates, pendejo! - "gente estranha", pensa o sargento, "na mesma frase uma súplica e um insulto".

Então Guerra, de modo aparentemente casual, encosta o cano ainda quente do PARAFAL no peito do homem, depois levanta um pouco a arma e, compensador a centímetros do peito do guerrilheiro, pergunta:

- Quem são vocês? O que faziam aqui?

Silêncio.

- Vou ter de repetir?

Nada. Apenas o olhar, entre hostil e suplicante.

- Hmm...certo, então - e dispara duas vezes, os fortes estrondos destroçando o silêncio que havia retornado, junto com o tórax do guerrilheiro, que estremece e fica imóvel.

Seis corpos.

- Falta um - observa o índio.
- É, e pelo que vejo, é a gostosinha aquela. - sorri lascivamente Beronha. Guerra:

- Sabe o que fazer, Paisano.
- Sim, senhor. Sinais de cem em cem.
- Vai nessa, então.

O indígena parte com sua espingarda pump calibre doze, encurvado e silencioso, porém muito veloz, pelo caminho seguido pela guerrilheira fugitiva. Ninguém precisa dizer a um veterano como ele que quem uma vez entrar no campo visual daquele grupo só terá duas opções, render-se e ser morto ou resistir e ser...igualmente morto.

Após as fotos e filmagem, os corpos dos abatidos são enterrados a pouca profundidade. A selva, eternamente tão impiedosa quão faminta, se encarregará de fazê-los desaparecer para sempre, muito em breve. As armas e munições são coletadas e catalogadas; uma RPK com três carregadores cheios e um pela metade, um RPG-7 com dois foguetes antipessoal e mais dois anticarro, quatro AK-103 com um total de treze carregadores cheios e três pela metade. Um pistola Makarov carregada e com dois carregadores extras cheios. Onze granadas de mão de fabricação venezuelana. Nenhum equipamento de comunicações, sequer um celular. Nada de mapas também.

- Bom, a tiazinha deixou a RPK e levou um AK. Pelo jeito só com um carregador. Não vai ser difícil.- diz Guerra, mais para si mesmo. parte 3 twitter
* * *

O rastro era fácil de seguir. Galhos partidos, vegetação amassada, pedaços de tecido, tudo isso aparecia aos olhos do índio como placas indicativas a um motorista experiente. De quando em quando, quebrava um galho e largava na trilha, apontado para a direção que seguia.
"Mesmo um jumento que nem aquele sargento pode seguir isso" - pensava, deliciado. Mas gostava do homem, admitia, ou já o teria deixado morrer, como daquela vez, à beira do rio. Os guerrilheiros estavam camuflados sob a densa vegetação ribeirinha, ele viu com o rabo do olho um leve movimento, algum afoito tinha movido ligeiramente o fuzil para enquadrar melhor o Cmt, ele se jogou sobre o "hôme" e os projéteis passaram por cima. Depois tinha sido fácil, o resto do GC, mais atrás, respondera ao fogo, variando suas posições constantemente; os guerrilheiros eram imaturos, mantiveram a posição e nela foram mortos. Apenas um ferido leve: ele mesmo, um raspão de AK nas costas. Ossos do ofício...

Mas havia algo que não o agradava. Sentia a natural insegurança de estar só num lugar onde jamais estivera, tinha certeza disso. O cheiro era diferente, os sons, tudo. Aliás, não havia som algum, era como se a mata tivesse contido a respiração. Isso nunca acontecia com ele, a selva sempre o acolhia como um dos seus. Era seu filho...

Mas era também um Soldado. Assim, prosseguiu.
* * *

A patrulha seguia cautelosamente porém com rapidez. Os sinais eram fáceis. Breve alcançariam o Paisano. O Sargento GUERRA tomara para si o lança-rojão de fabricação russa. Era o único quase do tamanho do Cb Beronha, era justo que lhe coubesse o maior peso, no mato não funciona essa conversa de quartel tipo 'olha as minhas divisas', se começasse com isso viveria bem pouco entre guerreiros natos como aqueles veteranos. Sabia de 'acidentes' e 'fogo inimigo' que não eram bem assim: ou o Cmt. é aceito e respeitado como um dos membros do grupo ou é melhor arranjar outro trabalho. Ou então, claro, fazer um testamento...

Então, bem à frente, uma rajada. Kalashnikov. Outra. Outra. Silêncio. Todos agachados.
- Que foi isso, Sgt? Deve ter sido a pouco mais de um quilômetro...
- O Paisano deve ter encontrado a guerrilheira, Bronha.
- Mas por que não atirou? Só tiro de AK...
- Vamos em frente e ver o que há. Máxima atenção, pessoal. TWITTER 4

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O Paisano sentia que a caça estava perto. Correr daquele jeito na mata fechada, abrindo à força a clareira que ele estava seguindo devia consumir muita energia.
"Uma mocinha fraquinha que nem aquela..."- pensou, sacudindo levemente a cabeça.
Avançando mais uns cem metros, instintos no máximo de prontidão, indicador quase roçando o gatilho, já podia ouvir os ruídos da mulher andando. Parecia hesitante, uns passos, parada, mais uns passos, nova parada. Ela fala algo em voz bem alta:
- Quien es? - Há medo naquela voz. Não, há terror...
A visibilidade era de menos de dez metros, a selva cada vez mais densa e escura. Bruscamente, a mulher grita algo ininteligível e começa a atirar. Ele se lança ao solo. Uma rajada curta. Outra. Uma mais longa...
Depois pára. Um grito agudo. Silêncio.
Novos ruídos no mato. Agora é como se um imenso animal estivesse se movendo, remexendo em algo. O sangue gela nas veias e artérias do índio. Um cheiro forte e ácido lhe invade as narinas. Sente que suas mão tremem. Rasteja lentamente, recuando, de frente para o local de onde vieram os sons, arma apontada, dedo no gatilho, que se fodessem as regras de segurança.

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O Sargento GUERRA avança à frente da tropa. O Cb Beronha a uns cinco metros atrás e à esquerda, pronto para dar cobertura, se ele precisasse recuar. Por exemplo, se topasse de inopino com um grupo inimigo, recuaria enquanto a MAG mandaria uma enxurrada de balas para cima dos guerrilheiros. Mas continua a avançar, deve estar bem perto do local dos disparos... O caminho agora faz uma curva.
Bruscamente, uma mão emerge da mata cerrada e lhe segura o braço que empunha o Para-FAL. Volta a cabeça e o fuzil ao mesmo tempo para sua direita.
- Paisano, fiadaputa, quer me matar do coração? Puta merda... - sussurra, exasperado.
Olha com atenção para o batedor.
- Cara, que diabo, você está pálido, nunca vi índio ficar assim, nem sabia que...
A mão que ainda lhe segurava fortemente o braço tremia com violência. O resto do GC se aproximou.
- O que está pegando, hein sarja?
- Sei lá, Bronha, olha só o Paisano...
Foi preciso fazer força para desaferrar a mão do índio do braço do Cmt. Inútil interrogar, o homem batia os dentes como se tivesse passado horas dentro de um freezer.
- Pessoal, está anoitecendo, vamos recuar até aquela clareira a uns duzentos metros daqui e bivaquear lá. Amanhã a gente vê.

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O Cmt. deitou-se ao lado do índio, que continuava a tremer e bater os dentes.
- Bronha, vem cá.
- Senhor.
- Me dá o teu cantil.
O Cabo pensou, então foi até sua mochila e trouxe.
- Não esse. Pensa que sou trouxa?
- Senhor, eu...
- Calaboca, cara. Vamos ver se o índio amansa, que merda, parece estar com a boca cheia de castanholas, inferno!
- Ah, sim senhor. - o Cb Beronha sorriu de orelha a orelha e buscou outro cantil. Ao ser aberto, forte aroma de aguardente. O Sgt nada disse, apenas apoiou a cabeça do batedor aterrorizado no colo e despejou um pouco do líquido em sua boca. O homem tossiu um pouco, arregalou os olhos amendoados, tomou o cantil das mãos do Cmt e engoliu furiosamente o conteúdo.
- Mas credo, o pele-vermelha desgraçado parece uma bezerra mamando nas tetas da mãe...
- Sossegaí, Bronha.
- Mas ele vai me deixar a seco, senhor!
- Em compensação, eu vou continuar bem quieto sobre os seus cantis. Aliás, sei que você tem outro. Aquele menor, que fica bem no fundo da mochila...
- Tá certo...senhor. - o Cb saiu, algo confuso. Então o maldito sabia! Pelo menos não era alcagüete...

Uma meia hora depois, cantil vazio, o batedor parece ressonar tranqüilamente. O Cmt resolve aproveitar para descansar um pouco também. Então, a voz:
- Guandirô.
O Sgt abre os olhos imediatamente. O índio, reclinado, o fita com intensidade.
- O quê? Disse alguma coisa?
- Guandirô.
- Que diabos é isso?
- Eu pensava que era só lenda...
- Cara, você está bêbado, vai dormir, amanhã a gente conversa.
- Não. Ele vive por aqui, pelo jeito...
- Ele quem? TWITTER
 
Que diabos é isso de guam...guan...sei lá...
- Guandirô. Mau...chupa sangue...Geralmente é de bicho mas prefere gente...
- Pára com isso e vai dormir, pinguço. Amanhã a gente conversa.
- Sim senhor. - algo contrafeito, o batedor se vira e volta a dormir.

Na manhã seguinte, levanta-se acampamento, após enterrar qualquer resto/dejeto que demonstre que a patrulha esteve ali. Retoma-se o caminho rumo ao local dos disparos da guerrilheira.
- Paisano, que diabos houve ontem?
- Guandirô. O chupa-sangue. Vou mostrar ao senhor.
"Endoidou, pelo jeito"- pensa o Sargento. Observa a progressão do índio. Nunca o vira tão atento, nervos à flor da pele. Algo estava muito errado com ele...

Chegam a uma outra pequena clareira. O índio segue direto para uma das bordas. Uma bota sobressai da densa vegetação.
- Aqui, senhor! - chama o índio.
Puxa a bota. O corpo sai do mato. Mulher. O AK ainda firme na mão crispada.
- Meu Deus, que diabo é isso? A garganta está estraçalhada...
- E ela está sem um pingo de sangue no corpo, senhor. Guandirô, eu falei.
- Mas putaquipariu, pára com essa xaropada, cara, deve ser algum animal...
- Não, animal nenhum se mete com o Guandirô. Só depois que ele se vai é que eles vêm e comem os restos...
- E cadê eles?
- Ele ainda não se foi...
- Como assim, homem?
- Há nós. Ele prefere gente...
- Ai meu Deus...- exasperado, o Sargento não sabe o que dizer. - Quanta besteira... - Bem, o último alvo está neutralizado. Vamos cair fora, pessoal, estamos bem longe de casa.
Baixinho, o índio murmura:
"Ninguém vai voltar pra casa: ele não vai deixar..." TWITTER

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PARTE 2 - OS CAÇADORES VIRAM CAÇA


A progressão era rápida, embora não sem os cuidados usuais para quem está em terreno desconhecido que, para qualquer soldado profissional, é o mesmo que hostil. Pelo meio dia, estavam de volta à clareira onde haviam emboscado os guerrilheiros. Alguns animais fugiram ao sentir a presença humana. O mau cheiro imperava. Ali um braço meio devorado se elevava da terra, acolá uma perna em idênticas condições. Muitos vermes. Impressionante como a selva acelerava a decomposição...

Prosseguiram. Cerca de uma hora depois, parada para descanso e um lanche rápido. Ponto Base. O índio, cada vez mais inquieto, não tirava a mão da empunhadura, o dedo roçando o gatilho, o Para-FAL embalado.
"Esse cara tem jeito de estar enlouquecendo"- preocupava-se o Sargento. Olhou para o Cb Beronha. Pelo olhar que o outro lhe devolveu, soube que pensava igual.
Viu um soldado pegar a pequena pá e se enfiar no mato.
"Vai, cagão..."- riu-se sozinho.

Nisso o Paisano se ergueu bruscamente, fuzil contra o ombro, dedo no gatilho, olhar fixo em frente. Atônito com o inusitado e a rapidez do acontecimento, o Cmt observava, atônito, enquanto o índio gritava:
- Volta, volta, ele está aí!!!
Um grito de puro terror e agonia emergiu da mata densa. O índio mergulhou na selva naquela direção, atirando sem parar. O Cb Beronha correu atrás dele, MAG pronta. Mais dois soldados. Só então, o Cmt conseguiu se recuperar do espanto e seguir o grupo. Gritou para um soldado:
- Fica aí!!!
- Sim senhor.

O Sargento GUERRA seguiu na direção para onde supunha que os homens haviam ido. Esbarrando em galhos e espinheiros, meio boleado, parou, ofegante, para se localizar.

Então ele viu.

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O soldado encontrara um pequeno espaço onde aliviar seus intestinos, então cavou um pequeno buraco e já ia baixando as calças quando ouviu um grito estridente, mesmo sem entender o que era dito. Então sentiu um forte odor ácido, como o de uma jaula de grandes mamíferos num zoológico. Imediatamente arrepiou-se. Algo estava errado. Havia perigo ali. Que merda, não trouxera o fuzil. Tentou sacar sua pistola, uma Glock que tirara de um guerrilheiro morto, tempos atrás. Ela estava no coldre mas, com as calças frouxas, ficou difícil sacar. De algum modo conseguiu mas...tarde demais. Uma enorme mão peluda o agarrou pelo cangote, puxando-o para cima com uma força muito superior à de um ser humano. Voltou-o para si. Ele viu a enorme bocarra, os dentes imensos e ponteagudos. Sentiu o hálito asqueroso da besta. Gritou.

Mas não chegou a ver mais, apenas uma dor aguda quando sua garganta foi dilacerada, o pedaço arrancado sendo engolido sem mastigar, então a sucção. Sua bexiga e intestinos se esvaziaram imediatamente. Estava morto dez segundos após ser erguido do solo, mais uns dez e não havia mais sangue em seu corpo...


O soldado que guardava a posição anterior estava nervoso, ouvia tiros e gritos, alguns deles de agonia, e não sabia o que estava acontecendo. Veterano de vários combates, nunca vira ou ouvira nada parecido. Mais do que viu, sentiu um movimento na mata. Algo saltava sobre ele, algo muito grande. Virou-se já atirando. O impacto do enorme corpo sobre o dele foi fenomenal.


O batedor encontrou o corpo no mato. Fezes, urina por toda parte. Garganta rasgada. Nada de sangue. O Cb. Beronha chegou logo atrás.
- Meu Deus, o que está acontecendo, pele-vermelha?
- Vamos cair fora daqui!
- Voltar ao PB, então.
- Tá louco, é pra lá que ele está indo, olhe os rastros, foi pelas árvores. - Dito isto, correu para a esquerda, mergulhando na mata. O Cb o seguiu. Ouviram um disparo.
- Pegou o coitado que deixaram de sentinela.
- Quem pegou, índio? O que está acontecendo, porra?
O batedor não respondeu, continuou correndo pelo mato.
- Pele-vermelha fiadaputa, me espere, que merda!!!
Após mais uma corrida, o Paisano parou.
- Aqui deve dar.
- Dar pra quê?
- Vamos emboscar o desgraçado.
Minutos depois, sons leves na selva.
- Deve estar chegando.TWITTER
 
Espere eu atirar, só aí abra fogo.
- Tá, índio. Vou atirar no quê?
- Você vai ver. Se sair vivo, coisa que duvido, vai ter uma história e tanto pra contar...
Dois vultos emergiram do mato. Soldados.
- Aqui, viados, ligeiro! - sussurrou o Cabo.
Os soldados, visivelmente aterrados, se aproximaram em silêncio, mãos crispadas no cabo das armas, os nós dos dedos brancos.
- Que que é isso, Bronha?
- Calaboca e fica atento. Vocês dois, fiquem cobrindo a nossa retaguarda.
- Esperem. O cheiro. Está aqui perto!
- Onde, índio?



Aquilo não era um homem. Também não era um animal. Não era nada que o Sargento GUERRA tivesse sequer imaginado num dia de bebedeira que pudesse existir sob o céu...

Tinha uns três metros de altura. A pelagem longa, espessa e lisa era verde e castanha, em vários tons. Uma senhora camuflagem, verdadeira 'Ghillie Suit' natural. Estava de costas, parecendo farejar o ar. Longos braços, parecendo os de um orangotango, porém terminados em garras afiadas. As pernas também eram longas e musculosas. O biotipo era quase humanóide. A cabeça, desproporcionalmente grande, tinha orelhas imensas, algo parecidas com as de um cão Pastor Alemão, que se voltavam em todas as direções. A coisa então se voltou, encarando-o fixamente.

O rosto (rosto?) era horripilante, dois enormes olhos que pareciam brasas, incandescentes e vermelhos. A imensa boca abriu-se num esgar, um tétrico arremedo de sorriso. Parecia antegozar um novo e suculento banquete. Avançou um passo, abrindo os longos braços, como se pretendesse abraçar um amigo há muito distante. Aquela coisa de pesadelo avançava calmamente para o Sargento. Este, aterrorizado, caiu de joelhos, deixando, sem notar, que caíssem no chão o seu fuzil, pronto para disparar e o RPG, com a sacola com quatro foguetes. De certa forma, estava conformado: ia morrer mesmo algum dia...

Então, o ser ergueu a cabeçorra e deu um urro ensurdecedor, de gelar o sangue. Bradava sua vitória aos céus...

Por trás da criatura, gritos de guerra e uma chuva de disparos. O Cmt se lançou ao solo, sem tirar os olhos de seu algoz. Este estremecia violentamente, ao impacto das balas. Voltou-se para seus inimigos, tomando impulso para um salto. Então a voz da MAG, programada para rajada em velocidade máxima, se fez ouvir, a uma cadência nominal de uns mil disparos por minuto. Os fuzis a secundaram. A criatura caiu pesadamente ao solo. Como num sonho, o Sgt vou o batedor índio avançar aos gritos com seu facão de mato, enfiando-o selvagemente no abdômen da criatura caída. Com um safanão do longo braço, lançou longe o Paisano. Então começou a se erguer pesadamente. Novos disparos tornaram a derrubar a coisa. A uns dois metros, o Cb. Beronha descarregou um cofre inteiro de munição no peito já dilacerado. O ser urrava, mas agora de dor e medo. Os homens rapidamente trataram de recarregar.

Numa velocidade incrível, o enorme ser virou de bruços, encolheu-se e saltou rumo às árvores, sumindo em segundos. Ainda urrava de dor.


A tropa, agora reduzida a sete homens, seguia a criatura ferida. Aliás, parecia bastante ferida, pela quantidade de sangue que perdia, deixando um abundante rastro.
- Sargento, não se engane: o Guandirô chupou o sangue de dois homens, ainda é muito perigoso, aliás, agora é mais, porque está ferido e isso nunca lhe deve ter acontecido.
- O que sugere, então? Cair fora?
- Não, de jeito nenhum, ele nunca vai nos perdoar. Mesmo que a gente conseguisse escapar, ele nos procuraria até achar e se vingar...
- Como assim, ele voa?
- Não...que eu saiba não.
- Então vamos aproveitar que ele está ferido e fugindo e vamos cair fora.
- Mas senhor...
- Basta: é uma ordem! Coluna por um, marcha forçada até o ponto de exfiltração Alpha.TWITTER


Dois dias depois, chegaram sem incidentes ao bote inflável cuidadosamente camuflado à beira do rio. Embarcaram e partiram rapidamente.
- Só quero ver o que vou botar no relatório...
- Sargento, é só dizer que fomos ao encontro de um inimigo muito mais numeroso.
- Não é tão simples, Bronha: a filmagem mostra só seis corpos, nem o da mulher filmamos...
- Bem...
- Deixa pra lá, vamos dizer a verdade.
- Mas senhor, vão nos enfiar num hospício e jogar a chave fora, que merda!!!
- Vamos arriscar, melhor se ferrar dizendo a verdade do que mentindo. Entenda, Bronha: vamos nos ferrar de qualquer jeito, certo?
- Puta merda!!!
O índio matutava, silencioso. De vez em quando, olhava as margens, olhos apertados, parecendo tentar ver algo. Ali se sentia seguro, nunca ouvira falar de Guandirô nadando...

Mais dois dias depois, ponto de exfiltração Bravo. Apanharam o rádio que haviam escondido ali e fizeram uma chamada para a Base. Cerca de uma hora antes de escurecer, um EC-725 camuflado apareceu, escoltado por um elemento de Hinds. O índio estava nervosíssimo com alguma coisa, olhava para todos os lados, mãos crispadas na arma. Pressentia, mesmo sem ver, que eram observados por olhos cruéis. E famintos...

O enorme helicóptero pousou, os sobreviventes embarcaram e as aeronaves partiram.

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Foi um inferno no Batalhão. Ninguém acreditou no que o Sargento GUERRA escreveu em seu relatório. A Inteligência ouviu a todos em separado. A conclusão: o índio Paisano, com a mente devastada pela bebida e já um conhecido psicótico, contaminara os outros com sua loucura. Foi excluído e internado em um sanatório de Manaus. O restante da unidade foi mandado servir no QG, até se acalmarem. Passaram a ter acompanhamento diário de uma psicóloga do Exército que, aos poucos, os ia convencendo a pararem de afirmar aquelas doidas besteiras. Era claro como a água: o índio, bêbado e enlouquecido, matara os companheiros e depois inventara a história do bicharoco feioso, baseado em alguma superstição tribal. Deviam parar com aquelas bobagens e se preparar para o retorno às atividades normais da tropa.

Com o tempo, começou a parecer fácil acreditar naquilo...

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EPÍLOGO


Madrugada. A cacofonia de sempre. Os loucos urravam sua infelicidade e seus delírios para a lua. O Paisano, em sua cela acolchoada, sentiu um cheiro familiar. Forte e ácido. Estava de camisa de força por ter tentado usar seu treinamento para derrubar os guardas (‘monitores’, assim eram chamados) e fugir, só não tendo conseguido seu intento porque escorregou e caiu, tempo suficiente para dois dos latagões lhe saltarem nas costas e o imobilizarem...

Ergueu-se a custo do chão onde dormia manietado e olhou pela pequena janela, apenas uma série de frestas que davam para o pátio externo da instituição.

Um par de olhos que eram brasas o encarava fixamente, nas trevas da mata próxima. Sorriu tristemente.
- Venha, amigo, qualquer coisa é melhor do que isto...


Quando a parede foi derrubada ele nem se moveu. Na verdade, ofereceu o pescoço à fome do Guandirô, que pareceu algo surpreso pela conformidade da vítima. Mas estava esfaimado, como sempre, e ali havia comida e uma vingança por tirar...

O último pensamento do Paisano foi de pena. Seus colegas seriam os próximos...

O Guandirô já pensava algo diferente: para quê voltar à selva, há muita caça por aqui...
TÚLIO OZONE
Enviado por TÚLIO OZONE em 17/06/2009
Reeditado em 03/04/2023
Código do texto: T1653298
Classificação de conteúdo: seguro
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