A lenda da procissão noturna

Reza a lenda que quando Mesquita ainda era um pequeno povoado com pouquíssimos habitantes, no início o século XX, era comum pelo fato das ruas não possuírem calçamento e tampouco iluminação de qualidade, que as pessoas, os poucos moradores locais se trancassem em casa logo que o sol deixava o céu.

Naquela época a noite não era como hoje, repleta de lugares para se visitar e pulsante, a cada dia da semana fervilhando mais com o acumulo de gente. Não, de fato, Mesquita possuía apenas uma escuridão terrível e um silêncio mortal quebrados apenas pela luz da lua cheia, quando esta surgia ou pelo assobio arrepiante do vento.

Quase toda a extensão do hoje município era tomada por plantações, banana, laranja e outras culturas; as casas geralmente ficavam bem distantes umas das outras, tais casas, aliás, que eram iluminadas apenas por lamparinas alimentadas a querosene e até mesmo os fogões era de lenha.

Poucos dispunham de conforto, somente alguns homens de negócios e donos de terras das redondezas, afora eles todos os demais eram mergulhados em sombra e silêncio durante todas as noites. Apenas duas construções daquela época perduram até os dias atuais; a igreja e o cemitério.

Um vistoso rio de águas límpidas e puras cuja nascente brotava de uma cachoeira também cortava grande parte do lugar por entre as pastagens, plantações e sítios; hoje esse mesmo rio não passa de uma fétida vala negra a céu aberto que recebe todos os tipos de detritos urbanos não tratados.

Próximo do rio vivia o senhor Domenico Francisco da Anunciação, conhecido localmente como Dom Chico. Ele recebera seu nome de batismo em homenagem a São Francisco de Assis, pois sua família fora em outras épocas muito devota; o nome Domenico por outro lado, foi simplesmente pelo fato de ter nascido em um dia de domingo.

Pois bem, Dom Chico morava só e tinha a idade de cinqüenta anos, sem esposa nem filhos, fora abandonado por ambos. Quando jovem seus pais o queriam estudando num seminário, porém ele recusou, então mesmo contra sua vontade foi levado para estudar na capital no Colégio de São Bento que fica ao lado do Mosteiro de mesmo nome, mas Francisco fugiu.

Anos mais tarde conheceu a mulher com quem se casou; ela teve um filho e ambos foram morar em Mesquita, mas como o único emprego que Domenico conseguiu foi o de coletor de frutas no laranjal, sua família não resistiu muito tempo. A esposa fugiu levando o filho ainda novo e desde então nunca mais voltaram a se ver.

Agora Dom Chico trabalhava incansavelmente nas plantações e morava longe de tudo e de todos, evitava qualquer contato com as pessoas após o horário de trabalho; preferia a solidão e experimentava uma vida sem sentido. Seu único prazer era sentar, de noite, dentro de sua pequena casa e fumar um cachimbo, ficava inebriado pelo “perfume” do fumo e assim passava cada uma das noites da sua vida.

Certa feita, quando fumava contemplando o silêncio medonho, Chico ouviu um barulho estranho que se multiplicou rapidamente, eram passos ao redor de sua casa. Aquilo era impossível, pensava ele, sua humilde residência era localizada longe de tudo mais de quatro léguas; àquela hora da noite nenhuma alma vivente se arriscaria na escuridão sufocante que existia lá fora.

Mas os barulhos continuavam, eram passos e se arrastavam de modo cadenciado, marcando algum tipo de marcha; vez por outra um tinir surgia fino e agudo, como se um pequeno objeto de metal fosse tocado carinhosamente por outro. O som era melancólico a ponto de trazer consigo uma sensação inquietante na alma de Dom Chico, e as passadas continuavam em sua marcha rumo a lugar nenhum.

Com uma lentidão que na verdade era produzida pelo nervosismo, Chico apagou as lamparinas de sua choupana e aguardou por mais alguns minutos, na esperança de que a procissão de pessoas andando frente a sua humilde residência finalmente se concluísse, mas não aconteceu.

Foi ali às escuras que ele percebeu fachos de luz tremeluzentes passando por sua janela e sendo filtradas pelas cortinas rústicas colocadas apenas para que ele não visse o breu da noite. Sorrateiramente afastou parte do pano que estava na janela, tomando todo o cuidado para não acabar fazendo algo que chamasse muita atenção e teve a visão mais insólita de todas até aquele momento de sua vida.

Uma grande quantidade de pessoas andava carregando tochas bruxuleantes, todas seguindo para a mesma direção, mas uma coisa não estava certa, não eram pessoas comuns e sim esqueletos animados, seres humanos despidos de todos os tecidos do corpo, sem pele, nem carne, nem músculos ou tendão algum, como que mantidos vivos ou semi-vivos por alguma magia desconhecida dos homens. A visão tenebrosa era mais do que o suficiente para fazer uma pessoa tremer e de fato foi o que aconteceu; Dom Chico pensou estar ficando totalmente louco e beliscou a si mesmo para ter certeza de que aquilo não era um sonho, ou pior, um pesadelo.

As criaturas continuavam em sua marcha lenta e constante, dirigindo-se sabe Deus para aonde como se nada as pudesse deter e ignorando completamente o olhar oculto do homem dentro da velha casa, na verdade pareciam até mesmo ignorar o fato que tornava toda aquela visão insólita e medonha numa realidade bizarra. O fato de que estavam todas mortas.

Esse foi apenas o primeiro relato de que se tem notícia, contado pelo próprio à algumas pessoas que, claro, o taxaram como louco, Domenico Francisco desapareceu sem deixar vestígio algum pouco tempo depois. Ninguém mais o viu e chegou até a se cogitar a possibilidade de ele ter se unido à caminhada dos não vivos ou ter sido levado por eles; jamais saberemos.

Com o tempo e o passar dos anos outros mais; pessoas totalmente desconhecidas entre si relataram a mesma experiência e foi assim que a história tornou-se uma lenda ainda hoje contada nas noites de Mesquita.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 18/06/2009
Código do texto: T1654395
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