CANÇÃO DOS PÁSSAROS MORTOS

Seus olhos vítreos fitavam a cobertura ondulada do teto de gesso. Movimentava lentamente a cabeça para os lados, encontrava os troféus inertes fixados nas paredes. Inexpressivas e indiferentes figuras. Quase não sentia dor, seus músculos já estavam entorpecidos e entregues, desejava sentir o golpe final daquela que a levaria a um lugar melhor, assim esperava.

Mas, a misericórdia não vinha, sentia seu abdome ser aberto lentamente como se um alicate afiado e cruelmente manipulado se encarregasse de causar-lhe a maior agonia possível. Uma lágrima escorria pela lateral de seu rosto, mesclada com o suor gelado de sua têmpora, indo chocar-se com a cobertura de peroba enegrecida e envernizada que revestia o assoalho.

Tinha a impressão de ouvir as notas distorcidas e desafinadas de um bandolim, o mesmo som que ouvira quando adentrou as matas fechadas daquele lugar esquecido. Ele queria aquele prêmio, desejava ostentar em seu mural a prova de que a busca de sua vida não fora em vão. Apesar de já possuir tudo que alguém do seu ofício pudesse imaginar, ele queria mais, precisava de algo maior, aquilo que ninguém mais teria.

Desde a sua infância sempre fora instigado pelas estórias e contos que seu velho avô lhe contava, ficava imaginando a possibilidade real de poder tocar, poder sentir e ter tudo aquilo que sempre lhe fora descrito com riquezas de detalhes. Não havia ninguém com ele, apenas o seu rifle, velho companheiro de longas e diferentes aventuras ao redor do mundo, em uma época em que tudo era mais livre e sua atividade não era apontada com os olhos e dedos acusadores do falso moralismo moderno.

Ele inspirava o ar quente e seguia seu instinto, não sabia a origem daquela maldita melodia que parecia dizer-lhe de uma forma insana: “Não entre aí! Nada de bom te aguarda nesse lugar!”

Ignorando o que parecia ser um aviso, ele seguiu pela gruta, parecia uma personagem das antigas narrativas do sábio mestre e avô, sim, ele estava certo, o lugar existia...

Gotas grossas de um líquido gelatinoso caíam do teto rochoso, lembravam água, mas definitivamente não se tratavam de tal, a consistência e o odor contradiziam a aparência. Cautelosamente se aprofundava mais na garganta incrustada na pedra, inscrições e desenhos de uma era perdida enfeitavam as laterais.

Conforme andava, o calor aumentava, mas ele não desistia, seguia em frente com a mesma determinação que sempre lhe marcara. Sem qualquer vestígio de roupas, com a planta dos pés em contato com as rochas escaldantes, só se valia do apoio do cabo de madeira do fiel companheiro. Sentia seus órgãos serem cozidos, sangue vertia de seus poros e imediatamente secava e manchava a pele ressequida, dando a impressão de um único e imenso hematoma.

Deparou-se com uma ampla e mal iluminada câmara. Seu prêmio estava lá. Inúmeras pedras multicoloridas, pepitas de um dourado reluzente, muitas, a perder de vista. Sobre a pilha estava uma pequena estatueta. Uma estranha ave de asas abertas, não reconhecia o tipo de material da qual era feita. Mas, não se atentou para isso. Sua preocupação era outra, ao redor de toda a câmara estavam centenas de pássaros, todos ameaçadores, negros, das patas aos bicos.

Imediatamente à frente do monte dourado estava o maior e mais intimidador de todos. Ele sabia quem era. Engatilhou o rifle. O pássaro pareceu falar-lhe diretamente à mente e dizia: “Não tema estranho, você fez por merecer. Pegue o que quiser e vá embora, com exceção da relíquia, você pode pegar o que quiser”.

O homem sabia que sim, ele tinha plena consciência de que tudo estava ao seu dispor. Com um movimento rápido e preciso, com um só braço, emitiu um disparo certeiro no meio do peito da gigantesca ave negra que tombou imediatamente sem vida. Todas as demais bateram as asas e se espalharam de forma desorientada, muitas procurando uma saída do lugar profanado pelo intruso.

Tomado por uma fúria incontrolável e pela necessidade de auto-afirmação, ele buscou a mochila largada metros atrás, já não sentia calor ou qualquer outro incômodo. Sacou uma lâmina afiada e começou a arrancar as vísceras do animal com pressa e descontrole, puxou palha e outros enchimentos, com técnicas rústicas de taxidermia preenchia o corpo do pássaro enquanto gargalhava de maneira alucinada.

Vencedor e satisfeito deixou o local, com os frutos colhidos viveu trinta luas da maneira como sempre quis. Seu troféu mais precioso, o gigantesco pássaro, enfeitava o topo da lareira. Mas, nos últimos tempos começou a ouvir aquele ruído, uma canção triste há muito esquecida. Dia e noite, noite e dia, sem cessar, os acordes repetiam, ainda que sem voz a acompanhar: “Não há nada para você!”...

Ele se questionava sobre sua lucidez, os olhos perolados da ave pareciam querer devorar-lhe vivo...buscava solução através do chumbo do velho amigo, mas enfrentar a si próprio era infinitamente mais difícil do que encarar feras sanguinárias nos locais mais longínquos. Num ato de desespero se atira no chão contorcendo-se pela luta travada contra a força interna que lhe consumia.

Os pássaros, eles estavam lá...atacavam-no com ímpeto, os bicos afiados abriam-lhe a barriga e devoravam seus órgãos de forma voraz, ele gritava e clamava por clemência, um perdão que não viria. Seus empregados tentavam ajudá-lo e não entendiam por que o patrão se debatia de maneira enlouquecida no chão como se algo o atacasse.

Ele não via ninguém, só os bichos arrancando pedaços de sua pele, trazendo palha e gravetos nas patas, recheando com o material os espaços antes ocupados por suas entranhas...

Já não sentia dor, a dormência o dominava, um médico chegava para auxiliá-lo, mas ele não o enxergava, conseguia apenas visualizar o sorriso macabro do pássaro negro sobre os tijolos vermelhos. Por que seu avô não falou nada sobre isso? Por que....

O médico e os empregados ficaram estarrecidos com a morte incomum e apavorante do homem. O olhar fixo. A convulsão. Ferido pelas próprias unhas. Tomado pela histeria, como se algo o atacasse...

Eles não sabiam...ele não sabia...no interior do recém cadáver um invólucro de camada fina e branca se rompe fornecendo a liberdade a um novo ser de plumagem tão escura quanto a morte que pairou sobre o local.

O pequeno ser faz o percurso inverso no aparelho digestivo do homem, se alimentando dos tecidos que encontra pelo caminho chegando até a boca entreaberta, buscando o espaço livre e causando pânico e estarrecimento aos presentes.

O demônio alado vive mais uma vez e agora está solto em um mundo cheio de possibilidades e alimento. Os acordes do bandolim se misturam com o grasnar do bicho, seu chamado clama pelos séquitos e pela morte.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 24/06/2009
Reeditado em 23/11/2009
Código do texto: T1665020
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