IRMANDADE ETERNA

A luz tênue oriunda da dama da noite incide diretamente sobre meus olhos acelerando a atividade de uma consciência livre de descanso. Minha usualmente exímia percepção deixou escapar o nível atingido pelo crescimento incomum da relva que se esparrama diante de minha morada, noto que o curso da natureza é imensurável.

Meus irmãos ainda usufruem do sono maldito, do descanso sem renovação. Eterna vigília que não nos deixa apreciar de forma plena as possibilidades que outrora dispúnhamos e desprezávamos, amarguras de corações intangíveis.

O raio de alcance da minha visão sem pálpebras percebe os contornos de duas silhuetas aproximando-se com passos melindrados. Há tempos que não vejo ninguém. Infortunado destino. Tristes e incautos andarilhos...

Torço com todas as forças, que quero acreditar possuir, para que não profanem o reduto sagrado. Peço que suas jovens almas os livrem de tão tolo sentimento; curiosidade, armadilha ardilosa para os desavisados e céticos...

Portões e grades, instrumentos meramente ilustrativos perante a vaidade e arrogância humanas, o tempo para eles acabou por tornar-se o maior de seus inimigos. Os fatos iminentes a acontecer já foram por mim presenciados inúmeras vezes, agora só me resta rezar para que a frágil estrutura de seus corpos não resista, e que eles possam encontrar o abraço gélido da emissária, que o toque de sua lâmina os forneça paz...

Eles me enxergam, mas não me percebem em essência, a admiração e sorrisos logo serão substituídos, eterna rotina...

Não preciso olhar para os movimentos que executam para saber o que acontece. Eles estão circulando pelo interior da casa, a fascinação pela arquitetura e decoração os absorve...ah, o grito da moça informa que a revelação teve início...

O carpete de pontas afiadas com ferro em brasa perfura a planta de seus pés e queima a frágil esperança. A rota de fuga torna-se um caminho tortuoso. O som das vozes atormentadas corrói a pureza de suas almas e estoura os despreparados tímpanos, a palidez da tez é lavada pelo rubro arrancado a força. Seus olhos não estão preparados para ver o horror do percurso dos desafortunados. Eles enfrentam as lâminas afiadas do solo em busca da passagem para o exterior, gostaria de avisar-lhes que o pior está por vir...mas não posso, minha voz há muito fora calada.

A fuga da casa é bem sucedida, apesar de pele e músculos estarem dilacerados, corpos fortes, infelizmente...

Atravessam o jardim, meus irmãos despertam com os gritos, triste espetáculo para uma platéia tão desgraçada quanto...

As raízes milenares nutridas pelo fogo eterno do reino amaldiçoado agarra seus tornozelos, tornando impossível qualquer chance de escapatória. A dor é insuportável, sei bem como se sentem, as pequenas partículas do solo maldito, sagrado para os perdidos, começam a atividade para a qual foram destinadas, agora não vai demorar...

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Novamente o luar, infindável sina...meus irmãos ainda dormem, os novatos acordarão confusos, sempre é assim...

Vejo que novos visitantes nos observam, nunca aprendem...

- Veja, meu bem, que lugar estranho. Todas essas estátuas, elas são tão reais, transbordam uma expressão de aflição...

- Para mim parece dor e tristeza...

- Vamos entrar na casa...o local está abandonado mesmo...vamos, estou curiosa para ver lá dentro...

- Você e suas manias...vamos...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 26/06/2009
Reeditado em 23/11/2009
Código do texto: T1668402
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