O AVEJÃO

O local não fora escolhido a esmo. A escolha havia sido feita há dois dias. O ancião passou direto pela recepção e subiu as escadas. Movia-se lentamente. A perna direita, mirrada que era, fazia-o claudicar. O homem parecia estar resignado com sua incapacidade física. Mas seu rosto denotava um sofrimento contido, reprimido. Entrara na pensão mais imunda que achara. Não era falta de dinheiro. Era falta de coragem. O quarto era miserável; exatamente o que procurava. Achara, há dois dias, o que procurava há semanas. Nem tocara o interruptor de luz. Queria habitar a escuridão.

Havia acendido uma vela e, sofregamente, arrastado a mesa para perto de uma janela. Sentara e pensara em escrever uma missiva que explicasse todo o ocorrido; a explicação do médico sobre o câncer de pulmão; as reduzidas chances de cura, as hediondas dores oriundas do tumor maligno, enfim... relatar os pormenores. Mas havia se detido no destinatário. “Quem seria o destinatário?” – ele falara com voz rouquenha enquanto equilibrava o cigarro nos lábios murchos.

Abandou tudo e regressou à rua. Ganhou a noite. Iria pensar em alguém. Antes, porém, colocara algumas folhas sob o rústico castiçal, na velha mesa. Precisaria da ínfima iluminação de uma vela para relatar os fatos. Assim, os transeuntes do corredor e da rua não desconfiariam de nada.

(...)

Quando retornou ao quarto, viu a mesa que deixara antes de sair, a forma trapezoidal que ainda suportava a delgada vela, a única luz viva no cômodo. A cera quente já havia gotejado algumas vezes no papel. O resto era somente o mais escuro dos breus. À luz da vela seria melhor, mais assustador para outrem. O impacto visual seria ótimo.

Regressara com um destinatário em mente. Poderia ser o tetraplégico que vira sendo carregado numa cadeira especial por um auxiliar de enfermagem. Havia feito amizade com Julius, o auxiliar. Então soubera que o doente chamava-se Alex e vivia em companhia de uma irmã e um cunhado. Poderia ser o próprio auxiliar de enfermagem, Julius. Poderia ser o recepcionista que traficava maconha e cocaína na recepção da lúgubre pensão, na calada da noite. Poderia ser qualquer um. Então, o destinatário seria: “Ao primeiro que chegar”.

O velho Elliot permanecera parado, junto à mesa, por muitos minutos. Achou deveras estranho ainda não ter sentido as terríveis dores no estômago. As dores que, com certeza, precederiam o óbito. Caminhou na escuridão como um ser fantasmagórico. Subitamente, percebeu que não mancava mais.

Sentiu-se rejuvenescido. Tentou segurar a caneta e deixar os detalhes de seu sofrimento registrados, mas sua mão trespassara a antiga mesa. Um vento soprou e as folhas farfalharam sob a candeia. Sombras zombeteiras bailaram ao fundo. Em vão, quis agarrar a candeia que suportava a vela para iluminar a janela e ver a origem daquele minuano, já que a noite estava parada sem nenhuma corrente de ar. Sua mão também não conseguira segurar aquilo que iluminava debilmente o local.

Para sua completa incredulidade, percebera que atravessara a mesa como um espectro medonho. Era um avejão atormentado pela consciência imorredoura que não se esvaiu com a extinção de seu corpo físico.

Na malograda réstia de luz da vela, viu seu corpo estirado no chão. Os cabelos espalhados no solo carcomido por cupins. As mãos crispadas em razão da pungente dor que o arsênico trouxera minutos após sua ingestão.

Depois, com a boca aberta e as mãos espalmadas, recuou de horror. Algo tão anoso como o próprio mundo ofereceu-se pela quadrática janela. Os sons de ossos contra ossos foram ouvidos pelo espírito do velho Elliot. A bruma assustadora chegou rápida e decidida. Um sem-número de rostos antigos vieram apensados à nuvem fantasmagórica. Elliot, o avejão, tentou precipitar-se pela porta. Mas foi acossado pelo inesperado visitante.

Quando se virou, viu uma massa informe extorquindo-o paulatinamente pela perna direita que outrora era mirrada.

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1 - Conto escrito para o segundo exercício de contos baseados em imagem do fórum da Câmara dos Tormentos.

2 - Acesse www.arquivodobarreto.com para ver a imagem em que vários autores se basearam para participar do exercício. Ou copie

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