A Última Vítima

A uma certa luz a pedra crescia e tomava jeitos de morcego. Pesada e enorme, era negra de sombras. A sul não passava do que parecia, um monólito ali jogado séculos antes pela fúria da terra. Riscada a fogo, temperada de sol e vento, curtida pelas muitas chuvadas que alimentavam os rios e a vegetação densa da serra, ganhou expressão mítica e, há décadas, aterroriza as populações. Sob a mira nortenha seria um gigante como Golias, um mago como Zoroastro ou Jarad, um ser de outros espaços, um diabo da legião de Lúcifer, um anjo que se cansou de voar, na interpretação mais suave de Adrião, ali nascido e criado, ali solto para enrijar e crescer.

Medos Adrião não tinha. Perdera-os varando a floresta, caçando gamos, bebendo das mãos em concha a água cristalina que escorria pelo roteiro de avencas e limos. De Verão via a cidade aninhada junto ao mar, a quilómetros dali. Se chovia, abrigava-se na gruta a que o povo chamava boca de Hermes, o mago. Via as aves cruzar o céu, as nuvens a arder sob os ocasos e, ainda que raras vezes, a festa da mata sob um luar frio de Janeiro. Como não convivia com a gente lá de baixo, não sabia dos factos, dados como provados, sobre os rituais que ocupavam as descrições de quem, sabendo narrar, assustava os auditórios na tasca do Amadeu.

A pedra seria o palco de encontros que aconteciam em noites marcadas. As orgias trariam à serra vampiros de muitos lugares e as parcerias, raptadas de casas, montes e ruas, eram jovens fortes, saudáveis, belos como Ganímedes ou Pélope, como Afrodite ou Psique. Madurões também serviam na luxúria mas nunca o seu sangue impuro. Usavam-nos mas não os mordiam. Daí que regressassem ao povoado sempre mudos, como se quisessem esquecer humilhações e agravos. Ninguém ousava fazer-lhes perguntas mesmo que as palavras subissem às bocas e queimassem as gargantas como labaredas. Inquiriam-nos com o olhar e ficavam a meditar nos enredos que, chegados ao Amadeu, eram acertados segundo a crença e o desejo da freguesia. Uns gostavam de se arrepiar com aventuras sanguinárias e violações torpes, outros excitavam-se com a visão colorida das sensualidades e, os mais incrédulos eram, em desespero de causa, apresentados aos amuletos trazidos de espólios antigos e feitos com pele de cabra, pêlo de homem e cheiro íntimo de mulheres no mênstruo…

Mas… Adrião não sabia de nada. Evitavam-no e temiam-no. Ganhara fama de bravo na pancadaria mas nunca partilhara o vício dos machos mesmo sendo tido como um belo exemplar capaz de honrar compromissos, se os houvesse. Ele seria o elemento de prova essencial bastando, para tanto, convidá-lo a fiscalizar a serra e a Pedra durante a Lua Cheia e no minguante seguinte. Vigiaria as noites, tomaria nota de ruídos, analisaria os ventos, as luzes, os cheiros e lhes daria conta do que viesse a assistir, em reunião a agendar o mais breve possível.

Por economia de letras, saltemos sobre os preparativos de Adrião e do seu necessário convencimento para a tarefa. Recebeu parte da compensação em bebidas fortes, parte em trigo, parte em agasalhos de lã. Depois, firmado ao seu bordão de pastor, passou a tocar modinhas na gaita-de-boca, no promontório de Leste, para ver o que se chegasse à pedra em noites excepcionais. Ria-se para dentro com as história em que o Amadeu fazia jorrar sangue de gente que se finava, em tons de marfim, enquanto se combustava de puro gozo. Os vampiros eram, na sua maioria, altos, belos e ousados, até ao esgar do riso que lhes fazia crescer os caninos. O mesmo se poderia dizer das vampiras, todas muito carnudas, rosadas e rijas, amorosas, claro está, até à delícia final. Aí eram todos muito iguais e o sangue sorviam-no a goles ávidos, como de costume.

Na véspera de Lua cheia, o jovem Adrião ainda voltou á pedra, ainda se sentou nela a tocar, ainda se enxugou ao sol depois do banho, tão nu como Apolo no reflexo da água do poço. Depois, só para cumprir o trato, se escondeu para a vigília. E veio a noite. A Lua, enorme, era um portento de luz a rasar a serra, a revelar todas as covas e luras da encosta, a denunciar movimentos…

E eles viram-no, doparam-no, arrastaram-no para o alto da falésia onde a Pedra se ampliava em asa, levitando nos sonhos e sobrepondo-se ao silêncio. Isto garantia Amadeu que, para se certificar que Adrião vigiaria, se decidiu a fiscalizar-lhe o modo e a arte. Eram muitos, mais de cem, homens e mulheres, todos trajados de negro, envoltos em capas, brilhando sob a chama dos archotes. Dominado pelos mais fortes, Adrião ficou exposto ao meio. E dançaram, beberam, tocaram. Em grupo ou aos pares, amaram-se entre si. A seguir sortearam-se os novos, os iniciados, os eleitos. Maria Zoraida, do Lugar de Santo Estêvão, coube ao mais velho da turma, Ana da Adega calhou ao segundo e, após a restante distribuição, dois dos vampiros reivindicaram a posse de Adrião, o pastor. E amaram-lhe o rosto, amaram-lhe o corpo. À luz da Lua, no alto da Pedra, no centro da roda. Amorosos todos, apaixonados ainda, faziam alegre o seu padecer. Beijaram-lhe a boca, afagaram-lhe a cabeça, beijaram-lhe o rosto sem o morder mas terminava a noite e o fim já se adivinha. O sangue não bastou para tanta avidez e Adrião, qual estátua jacente, morreu exangue sem ter tempo para voltar vampiro à serra natal.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 10/09/2009
Código do texto: T1802714
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