Um desventurado domingo

A orla da Ponta Negra, em Manaus, está voltando ao seu normal, após a última cheia do rio Negro, a maior da história, ultrapassando as marcas alcançadas em 1953. Tem gente que se lembra daquela cheia, e todos concordam que a deste ano foi bem pior. Mas a Ponta Negra está voltando a ser uma das boas opções de passeio e lazer na cidade, ponto de encontro de jovens, famílias, turistas – de todos os lugares do mundo, de todos os tipos – e as mais belas “scort girls” do Norte do Brasil.

A feirinha de artesanato voltou a abrir aos domingos, os bares da orla voltaram a ser freqüentados, tanto os para turistas, com preços em dólar e euro, quanto os mais humildes, com cerveja barata e som ambiente tocando os novos sucessos do bolero, forró e calípso. No principal dos bares para turistas da orla da Ponta Negra, estavam voltando as dançarinas vestidas como índias, com suas brilhantes plumas azuis, dançando ao som das flamantes músicas do boi vermelho e branco de Parintins.

À medida que o sol desce sobre o rio, a noite desce, as famílias começam a recolher-se, porque amanhã é segunda-feira, dia de São Pega, dia de pegar no batente, novamente. Os ônibus lotados de gente úmida, seja de suor, seja da água do rio, e os carros de passeio ensaiam um congestionamento na avenida principal, pegando a estrada em direção à zona centro-sul da cidade. Algumas famílias, geralmente de turistas estrangeiros; paulistas, catarinas, baianos, americanos, europeus, japoneses, persistem mais um pouco, afinal estão de férias e amanhã podem acordar na hora do almoço. Permanecem, então, os turistas estrangeiros, solitários ou em grupos, bebendo chope com uma porção de batatas fritas, ou experimentando a nossa típica caipirinha. Em torno dos viajantes solitários, as belas acompanhantes de que falamos, com olhares e sorrisos provocantes, menear de cabelos, cruzar de pernas, decotes realçando os seios, saias curtas, ou calças extremamente justas, realçando as pernas e região lombar.

Franz, um jovem executivo austríaco, adora vir a Manaus. Trinta e poucos anos, cabelos loiros da cor da palha de milho, olhos azuis muito grandes, nariz comprido e rosto estreito que lhe conferem uma cara de rato, casado, pai de duas meninas, uma de 14, outra de 9 anos, residência fixada na pequena Eisenerz, há nove anos trabalhando para uma grande empresa alemã, como representante na América do Sul, principalmente o Brasil. Franz sempre aproveita suas viagens pelo Brasil para conseguir boa droga e mulheres fáceis. Franz adora ir à orla da Ponta Negra, em Manaus, principalmente nos finais de semana, à noite, para “conquistar” gatinhas e levá-las para seu quarto num hotelzinho meia-boca no Centro da cidade.

Franz ia há tanto tempo lá que todas as acompanhantes lhe sorriam e lhe cumprimentavam, algumas vezes antigas “conquistas” suas lhe apresentavam meninas novas, quase sempre vindas do interior. Mas nesta noite, Franz estava observando uma garota que ele nunca tinha visto. Uma beleza exótica, pelo menos ali. Grandes olhos castanhos, às vezes parecendo-lhe avermelhados, cabelos ruivos muito intensos, volumosos, caindo-lhe às costas, a pele branca parecia brilhar à luz da lua. Discretamente lhe lançava olhares e sorrisos, cruzava as longas pernas, meneava a cabeça, como se o convidasse para sua mesa.

Por volta das onze horas da noite, Franz entornou o sexto chope, fechou a conta da mesa que ocupava, aí então foi para a mesa ocupada pela bela jovem que secava desde que havia chegado ali. Apresentou-se, falando português igual ao rapaz “rigorosa” dum comercial de uma indústria de automóveis alemã, sendo cumprimentado pela jovem lhe sorrindo e falando um alemão perfeitamente fluente. Franz ficou bastante satisfeito, pois não precisou falar em português com aquele sotaque “horrorosa”, ela falava a sua língua! Perguntou seu nome: Patrícia, disse ela. Tinha a voz baixa, rouca e profunda, sensual como a voz do sistema de som do aeroporto. Comentou com ela que sempre imaginara aquela voz, naquele corpo, perguntou se ela nunca havia trabalhado em aeroportos. “Tinha vontade”, ela comentou displicentemente. Mais dez chopes, três consumidos por ela, sete por ele, e Franz a convidou para irem à sua suíte, no hotelzinho fuleiro no centro da cidade. Convite aceito, Franz pagou a conta da mesa, pegaram um táxi até uma área meio sombria do centro de Manaus, próxima ao Palácio Rio Negro. Desceram em frente a um hotelzinho na rua José Paranaguá, Franz pagou o taxista, e foram logo para sua suíte.

Patrícia pediu para banhar-se, e Franz indicou o banheiro. Enquanto ela se despia e ligava o chuveiro, ele pegou na pochete que carregava no sinto uma seringa, um cordão e um papelote da melhor pasta base oferecida na Colômbia. Colocou o pozinho brilhante numa colher de sobremesa que retirou da mala pequena, aqueceu-o até derreter, colocou na seringa. Quando preparava-se para injetar a dose, ouviu a voz dela, do chuveiro, pedindo para ele ir banhar-se com ela. Franz teve um minuto de incerteza, mas teve a impressão de ouvir uma voz a seu lado: “Calma, man, ela não vai fugir. Toma só essa dose, ela pode esperar!”

Franz sorriu, concordando com o que julgou ser sua voz interior, procurou a veia, enfiou a agulha, puxou um pouco de sangue para dentro da seringa... sentiu uma sombra projetar-se sobre ele, olhou para cima e viu os olhos de Patrícia brilharem de uma forma estranha, agora vermelhos como o sangue. Nem seu corpo perfeito, molhado e enrolado na toalha lhe chamou tanta atenção quanto aquele olhar sanguinário. Ele só conseguiu murmurar uma palavra em alemão: “was...”

Viu os olhos dela, as pupilas muito abertas e muito vermelhas fitarem-no com fúria e desespero, sem entender exatamente o porquê, no segundo seguinte viu ela fitar alguma coisa, há alguns centímetros sobre seu ombro direito. Os olhos dela perderam o brilho, tornaram-se subitamente opacos, cheios de um terror mortal. Ela abriu a boca, foram milésimos apenas, mas ele pensou ver longos caninos projetarem-se da mandíbula superior, caninos que não havia notado antes, e depois... um ruído seco, a cabeça de Patrícia espocando como uma bexiga d'água, sangue respingando sobre o frigobar, a mesa, o piso, a parede, a tela da tevê, ligada num canal erótico.

Completamente desnorteado, Franz levantou-se, a seringa caiu no chão, a agulha ficou presa em seu braço, mas ele não sentiu, não sentia nada, rodou em torno de si mesmo, cheio de pavor. Só repetia: “o quê? O quê? O quê?”. Viu então, próximo à porta, mal-iluminada pela luz da tevê, uma figura... pareceu-lhe um homem, com olhos tão negros que não se viam as pupilas. Foi tudo muito rápido, quando ele tentou fixar o olhar na figura, não havia mais nada ali. Franz foi até a cama, e no criado mudo ao lado pegou o interfone que ligava com a portaria. Levantou o fone, ouviu a voz sonolenta do moço dizendo, forçando alguma jovialidade: “Pode falar seu Franz, o que o senhor quer?”

“Chama o polícia, Marquinho! O moça... o moça que veio comigo... foi 'assassenado'”!

Marquinho, o moço da portaria, fez o que Franz lhe pediu, ligou para a polícia, mas fez a denúncia sem muita convicção. Os PMs da ROCAM chegaram por volta das nove horas da manhã, foram entrando no hotelzinho com arma em punho e mostrando o distintivo, bateram em todas as portas de todas as suítes, acordaram hóspedes, assustaram casais de amantes, pegaram uns senhores com meninas menores de idade vindas do outro lado do rio pelas balsas do porto do São Raimundo, mas quando chegaram à suíte de Franz, o viram sentado na cama, os olhos arregalados, com grossas olheiras. Encontraram a droga, a seringa, o material com que ele injetava a coca. Não encontraram nenhum corpo, nem as roupas, nem a toalha com que ele a vira enrolada pela última vez. Nem as manchas de sangue, nada. Os policiais concluíram que o alemão tinha se chapado tanto que imaginou matar a garota, que deve tê-lo visto apagado, ou qualquer coisa assim, e dado o pira dali. Franz, portanto, foi apenas detido por posse de drogas e liberado após 24 horas, quando ligou para um superior seu, afim de pedir demissão. Resolvera que iria se tratar do seu vício e que não voltava mais a sair da sua cidade, do seu país, quanto mais para vir ao Brasil. Ligou para a esposa, contou tudo o que fazia quando viajava a trabalho, o consumo de drogas, as noitadas bebendo cerveja e transando com acompanhantes de luxo, principalmente no Brasil. Estava se penitenciando, mesmo assim parecia pouco. Aqueles olhos negros, aparentemente sem pupilas, o perseguiam, e perseguiriam pelo resto de sua vida, pareciam ter tocado no lado mais negro de sua alma. Isso lhe impressionou muito mais do que o olhar faminto, furioso e desesperado, tinto de vermelho, de Patrícia, mais que a cabeça dela estourando feito balão de festa. Ele entendeu que a voz que ouvira naquela noite não era sua voz interior, na verdade pertencia àqueles olhos. Os mesmos olhos que ele sentia sobre ele agora, a milhões de quilômetros de Manaus, de volta à Áustria, de volta ao aeroporto de Viena... pela última vez.

Ayrton Mortimer
Enviado por Ayrton Mortimer em 30/09/2009
Código do texto: T1840509
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