E Todo Aquele Sangue...

Eu não sabia por que essas coisas aconteciam comigo. Não sabia por que, em determinados dias em que a princípio não haveria nada de especial, e sem nenhum motivo aparente, o horror sangrento invadia as minhas retinas, os meus tímpanos, as minhas narinas. Eu não sabia por quê. E saber por que era o que eu mais buscava em minha vida...

Em alguns canhestros e funestos dias, diante das matas mais exuberantes, diante dos campos mais vastos, um fogo sanguinolento derramava-se como uma maldição por toda a vastidão que me defrontava. Surgiam olhos alarmantemente vermelhos nas árvores, e eles fitavam-me desesperados e gotejavam sangue. Ao longe, bem ao longe, um cavaleiro trazia uma trombeta. Sangue se derramava das patas retumbantes do cavalo de olhar sedento. Sangue se derramava dos cabelos incendiados do cavaleiro. E um trovão soou, seco, cortante. E o trovão nascia da trombeta do cavaleiro. E o seu cavalo ria. Era um riso sangrento, sangue que evaporava de seus dentes de tigre.

E um grito de morte úmido de sangue assomou-se devastador da mata. Naquele grito morriam todas as mortes. Bradavam todas as ânsias. Aquele grito lancinante de vingança obrigou-me a fechar com as mãos os meus ouvidos. E quando retirei as mãos, estavam em carne viva, sangrando copiosamente. Algo, então, atraiu minha atenção de forma ominosa. Voltei-me para trás e contemplei o fim dos horizontes. Tormentas vermelhas despencavam sobre os campos infelizes cobertos de cadáveres de milhares de animais de todas as espécies. E o seu sangue gerava rios. E os rios atingiam férvidos os meus pés. Horizontes em fim. Quentes de sangue. Soava e sangrava a trombeta. E as folhas pegajosas de sangue, do sangue vivo de todas as tragédias, caíam sobre a minha cabeça. E olhei para as árvores, e elas não tinham mais folhas, e seus olhos estavam fechados e costurados com fios de prata. E eu queria saber por que essas coisas aconteciam comigo...

E em alguns canhestros e funestos dias, diante do mar, eu via o sol em um fogo doentio e febrento cair e afundar nas águas turvas de um sangue perturbadoramente cintilante. Um anjo sanguinoso, férvido e sem misericórdia, ceifava as águas com uma espada flamígera. E toda a vida dos mares assomava irremediavelmente agonizante à superfície em violência de ciclones. E as águas dos mares eram túrgidas e convulsas de um sangue frio como um coração sem alma. E eu sentia que meu peito se abria, e dele escorria ainda mais sangue. O meu sangue de hemácias exaustas. Olhei para meu peito e vi meu coração partido. Em seguida, olhei para os mares e só pude chorar. Claro que chorei sangue. Mas era um sangue negro, um sangue repulsivo.

E novamente a trombeta soou e cortou meus tímpanos. E o cheiro de sangue da trombeta e o odor de sangue do mar ressecaram minhas narinas estertorantes. As águas do mar se abriram como o mar de Moisés, e eu vi o seu leito entristecido. E o seu leito era um abismo infinito de onde surgiam cânticos vermelhos de um inferno de desesperos. E um fogo fulvo como a guerra queimou a angústia de minhas retinas. Uma súbita lufada de medo soprou com hálito de fim e varreu sem piedade a totalidade do mar sangrento. Então me acordei. E não pude ver os esqueletos gementes que se ergueram com adagas e cortaram minha cabeça que sangrava. E eu queria saber por que essas coisas aconteciam comigo...

E em alguns canhestros e funestos dias, a noite caía mais rápido, caía pesarosa sobre meus ombros, em uma queda de vertigens que vibravam sanguinolentas nos éteres escurecidos. Pelo espaço imaculadamente negro, as estrelas expiravam asfixiadas no sangue cósmico das galáxias distantes. A lua escarlate menstruava incessantemente sobre a terra. A terra inteira ribombava com inexplicáveis explosões sanguíneas. Um laivo de sangue surgiu de súbito na escuridão e respingou em minha roupa. Eu podia sentir o gosto doce do sangue atingir a minha alma.

E um pesadelo despencou sobre minhas esperanças e as esmagou. Era um pesadelo sólido e noturno como um cometa de doença que passasse reverberando e espargisse pelo silêncio um vírus fatal por sobre a civilização. Uma moléstia em que se falecia esvaído em sangue. Vibrações de vozes fantasmais carregavam-se nos ares úmidos de sanguinosa névoa lunar. Deixavam avisos sentenciosos. Então, ferozmente, uma infinda estrada de desolação foi absurdamente construída diante de meus olhos enfebrecidos. E eu deveria segui-la. Seguir a estrada de sonhos sangrados que mergulhava na escuridão vermelha. O que reservaria aquele destino de sangue?

E quando eu caminhava sobre o pó da estrada pegajosa de sangue coagulado, ouvi na minha retaguarda passadas brutalmente rápidas que em assombro se aproximavam de minha tristeza. E ao dirigir meus olhos à escuridão que ameaçava minhas costas, lobriguei um lobo monstruoso de olhos de incêndio sangrento. Sua saliva era chamas. Mas ao cair no chão era sangue. Corri com todas as minhas forças por entre a densa e nervosa névoa sanguinolenta, porém escapar ao incêndio do lobo era impossível. E soou a tensão plangente de uma flauta sem amor por entre a lua menstruada. Aquela melodia cadenciada como morte lenta invadiu sensual e langorosa o silêncio tumultuado da noite. E uma fada escarlate em volúpias nefastas de sangue manchou minha fronte com um selo fatal. Beijou meus lábios derramando rosas. Rosas de sangue inebriadas de catastróficos venenos. Puxou-me pelo braço e, enquanto a flauta executava valsas mortais, dançamos alguma coisa extremamente perigosa. E enquanto o vermelho do amor agonizava em vapores sulforosos e chamejantes, o delírio da fatalidade escorria em sangue de meus lábios dilacerados. E eu queria saber por que essas coisas aconteciam comigo...

E em alguns canhestros e funestos dias, eu olhava para o céu e havia algo nele que não era normal... Nesses momentos, um rubro sino em desgraça reverberava por todo o azul decadente do céu. Quando digo decadente, é porque ele se avermelhava de forma lenta e implacável. E eu não sabia que vermelhidão era aquela. Quando se propagava pelo ar, o som do sino era um trovão, mas ao chegar aos meus ouvidos era um silvo sanguinolento de uma serpente escarlate.

E a serpente descia da mais alta das árvores, de um cipreste imenso e vetusto que perfurava o céu com seu cimo seco e pontiagudo. E o cipreste cortava o céu, e desse corte incurável jorrava uma tempestuosa chuva de sangue. Ela caía sobre meu pesar. E o silvo da serpente soava sangrento em meu desejo. Eu a sentia se aproximando, enroscando-se em minha perna e picando meu calcanhar. E da picada gotejava um sangue tão gélido que congelava as gotas sanguíneas da chuva.

Foi então que aves em chamas espiralizadas, aves nunca antes vistas, infelizes e devastadas, em bandos intermináveis, bicavam furiosamente, até que sangrasse todo o espaço celeste de forma definitiva. Ouvi grunhidos asfixiados do sol obscurecido por astros vermelhos. E o grunhido do sol era o retumbar do sino e o silvo da serpente. E das núpcias agourentas desses sons de morte, nasciam dos horizontes em fogo tartárico nuvens carregadas. Eram nuvens entrecortadas por veias onde eu via pulsar um sangue enfebrecido. As nuvens cresciam inexoravelmente, arrastadas com fúria por furacões ciclópicos de sopros cósmicos. E fundiam-se no centro do céu, e suas veias explodiam como no pior pesadelo. E toda a abóbada celeste tingiu-se do mais fatal vermelho de sangue. E eu queria saber por que essas coisas aconteciam comigo...

E, finalmente, em alguns canhestros e funestos dias, eu, na minha invisível solidão, saía massacrado a perambular pelas ruas de minha cidade. E diante de meus olhos ensanguentados, o desfile hediondo da civilização humana feria o mais íntimo de minha existência. Sim, eu via sangue em todos aqueles rostos, sangue que escorria de seus sorrisos de prazer, sangue que gotejava de seus olhos sem alma, sangue que brotava como orvalho de suor inútil de seus poros corrompidos.

E aqueles homens e mulheres, velhos e crianças, brancos e negros, ricos e pobres, esfaqueavam-se mutuamente contentes e diabolicamente satisfeitos. Mas não havia facas em suas mãos antes de esfaquearem-se. Porém, quando retiravam os dedos dos corpos de seus semelhantes, havia entre eles um punhal de ódio. E enquanto riam de prazer, eu observava todos os seus dentes caírem vermelhos na poeira do chão ardente.

E os prédios, casas, torres, igrejas, monumentos, tudo desmoronava infiltrado por um viscoso e ácido sangue que corroía suas estruturas. E sob as ruínas, eu contemplava milhares de corpos mutilados. Mas eles levantavam-se satisfeitos dos escombros e exibiam para que todos contemplassem os pedaços extirpados de seus organismos degradados. Enquanto isso, alguns homens corriam pelas ruas, masturbavam-se e ejaculavam sangue. E junto com eles, mulheres completamente nuas introduziam objetos não identificáveis em suas vaginas e sangravam copiosamente.

Não havia luz nos céus. Somente a luz mortiça, doentia e avermelhada de uma gigantesca lâmpada eletrônica projetada de forma macabra sobre a cidade. E ao seu redor, fervilhavam miríades de odiosas moscas, mosquitos, baratas e outros insetos que carregavam sangue enfermiço em suas patas. Então se alastrou uma música abominável. E havia nela uma risada demoníaca que me arrepiou impiedosamente. Era um deboche maligno que sangrava os ouvidos de todas as pessoas que eu avistava. E com a música odienta, um rio de sangue invadiu as ruas e arrastou com ele milhares de humanos. E naquele sangue, todos nadavam contentes, bebiam, comiam e defecavam, rindo e ostentando o ouro de seus dentes caídos, os quais eram recolhidos por entre o lixo infinito que trazia o sangue.

E todo aquele sangue era o sangue da morte do planeta. E eu... eu apenas delirava. E intuí porque essas coisas aconteciam comigo. É que existem alguns momentos em que se deve deixar o adeus para que se saiba quando a humanidade partirá para um novo destino...

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Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 10/10/2009
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