AMOR E MORTE

Quando ele acordou naquela manhã, não fazia a menor idéia sobre o que o dia lhe reservava. Após a jornada de duas semanas, na qual trabalhava embarcado em uma plataforma petrolífera, finalmente retornaria para casa. Enquanto esperava pelo helicóptero responsável pelo trajeto até o continente, sorria para a própria imagem refletida no espelho do banheiro, deixava a água da torneira jorrar, umedecia as mãos e esfregava o rosto, a felicidade sempre o invadia nessas ocasiões, mas naquele dia, o entusiasmo era muito maior.

O percurso se revelara demasiadamente tranqüilo, o que em breve contrastaria com o que estava por vir. Desceu do helicóptero e encaminhou-se para o estacionamento da base terrestre da companhia, como sempre fazia. Acionou a ignição e partiu, uma chuva fina começava a cair, torcia para que esta não se intensificasse, pois não gostava de trafegar pela auto-estrada sob condições adversas.

Aparentemente estava com sorte, a tempestade que se formava não passou de uma ameaça, discretamente o sol começava a ostentar sua presença no céu acinzentado. Entretanto, para sua infelicidade, constataria que aspectos julgados costumam pregar peças.

Acelerava pela via pensando única e exclusivamente na esposa que o aguardava em casa; após um ano de casado, continuava a nutrir o mesmo sentimento que o levara ao altar.

Talvez fosse pelo pensamento longe, ou mesmo pela música cadenciada que o distraía, mas o fato era que não havia atentado para o leve ruído produzido por uma das rodas dianteiras, um dos parafusos de fixação já havia ficado pelo meio do caminho, e os outros demonstravam claramente que logo seguiriam o mesmo destino. Uma curva acentuada escondia os quesitos necessários para que o logo se tornasse imediato, assim com o girar do volante para o lado direito, a roda instável soltou-se por completo resultando num inevitável choque com a mureta de proteção, e com um conseqüente vôo através do precipício que margeava a estrada.

As trevas absolutas que lhe infestavam a mente só eram quebradas pelos leves e repentinos flashes; um sucessão de imagens desconexas; luzes, desconhecidos, vozes, dor. Quando recobrou novamente a consciência estava confuso, não conseguia sentir o próprio corpo, experimentava um ângulo diferente de visão, tudo estava mais claro, quase transparente, ainda assim era possível distinguir a si próprio, logo abaixo de onde jurava estar. Estava cercado por diversas pessoas, sentia apreensão nelas, embora não pudesse diferenciar qualquer alteração em suas feições.

Ele tinha absoluta certeza de que faziam algo ao seu corpo, mas era incapaz de determinar o que seria, sentia que lhe faltava lucidez, talvez estivesse envolvido em um pesadelo, desejava que alguma conexão se fizesse presente, algo de que logo viria a se arrepender. Uma dor lancinante o invadiu fazendo-o gritar, mas nenhum som escapava de sua garganta, era como se estivesse sendo retalhado, como se espremessem suas vísceras com fúria, seria impossível suportar tamanha agonia. Tentava pedir ajuda, buscava alguma maneira de fazer com que entendessem que ele estava ali, presente, e que eles o estavam machucando. Tudo em vão, as súplicas não poderiam ser atendidas, pensou na esposa, na vida, em tudo que gostaria ainda de fazer, porém a dor era mais forte, imediata, irreversível, e se revelava mais intensa do que qualquer pensamento, e isso o fez implorar pela morte, pois essa seria a única maneira de impedir a tortura. Perdeu novamente os sentidos.

Abriu os olhos, a escuridão mais uma vez era completa, mas desta vez nada ouvia, o silêncio era absoluto, algo que nunca havia experimentado na vida. Sentia frio, muito frio, mas não era uma sensação que pudesse ser percebida com o corpo, na verdade, o incômodo parecia originar-se de dentro dele, de um lugar impreciso, porém de grande influência. Num abrir e fechar de pálpebras, imaginava-se em outro plano, algo que se assemelhava a estar flutuando, firmado em uma superfície reconfortante e envolto por proteção, estava escuro, igualmente escuro, mas a dor e o frio o haviam abandonado, nada mais o perturbava.

As trevas absurdas o impediam de perscrutar ao seu redor, sentia um formigamento no corpo, não era capaz de executar qualquer movimento, porém já notava que uma leve fagulha se acendia em diferentes pontos, esperava que ela pudesse se alastrar rapidamente. Da mesma forma que sentira a apreensão nas pessoas que mexiam em seu corpo, estava convicto de que uma aura diferente circundava seu espaço. Percebia dor, angústia, medo, incapacidade, tristeza, mas sentia, também, que algo semelhante a realização e euforia também estavam presentes.

Novas energias o revestiam quando abriu novamente os olhos, pequenos e repetidos choques manifestavam-se em diferentes partes do, agora, perceptível corpo. No entanto, a revigorada disposição física contrastava com o vazio perturbador que havia se instalado em sua mente. Tentava se lembrar de alguma coisa, qualquer coisa, mas nenhum vestígio de lembrança se fazia notar. Sentia-se oprimido, encurralado, e essa sensação mesclada com a agonia causada pela memória hesitante descarregou uma onda de fúria em seu corpo. Movimentos descontrolados e involuntários dominaram-no por completo, tentava abrir caminho através do invólucro que o enclausurava.

Estalidos secos se repetiam à medida que investia contra a folha de mogno diante de si, a superfície se partia mediante tamanha força e insistência, logo, o vão escuro no qual estava depositado começou a ser invadido por um mar de partículas enegrecidas e secas. Sentiu o corpo ser pressionado, não havia como respirar, não havia como se mover, mas nada disso o incomodava, um fervor insano se apoderava dele, embora algo soprasse em seus ouvidos confortando-o de que ali seria o seu lugar, uma urgência maior ainda o impelia para que continuasse a romper a maldita barreira que o impedia de reaver o que era seu.

As forças se renovavam a cada centímetro que vencia, aos poucos a liberdade se mostrava cada vez mais próxima, até que, finalmente, o ar da noite pôde circular livremente em seus pulmões. Ainda assim, algo estava errado, tudo estava diferente, não conseguia entender, nem mesmo encaixar um raciocínio lógico. Por alguns instantes esqueceu-se do motivo pelo qual estava ali, ficou perdido e desolado, a brisa fresca que soprava contra seu rosto significava tanto quanto a podridão que até pouco tempo se instalava em sua boca e narinas.

Uma terrível melancolia o dominava, e não havia nada nem ninguém ao seu redor, nenhuma testemunha para compartilhar da sua dor. Enxergou uma luz, uma vaga e pequena iluminação ao longe, bem distante de onde estava, além de toda aquela decoração de mármore e cimento. Era algo familiar, entendia o significado daquele tipo de construção, mais do que isso, sabia para onde deveria seguir, porque em algum lugar lá fora existiria um repouso como aquele, pronto para aplacar seu sofrimento.

Caminhava com passos que não correspondiam a sua vontade, desejava imprimir um ritmo muito mais intenso, mas os músculos simplesmente não obedeciam, se negavam a dobrar-se perante sua ordens. Se por um lado lhe faltava agilidade, por outro sobrava vitalidade, parecia que o cansaço não existia, não suava, não ofegava, na verdade, o oxigênio que inspirava era totalmente desnecessário, não passava de uma formalidade sem razão de ser.

Sabia que precisava seguir uma rota, uma única direção, e no final dela encontraria a razão de sua jornada. Havia sentido uma leve pontada, algo que começara com uma leve ardência, porém aos poucos transformara-se numa dor cruel e aguda. Não, ele não poderia permitir que algo dividisse sua atenção, não poderia haver um pensamento conflitante, era muito difícil manter um foco, e a dor lancinante que o apunhalava tentava tornar-se exclusiva. Parecia que uma fogueira queimava dentro de si, uma chama intensa que necessitava ser apagada.

A velocidade que tanto havia buscado finalmente se apossava, ainda que de forma involuntária, de seu corpo. Enxergou alguém vindo no sentido contrário, imediatamente sentiu a saliva abundar em sua boca, ao passo que um torpor repentino estendeu-se dos pés à cabeça, entendeu que aquela pessoa poderia, de alguma forma, ajudar-lhe. Estendeu o braço e tentou falar com o rapaz , que teve a fisionomia radicalmente modificada ao percebê-lo, ele queria pedir auxílio, suplicar para que o ajudasse a aplacar o ardor, mas o jovem pôs-se em fuga, desapareceu no meio da noite sem se importar com o seu sofrimento.

Gritou com as mãos na cabeça enquanto caía de joelhos no asfalto. Como seria possível agüentar aquela dor? Como conseguiria retomar a caminhada daquela forma? Então, foi invadido por uma sensação, uma percepção na verdade, algo que surgia ao mesmo tempo em que as primeiras gotas de chuva anunciavam um alento para acalmar a sufocante ação da madrugada abafada. Ele conhecia os contornos daquelas palmeiras, o muro revestido por uma grossa camada de heras já rondara em seu pensamento, sabia que um jardim verdejante se escondia além daquela fachada.

Ergueu-se e colocou-se a caminhar, enquanto a chuva fina convertia-se em pesados açoites de água. Alisou os dedos nas grades de ferro do portão, dirigiu-se lentamente para a lateral da residência. Olhou para cima do muro, um cerca elétrica estendia-se por todo o beiral. Inspirou fundo como se precisasse do ar, enfiou as mãos por entre a vegetação do muro até alcançar o reboco, cravou as mãos na superfície porosa e começou a escalar o obstáculo com movimentos lentos, porém precisos, riscos no céu acendiam a noite.

Enrolou-se nos fios eletrificados sem o menor receio, arrebentou-os com o corpo, despencando para o outro lado. Ao cair no chão notou que dois cães corriam ao seu encontro, no entanto, instintivamente os animais cessaram o ataque, não porque tivessem reconhecido o invasor, de fato o que os impedia de destroçar o homem era algo muito mais evidente e primitivo; o medo.

O fato de estar em casa quase o fazia esquecer da dor que o consumia, poderia, enfim, rever aquela que lhe dava forças para prosseguir. A porta estava trancada, como deveria ser, mas o simples balançar de sua mão mostrou-se suficiente para vencer a resistência da maçaneta. Entrou e sentiu o ambiente familiar revolver seus pensamentos, observava cada detalhe do interior da sala enquanto caminhava pelo piso acarpetado, a cada passo deixava um rastro de lodo e terra úmida. Vislumbrou uma escadaria, lembranças boas fizeram brotar um sorriso distorcido no rosto desconfigurado, uma luminosidade tênue escapava pela fresta do quarto, um perfume agradável denunciava que ela estaria ali.

Empurrou a folha amadeirada revelando o interior do cômodo, e esse simples ato fez tudo mudar, mais uma vez. Aquilo não estava certo, não, não poderia estar. Quem era aquele que ocupava o lugar que lhe era de direito? Quem teria tamanha ousadia de tocar naquela que lhe pertencia? Uma confusão de informações assaltavam-lhe a cabeça, e isso sem que tivesse a menor idéia de que aquele homem, incrédulo e aterrorizado, tramara sorrateiramente sua morte, com a anuência daquela que tanto amava, não fora difícil manipular os parafusos das rodas do automóvel.

Mas, ele não precisava saber disso, pois a imagem que se apresentava de forma tão explícita e crua já evidenciava tudo que era importante. O filete de razão que ainda teimava em existir em sua mente desintegrava-se por completo. Não havia mais motivo para resistir, a ardência e a dor retornavam mais fortes e avassaladoras do que antes, e com elas a completa compreensão de que só haveria uma maneira de sanar tais complicações. Sim, o pânico que vislumbrava naqueles olhos só fazia aumentar o formigamento e a salivação, logo tudo estaria acabado; a dor física que lhe corroía o corpo morto e a angústia mórbida responsável pela tortura de uma perturbada alma impedida de descansar.

Gritos ecoaram, manifestações abafadas pelo ribombar de um trovão.

* Leia o complemento na escrivaninha de Xande Ribeiro

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 26/10/2009
Reeditado em 26/10/2009
Código do texto: T1888046
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