Quando as luzes se apagaram

O relógio apenas confirmava o que eu já sabia, já era bem tarde na noite.

Todos do escritório já haviam ido embora. Afinal, era sexta-feira, e cada um foi procurar alguma coisa realmente interessante para fazer.

Menos eu.

Espero que esta remessa chegue em São Paulo a tempo.

Faltam quase duas folhas, e ainda preciso repassar o pedido inteiro para que, dessa vez, não tenha nenhum erro.

Apesar desse cliente ser muito chato e viver estressado, ele sempre faz compras boas. E o melhor é que paga à vista, e nesse caso, a comissão é imediata.

Droga, esse sistema é muito lento, como é que têm coragem de dizer que é o que existe de melhor no mercado?

E, de repente, escuridão.

Ah não, é mentira, isso não está acontecendo! Blecaute?! Logo agora? Cadê a porra do no-breake que dizem que instalaram? Porra, e cadê meu pedido?! Só falta a merda do sistema não ter gravado minha remessa! Não acredito nessa merda!

Eu sabia que esmurrar o teclado e esbravejar não iriam ajudar em nada. Mas naquele momento, era a melhor forma de estravazar a combinação de fúria e decepção por ter perdido o pedido e provavelmente o cliente.

E estava muito escuro. Precisava achar rápido algo luminoso.

Tateei a mesa e consegui alcançar meu celular. Sim, vou ligar e avisar que ocorreu um imprevisto mas a remessa vai chegar com certeza.

Em vão. Foi o tempo de ver a barra de bateria no último, e vê-lo se desligar com uma musiquinha irritante.

É perseguição, só pode ser... Vai tomar no...

...

Espere aí, o que foi isso?

Será que sobrou mais alguém no escritório? Acho difícil, eu perceberia. Juro que eram passos passando pelo corredor.

Talvez... seja apenas o vigia da noite. Deve ter subido para ver se estava tudo bem por aqui. Bem que ele poderia ter trazido uma lanterna.

Josué!?

...

Apenas silêncio.

Ridículo. Estou imaginando coisas.

Covarde como é, neste momento, o paraibano deve estar tremendo na guarita. A verdade é que ele deveria passar fazendo a ronda sempre, mas só aparece mesmo quando o pessoal que fica até mais tarde pede uma pizza.

Quanto tempo já se passou? A merda da luz está demorando para voltar. Droga, está um completo breu aqui.

Já trabalho aqui há algum tempo então lembro bem onde estão as coisas. Esbarrei na mesinha da impressora, mas tateando as paredes, consegui sair da sala.

Nem a luz de segurança do corredor funcionou. Meus olhos estão começando a se adaptar ao escuro.

Mas... o que é...

Sim, alí no final do corredor, encostado na parede.

Tem alguma coisa...

Esperei atento, mas o silêncio continuou.

Com a respiração presa, fui me aproximando devagar.

Era uma boneca.

Quem diabos deixou um negócio desses aqui?

Alguma das meninas do telemarketing deve tê-la esquecido alí.

Tentei forjar uma risada alta para espantar o medo.

Inútil. Minha voz ficou presa na garganta.

O único som que se ouvia era o de meu próprio coração palpitando.

Me agachei e peguei o brinquedo.

Nossa, mas como estava maltratada. Apesar de rasgada e toda manchada, ela até me pareceu familiar. Acho que minha filha tinha uma igual...

Quando a virei, meu sangue congelou. Ela não tinha olhos.

E as manchas pareciam...

Meu Deus, que tipo de brincadeira doente...

Espere, ouvi alguma coisa. Parei.

Parecia uma voz. Bem baixinho, lá do fundo do corredor.

Quem era?

O que dizia?

Um breve silêncio.

E algo tocou meu ombro.

Frio.

Pequeno.

Era uma mão.

Acompanhado de um sussurro, ao pé do meu ouvido:

"Vem me buscar..."

Me virei no susto, mas... Não havia nada lá.

Nem a bizarra boneca.

Estava lá eu, sozinho, no escuro, sentado no chão.

Apavorado como uma garotinha.

Entrei em pânico.

Lembro vagamente ter descido correndo, infinitos quatro lances de escada no escuro. Quando dei por mim, já estava no carro.

Minhas mãos ainda tremem no volante.

O que foi isso?

O que estava acontecendo... comigo?

Espere, se acalme. Não foi nada. Foi só minha imaginação...

Aconteceu muita coisa comigo nos últimos meses. Muito trabalho, muita pressão, um acúmulo de estresse.

Chega, para lá não volto mais!

Mas... eu preciso trabalhar. Tenho que finalizar o pedido, enviar cotações para os clientes, fazer relatórios. Afinal tenho contas atrasadas, e a prestação do carro, do apartamento. O que vai ser da minha família se seu sair?

Família... Minha esposa e minha filha.

Qual foi mesmo a última vez que estivemos todos juntos?

Talvez seja mesmo verdade que ando muito ausente ultimamente.

Só trabalhava tanto porque queria o melhor para elas. E isso era o que importava.

E... seria mesmo?

Será que era mesmo o melhor que poderia fazer por elas?

Pense nas coisas importantes. Nas coisas realmente importantes na vida.

A noite continuava impassível. As luzes que refletem no retrovisor, não eram suficientes para iluminar a minha escuridão.

Droga, só queria chegar logo em casa, por que isso é tão difícil?

...

E então, abro a porta do apartamento, e a sala me enche de luz.

Lá estava ela, o meu anjinho, deitada no chão desenhando alguma coisa.

"Está acordada até essa hora?"

Ao me ver, veio correndo em minha direção.

"Estava te esperando, papai."

Ainda confuso, sem entender nada do que estava acontecendo, caí de joelhos e a abracei forte.

Não pude conter as lágrimas.

Foi um dia terrível, mas aquele lindo sorriso falhado me fazia esquecer de tudo.

De tudo.

Até do fatídico acidente que lhe tirou a vida no mês passado.

E de que, talvez, eu mesmo, nunca tenha conseguido chegar em casa nesse dia.

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Novembro 2009

Miguel do Lucari
Enviado por Miguel do Lucari em 17/11/2009
Reeditado em 05/01/2010
Código do texto: T1928094
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