ACORRENTADA

Já estávamos no final do turno quando recebemos o chamado pelo rádio, tentamos argumentar, mas não teve jeito, tivemos de atender à solicitação. Uma chuva fina começara a cair desde o início da noite, e àquela altura, um pouco além das onze, continuava a marcar sua presença. Deveríamos encerrar a jornada e retornar ao batalhão à meia-noite, por conta disso meu colega insistia para que não nos aprofundássemos na verificação, afinal, reclamações de vizinhos eram constantes, sobretudo num final de semana, de certo era alguma festa a incomodar os ouvidos mais sensíveis.

Aquela rua era isolada, muito distante do centro comercial, caracterizava-se por ostentar residências antigas, com extensos quintais. A julgar pelo cenário, só posso imaginar que para chegar ao ponto de incomodar os vizinhos, a algazarra deveria ser algo impressionante. De acordo com a informação relatada, não disseram nada acerca de música alta ou coisa do tipo, concentraram-se apenas em dizer que gritos insistentes e estridentes originavam-se do número trinta e um. Mesmo antes de encostarmos a viatura já era possível constatar um provável exagero, de fato não havia nenhum indício de alguma festa ou comemoração no local, mas também não ouvimos nada que sugerisse uma anormalidade, na verdade, parecia que a casa estava vazia, a ausência de luz seria um indicativo para tal suposição.

Esperamos alguns minutos e já estávamos decididos a voltar quando um grito agudo e de aparente sofrimento nos chegou aos ouvidos. Saltei da viatura rapidamente, com a arma em punho, o sargento fez o mesmo e me passou uma lanterna, precisaríamos do objeto para quebrar a escuridão que reinava nos arredores da residência. Um muro alto e revestido por heras cercava todo o quintal, no topo era possível perceber uma extensa malha de fios eletrificados. Um pesado portão metálico lacrava a entrada, obviamente estava trancado, o problema era que não havia um interfone ou campainha para servir de comunicação com os moradores. Um novo grito ecoou, o sargento me empurrou para o lado e disparou contra a fechadura, liberando o acesso.

O lado externo da casa era, de fato, muito vasto, entretanto a construção em si não ostentava grandes dimensões, o que chamava a atenção era o vão que cercava toda a casa, tanto pela profundidade quanto pela largura, seria impossível chegar do outro lado em condições normais. Joguei o feixe de luz de forma aleatória ao nosso redor e um brilho me chamou a atenção, era uma longa placa metálica, lembrava uma prancha de navio pirata, ao toque não parecia muito resistente, mas precisava servir, ela deveria nos fornecer passagem para o outro lado.

Conseguimos facilmente posicionar o objeto sobre o fosso, parecia que fora confeccionado para esse fim. Por sorte, tanto eu quanto o sargento não ostentávamos um sobrepeso, caso contrário não conseguiríamos vencer o obstáculo fazendo uso de tal artifício, atravessamos um por vez, mas ainda assim a prancha chegou a envergar de maneira perigosa.

Andamos alguns metros e fomos surpreendidos, um homem de baixa estatura e extremamente magro nos apontava um rifle de grosso calibre, exigia que parássemos. Meu colega de trabalho, e superior em serviço, não hesitou e acionou o gatilho contra o sujeito que também disparou, me joguei no chão enlameado, os dois também tombaram, mas diferentemente de mim, não mais respiravam. Eu estava acostumado aos conflitos armados, mas nunca havia testemunhado um amigo de farda tombar assim tão próximo de mim, fui tomado pelo desespero.

Era difícil, porém era imprescindível manter a calma e o controle da situação, pensei em voltar para pedir ajuda pelo rádio, entretanto era óbvio que alguém precisava de ajuda imediata e talvez alguns segundos pudessem significar toda a diferença. Então segui em direção à casa, provavelmente haveria uma vítima em cárcere privado lá. Mantive a cautela sem abrir mão da urgência, tentava manter a firmeza na mão armada, mas um tremor incontrolável se apoderava de mim, a lanterna me servia de olhos naquelas trevas.

Os gritos haviam cessado, e após uma análise rápida pelo cômodo principal da casa, pude constatar que aparentemente não havia mais ninguém no local. Então, onde estaria a mulher que gritava desesperadamente? Teria sido assassinada pelo sujeito cujo corpo estava, agora, estirado na chuva? Era uma possibilidade, embora eu não tivesse ouvido nenhum disparo anterior ao conflito há pouco. Tentei acionar o interruptor de energia elétrica, nenhum efeito surgiu.

Continuei a procurar por algum sinal, cheguei a um quarto, uma pessoa comum não teria percebido, mas meus olhos treinados não deixaram escapar o detalhe sob a cama, uma portinhola de metal reluzia ao contato com a luz da lanterna. Afastei a cama, um robusto cadeado lacrava a passagem, desta vez fui eu quem abriu fogo contra a tranca no intuito de abrir caminho.

Uma longa escadaria se oferecia à minha frente, algo me dizia que era dali que se originavam os gritos. Venci rapidamente os degraus, cheguei a um novo, porém, igualmente escuro cômodo. Novamente lancei os olhos da lanterna para desvendar os mistérios das trevas, foi então que a vi jogada num canto, uma garota com cerca de vinte anos, presa por grilhões e correntes, nos pulsos e tornozelos.

Ela estava desacordada, certamente estava exausta pelos maus tratos, seu estado era deplorável. A menina deveria ter pulmões privilegiados, afinal de contas, como seria possível sua voz ser audível mediante aquela situação e local? Mas isso não importava naquele momento, o que interessava mesmo era tirá-la de lá o mais rápido possível, e para isso, mais uma vez o chumbo do meu revólver deveria exercer o papel de libertador.

Atirei contra o elo que prendia os dois braços da jovem, seus olhos abriram no mesmo instante do ribombar causado pelo disparo, ela se agarrou às minhas pernas, estava enlouquecida, era provável que me confundisse com um de seus algozes. Girei o corpo e mirei com o auxílio da luz em minhas mãos, da melhor maneira que era possível, eu não poderia acertá-la acidentalmente, disparei e o tiro mostrou-se certeiro, o elo que atrelava suas pernas não mais existia.

A garota gritava palavras desconexas, eu lhe pedia calma, mas isso era algo impossível de se obter. “Um novo dia se aproxima”, ela gritava, apertei um dos botões do relógio em meu pulso e uma iluminação esverdeada me mostrava que, de fato, eram onze horas e cinqüenta e nove minutos, mas o que ela tentava dizer com isso? Subitamente suas unhas cravaram-se na pele dos meus braços, deixei cair arma e lanterna, eu não esperava por aquilo. Ela se aproximou de mim sem me largar, olhava fixamente, estava escuro, só eu sei como estava escuro naquele lugar, ainda assim consegui enxergar claramente os olhos petrificados daquela menina. Era dor. Era medo. Era desespero. Era uma mistura de tudo isso o que estampava aqueles dois círculos azuis, os quais ganhavam gradativamente um tom avermelhado. “Saia daqui”, ela berrou. “Saia daqui, agora!” Então ela me soltou, melhor dizendo, me empurrou com ímpeto.

Cambaleei, mas consegui manter o equilíbrio, olhei na direção de onde ela estava e o que vi me deixou preocupado, muito preocupado. Duas esferas, que julguei como seus olhos, pairavam no ar, absolutas em meio à escuridão, exibiam-se rubras, incandescentes, perturbadoras, um espetáculo sombrio e magnético. Um urro que não condizia com a fragilidade da menina ecoou pelo espaço abafado, quebrando meu transe temporário.

Vários estrondos se repetiram, dava a impressão de que a jovem se jogava contra as paredes, fato comprovado pelo brilho escarlate que desaparecia e tornava a voltar sempre em local diferente. Gritos de dor e urros bestiais se mesclavam numa sinfonia macabra, onde sons indescritíveis e indecifráveis serviam de acompanhamento. Eu recuava sem desviar o olhar, um odor nauseante invadia todo o ambiente, era um cheiro que me dava medo, ouvi um rosnado. Toquei um objeto com o calcanhar, pedi aos céus que fosse minha arma, me abaixei cautelosamente e tateei o assoalho, o corpo cilíndrico do objeto extinguiu minhas expectativas, era a lanterna.

Deslizei o polegar sobre as ranhuras do botão produzindo um clique, um feixe luminoso projetou-se no ar. Não tive coragem suficiente para perscrutar as trevas à minha frente, seja lá o que fosse aquilo a dividir comigo aquele espaço, uma coisa era certa, não era mais a menina, e o que era pior, estava livre das correntes que a prendiam, afinal, eu mesmo havia me encarregado dessa tarefa.

O rosnado continuava, vinha do fundo do cômodo. Ainda agachado, eu fazia uso do poder da lanterna para encontrar o revólver. Pela primeira vez naquela noite a sorte sorria para mim, os contornos familiares do objeto se apresentavam próximos, enfim a sensação de segurança que tanto desejava.

Enlacei com os dedos o cabo da arma, com a outra mão segurava a lanterna, então coloquei-me de pé. Joguei a luminosidade para a esquerda, sabia que a escada ficava naquela direção, e para minha surpresa, estava bem mais próxima do que imaginava. Comecei a deslizar lateralmente, sem estardalhaço, estava em pânico, mas a pressa não me ajudaria, mesmo porque senti que algo diferente acontecia, os rosnados e grunhidos haviam cessado, lembrei do recuo do mar antes da tsunami.

Subi os degraus rapidamente, nem sei como pude fazer isso com tamanha perfeição na ausência de luz, cheguei ao andar superior. Pensei em correr, mas sabia que poderia ser facilmente alcançado, então me lembrei do enorme guarda-roupas que eu havia visto quando entrei no quarto, a madeira grossa e pesada poderia retardar a garota, ou criatura.

Usei toda a minha força para derrubar o móvel, precisei de energia extra para empurrá-lo até que obstruísse totalmente a portinhola. Um urro amedrontador, vindo daquela espécie de porão, me fez cair de joelhos com as mãos nos ouvidos. Levantei-me e corri como nunca julguei ser capaz de correr, atravessei o extenso quintal, saltei sobre os corpos baleados, deparei-me com o fosso.

Sem hesitar continuei a correr no intuito de atravessar a rampa improvisada o mais rápido possível, tudo estava claro para mim, a segurança daquela casa não era para impedir que entrassem, pelo contrário, todo aquele aparato deveria servir para impedir que aquilo no porão saísse. Durante a metade do percurso, na prancha metálica, cheguei a pensar que conseguiria, mas o estalo, seguido da rachadura na estrutura, desfez o cenário favorável, logo a superfície reluzente se partiu, proporcionando a minha queda.

Caí de costas no chão, minha perna direita estava dobrada de maneira anatomicamente improvável, a tíbia perfurava o tecido da calça. Eu não sentia dor, mas sabia que meu sangue fluía como um rio caudaloso, a incapacidade de locomoção insinuava que algum dano na coluna acontecera. Agora estava claro o porquê daquele indivíduo que matou o sargento aparentar tamanha leveza.

Mesmo com todo o pesar causado pelo cenário desolador, minha preocupação estava além de como eu estava naquele fosso, meus receios voavam em direção à casa, mais especificamente ao guarda-roupas e com o quanto ele poderia resistir. Logo, enviariam reforço, visto não termos dado retorno pelo rádio acerca da chamada e investigação, era só torcer para ser encontrado antes pelos colegas de farda.

A chuva não mais caía, as pesadas nuvens haviam se dissipado, uma enorme e amarelada lua projetava seu brilho justamente sobre o fosso, e com ele um estranho pensamento me invadiu, mas não tive tempo para mergulhar a fundo nos questionamentos que surgiam, um rosnado perturbador e familiar surgiu na beira do buraco, o que me levou à certeza sobre a estrutura insuficiente do móvel.

Eu não conseguia mexer um só músculo, estava totalmente entregue a mercê daquela criatura, pouco conseguia distinguir naquela escuridão, mas a maldita posição da lua, e sua conseqüente luz, fazia questão de deixar claro os contornos malignos da besta, contornos esses que eu tanto havia evitado confrontar. Agora estavam ali, na minha frente, com duas brasas incandescentes a me encarar, caprichosamente uma gosma caía fartamente sobre meu rosto.

A única coisa que me consolava era a possibilidade da criatura não se importar comigo, afinal o portão estava aberto, a liberdade estava ali, era só atravessá-lo e ganhar a imensidão do mundo. Porém, para minha infelicidade, acho que o cheiro do meu sangue deveria ser demasiadamente atraente para ela, pois quando saltou sobre mim, só me restou iniciar uma oração e torcer para conseguir terminá-la.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 21/12/2009
Reeditado em 21/12/2009
Código do texto: T1989232
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