TERCEIRO ANDAR

Eu trabalhava naquela empresa há muitos anos, praticamente desde a fundação. Mas as coisas começaram a mudar quando o proprietário, um descendente lusitano, que fez fortuna além mar, tomou uma importante decisão baseado numa oportunidade que vislumbrara com seu tino comercial.

Logo de início não simpatizei com o novo local de trabalho, mesmo sem ter um motivo específico para isso e apesar de saber que a mudança para uma sede própria seria uma marco para a companhia. O imóvel fora adquirido por uma valor muito abaixo do mercado, pelo que eu soube estivera desocupado por muito tempo. O local servira de instalações para um cinema, antes que este fosse consumido por um incêndio de proporções catastróficas. Após uma boa reforma, nem parecia que a loja sofrera um baque tão grande, estava irrepreensível, perfeita.

Ainda assim não gostei da atmosfera, daquela imensa fachada em tons de verde e branco, das portas de enrolar em aço, todas revestidas por esmalte negro. Diferentemente do anterior, o bairro, onde agora ficava a sede, não era constituído em sua maioria por estabelecimentos comerciais, longe disso. Inúmeras residências de arquitetura antiga dominavam a localidade, na maior parte ocupadas por famílias de imigrantes.

A exceção refletia, justamente, onde estávamos: um imenso prédio postado no centro do bairro, com inúmeros pontos de comércio, com destaque para uma padaria, uma revendedora de doces, uma locadora de vídeos, uma lanchonete, uma espécie de quitanda e mais alguns outros. Entretanto, o maior espaço disponível seria ocupado pela nossa empresa, uma distribuidora atacadista de artigos de perfumaria, cosméticos, cutelaria e bazar.

Três andares inteiros, divididos ao meio por paredes e divisórias, formando dois ambientes: um comercial e outro de produção, assim estava constituída a nova sede. No primeiro pavimento ficavam o hall de entrada e recepção, separados da área de pedidos e do estoque sortido. No segundo andar tínhamos uma sala de reuniões para a equipe de vendas e um refeitório, e do outro lado o estoque fechado de bazar. No último módulo ficavam o escritório administrativo ladeado pelo estoque fechado dos gêneros de beleza. Porém, apenas nesse andar havia uma conexão entre os ambientes, uma porta servia de acesso entre as áreas comercial e de produção.

Eu trabalhava muito, durante muitas horas todos os dias, sempre extrapolava a jornada usual, mas não me importava, o dinheiro compensava. Minhas funções tornaram-me uma espécie de “faz-tudo”, inclusive era minha responsabilidade dar inícios às atividades diárias, assim como cerrar a porta ao término destas. Com isso, o velho português dispunha de mais tempo para tratar de outros negócios, a essa altura quase não comparecia à sede.

Já no primeiro dia comecei a perceber coisas estranhas. Um calafrio percorria meu corpo toda vez que pisava no escritório do terceiro andar, sem motivo aparente. De repente, todos os computadores apagaram, bem como as linhas telefônicas, de modo simultâneo e inesperado. O que me intrigou foi o tal fato ter ocorrido apenas naquele pavimento, nos demais tudo funcionava normalmente. Culpei a reforma nas instalações elétricas, mas não consegui convencer a mim mesmo disso.

Desci, mas não pela porta de conexão, eu não conseguia cruzar aquela passagem, preferia dar a volta pelo outro lado a ter de cortar caminho por ali. Dei instruções para um rapaz que prestava serviços de motocicleta, entreguei a ele a nota fiscal e o endereço de entrega. Ele comentava com um colega que enquanto separava a caixa no terceiro andar pôde ouvir nitidamente uma voz chamando seu nome. Segundo seu relato, a voz se originava dos fundos do ambiente, além das prateleiras. Ele se aproximou, mas um vento gelado, o qual não soube precisar de onde surgia, dominou o espaço, fazendo com que desistisse de perscrutar pelos corredores e tratasse de descer rapidamente.

Alguns minutos depois de sua saída, recebemos um telefonema relatando um acidente com o motociclista, um ônibus havia se chocado contra o seu veículo. Segundo as testemunhas, ele simplesmente havia parado na frente do coletivo, não dando tempo de reação ao motorista. Eu fui ao hospital, observei enquanto cuidavam dele, percebi que o delírio fluía muito além da dor, parecia que algo o perturbava, e isso ficou claro para mim. Tive certeza quando ouvi as palavras: “Ela gritou em meus ouvidos, me levou a frear”.

Aquilo tudo era perturbador demais. Além das múltiplas fraturas, o garoto perdeu o baço e ficou com o movimento de uma das pernas totalmente comprometido. Sem dúvidas foi um baque, mas a vida precisava prosseguir, assim como os negócios. Mas algo me incomodava, as noites naquele escritório não eram como as do outro, nunca fui uma pessoa impressionável, porém a sensação que eu tinha quando estava sozinho naquele lugar me dizia justamente o contrário, parecia que mais alguém, ou algo, me fazia companhia naquele terceiro andar.

Cada vez mais surgiam rumores entre os funcionários, eles afirmavam que sentiam toques nos tornozelos enquanto percorriam os corredores do estoque no último pavimento. Não era raro a percepção de um vento gelado ou uma voz sussurrante. Estavam assustados, muito assustados. Ninguém mais subia naquele módulo sozinho.

Cabia a mim convencê-los do contrário, de que tudo aquilo não passava de um monte de bobagens. Porém era uma missão difícil, principalmente quando me questionavam o porquê de eu não cruzar aquela maldita porta. Nessas horas a inquietação me dominava, e o autoritarismo falava em meu lugar.

Cada vez mais eu corria com o serviço administrativo durante o dia, para que nas horas noturnas eu não ficasse só entre as paredes do escritório. Numa dessa noites formávamos um grupo de três, estávamos no primeiro andar, todos no mesmo ambiente, foi quando percebemos uma série de caixas despencando pelo vão do elevador de carga. Mas não havia mais ninguém na empresa, portanto sem explicação lógica para o fato. Não subimos para verificar. O trabalho estava encerrado, não haveria porque subir as escadas, falei para eles. Alguém deveria ter feito uma amarração errada na pilha de caixas, expliquei. No dia seguinte arrumaríamos tudo. Tentei me convencer, sem muito sucesso.

Ainda naquela noite, tranquei a porta para sair, como sempre fazia. Chequei os cadeados da garagem, acionei o alarme e me afastei do prédio. Antes de atravessar a rua, girei a cabeça e direcionei o olhar para cima. Juro que vi as luzes do último pavimento piscarem, mesmo tendo a certeza de tê-las apagado ao sair. Mas o pior não estava aí. O que me deixou realmente apavorado foi perceber os nítidos contornos de uma silhueta nos vidros de uma das janelas antes da escuridão tomar conta de todo o ambiente.

Eu já não conseguia me concentrar no trabalho, passava o dia com os nervos à flor da pele. O inexplicável continuava a acontecer. Durante uma tempestade, o bairro foi acometido por um blecaute, o gerador do setor de separação de pedidos, no primeiro pavimento, foi acionado, mas nos demais não havia esse mecanismo. Muitos faziam uso de lanternas, mas alguns poucos traziam nas mãos simples lampiões. Uma dupla subiu ao maldito terceiro andar para buscar algumas caixas, foi quando aconteceu. A chama em poder de um deles foi de encontro a uma caixa de acetona, a qual não deveria estar onde se encontrava, mas de maneira bizarra, estava. Foi o início de um incêndio. As labaredas tomaram conta de outros inflamáveis e se espalharam rapidamente. Felizmente conseguimos conter o fogo através dos extintores estrategicamente espalhados. Agarrei o rapaz pelo braço, olhei em seu rosto e antes que pudesse perguntar algo, ele me disse: “Alguém me derrubou, eu juro, alguém me empurrou no chão”. Eu sabia que era verdade, sua expressão dizia isso, mas nem precisava, era inegável que algo de anormal nos cercava.

Arrumamos tudo da melhor maneira possível e prosseguimos com o trabalho. A energia elétrica foi restabelecida. Os rapazes faziam uma corrente, uns jogando caixas para os outros, a fim de recuperarem o tempo perdido. Descarregavam o conteúdo do elevador de carga quando o funcionário que estava ao lado da mercadoria ouviu seu nome, e ao olhar para cima , através do vão, foi atingido por uma caixa com trezentos e sessenta alicates para unha, todos de aço inoxidável, num total aproximado de quinze quilos. O invólucro despencou do terceiro andar, acertando-o no rosto. O impacto desfigurou sua face, um corte profundo surgiu num dos supercílios, os óculos que usava se partiram, os cacos das lentes lhe perfuraram os olhos. Mais tarde, recebemos a confirmação do traumatismo craniano.

No dia seguinte, os funcionários compareceram, mas se recusavam a trabalhar. Estavam convencidos de que algo sobrenatural estava incrustado nas paredes daquele prédio, sobretudo no terceiro andar. O dono da empresa estava numa viagem de negócios, eu precisava tomar as rédeas da situação, então pensei: para convencê-los de que não há nada a temer, a melhor coisa a fazer é convencer a mim mesmo.

Vislumbrei o óbvio: enfrentaria meus temores atravessando a porta do terceiro andar, mostrando, através da minha presença, que não havia nenhuma ameaça ali. Eles acreditariam, porque eu nunca havia ousado passar por ali antes, e esse simples ato provaria o quanto estavam errados. Girei a maçaneta, abri a folha de madeira e entrei. Inspirei o ar daquele ambiente temido. Um corredor, com cerca de uns vinte metros levava até a escadaria, mas eu não poderia simplesmente chegar lá e descer, seria preciso vencer o medo, para isso eu verificaria cada prateleira daquele andar.

Com exceção da iluminação, que mesmo a toda força não quebrava completamente a escuridão, nada de estranho percebi. Caminhei lentamente pelos corredores. Nada de calafrios, nada de toques nos tornozelos, nada de vozes a sussurrar. Enchi-me de coragem e continuei. Olhei em cada bancada, me agachei para checar embaixo de cada prateleira, nada. Aproximei-me do vão do elevador sem temer ser empurrado, me achei um tolo por ter acreditado em tanta coisa.

Comecei a crer que a histeria coletiva pode, de fato, provocar muito estrago. Talvez aquela caixa de alicates estivesse mal posicionada numa pilha ou coisa do tipo, vai saber. Provavelmente o rapaz do princípio de incêndio fosse um desastrado. Era quase certo de que o acidente da motocicleta não passasse de uma barbeiragem. Retomei meu caminho, ouvi um grito, mas não era um chamado do além, se tratava de algo real e próximo. Corri pelas escadas.

Quando cheguei ao térreo, visualizei um dos estoquistas com as mãos lavadas em sangue. Ele afirmava que uma faca de lâmina afiada estava misturada às escovas de cabelo numa caixa que ele mexia. Na mesma hora o recriminei, bradando a plenos pulmões que o sobrenatural não era desculpa para desleixo. Solicitei que um dos motoristas o levasse para o pronto socorro, pois de certo necessitaria de alguns pontos. O trabalho deveria continuar, e assim ocorreu.

Voltei pelo mesmo caminho, sem nada a temer. Pela primeira vez naquelas instalações, eu trabalhava com o mesmo ânimo de antes, assim o dia transcorreu sem nenhum incidente. Por volta das onze da noite, os afazeres haviam terminado. Desci as escadas tranqüilamente, sem me importar com mais nada. Apaguei todas as luzes e lacrei as travas da porta da recepção. Porém, antes que eu pudesse acionar o alarme, percebi que uma das portas de enrolar da garagem estava aberta, um dilema surgia diante de mim.

Não havia como fechar aquela porta de aço pelo lado de fora. Seria necessário entrar, lacrar os cadeados, subir até o terceiro andar pelo lado da produção, atravessar a porta de conexão até o escritório, descer as escadas, abrir novamente a porta da recepção, sair, fechá-la e finalmente acionar o alarme.

Cruzar os domínios do terceiro andar no escuro? Não me parecia uma boa idéia. Mas, o que fazer? Deixar a empresa aberta? Não. Esperar até o dia clarear e perder a credibilidade com os funcionários? Não. Afinal de contas, não havia o que temer. Horas antes eu havia caminhado por aqueles corredores sem perceber uma única anormalidade, essa seria a prova final.

Ergui a folha de aço e entrei. Em seguida, puxei a porta, pisei no batente e chutei as travas com a ponta do pé. Travei os cadeados de haste longa e invadi a escuridão. Usei meu senso de direção, acionei um interruptor, uma lâmpada se acendeu. Localizei o armário das lanternas, peguei uma, imediatamente deslizando o polegar sobre as ranhuras do botão de acionamento. Um círculo amarelo se formou. Apertei novamente o interruptor na parede e segui em frente. Agora, a luz da lanterna me serviria de olhos.

Venci as trevas do primeiro pavimento, do segundo, e antes de pisar na plataforma do terceiro, parei. Olhei bem para a porta que levava ao escritório, o corredor de vinte metros nos separava. Respirei fundo, mas antes de iniciar a caminhada, senti uma ardência nas mãos, o corpo cilíndrico e plástico da lanterna ardia como brasa. Larguei o objeto, a queda quebrou a lente e a lâmpada, pondo fim à minha única fonte de luz, visto que eu apertava incessantemente o botão fluorescente na maldita parede e nada acontecia. Tudo em trevas. A mais absoluta e aterradora escuridão. Tentei voltar, mas não havia mais escadaria, ela não estava lá, não existia retorno.

Uma gargalhada macabra ecoava por todos os lados, duas lágrimas escorreram pelo meu rosto enquanto um tremor me dominava. Então corri, corri como nunca achei ser capaz de correr. Porém o corredor não terminava, a porta nunca chegava, o cansaço me consumia, eu não conseguiria...

Minhas pernas eram açoitadas por lâminas, ou garras, não dava para saber. Estava gelado, um vento cortante trazia dor aos meus ossos, mas ainda assim o suor escorria por todos os poros...

Ela gritava meu nome, a voz me chamava, eu não conseguiria...

A porta, ela estava ali, era preciso vencer a distância, então fechei os olhos e saltei...

Mesmo com os olhos cerrados percebi uma luz, mesmo com os olhos fechados, eu a vi...

Acho que perdi os sentidos...

Acordei num leito de hospital, meu corpo doía muito. Recebi a visita do velho português, ele me disse que eu havia sido encontrado na plataforma do elevador de carga, deveria ter caído pelo vão e desmaiado. Achei por bem que pensasse assim, não queria ser taxado como louco, mesmo porque não lembrava de muita coisa mesmo, mas aquele rosto...

Não voltei a trabalhar naquela empresa, não conseguiria. Na verdade, fiquei alguns anos sem conseguir sair de casa. Permaneci por muito tempo afastado de tudo e de todos, queimando as economias acumuladas. Mas, como tudo na vida, há sempre chance para um recomeço, por conta disso decidi dar uma oportunidade para mim mesmo. A primeira coisa que fiz foi telefonar para um dos poucos amigos que deixei no antigo emprego, ele me disse que nunca mais houve qualquer sinal de anormalidade nas dependências daquela companhia ou do restante do prédio. Aparentemente, qualquer que fosse o motivo dos estranhos fenômenos, havia desaparecido sem deixar vestígios. Melhor assim.

Agora trabalho na aviação civil. Importo partes e peças para manutenção de aeronaves. É um bom trabalho, embora o horário não corresponda muito aos meus desejos, mas não posso me dar ao luxo de escolher muito. As instalações da minha nova empresa localizam-se numa área de apoio do aeroporto, um local isolado. Pela janela, vejo muitas árvores e um vasta planície verdejante, é um belo cenário. Entretanto, quando termino minha jornada de trabalho já é noite, isso ocorre devido ao fuso horário, não tenho como evitar.

Mesmo com o sistema de ar condicionado central desligado, isso ocorre sempre às cinco da tarde, percebo que a temperatura da sala não só continua baixa, como diminui mais ainda, gradativamente. Sinto que ainda estou muito impressionado, é compreensível. Apenas o meu quadrante fica iluminado a essa hora, no restante da enorme sala, e lá fora, a escuridão é imensa. Nossa, é inacreditavelmente escuro aqui!

Dez para meia-noite, hora de ir. Sinto um calafrio da cabeça aos pés. Desligo rapidamente o computador, a escuridão agora é completa. Mas, não é isso o que me incomoda, na verdade, posso jurar ter visto o contorno de um rosto no monitor, antes que este se apagasse...

Mesmo sem saber se fora impressão ou não, apresso o passo por entre as trevas, esbarro numa mesa, um aparelho de telefone vai ao chão, não me importo em apanhá-lo. Busco a porta, giro a maçaneta, trancada! Ouço uma voz às minhas costas, ela chama meu nome...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 05/01/2010
Reeditado em 05/01/2010
Código do texto: T2012646
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