A ARTE DE ANA

Se fosse numa situação normal seria impossível contatar aquela mulher. Como são temperamentais esses artistas, sobretudo uma de destaque e talento reconhecidos como a escultora Ana Grog. A julgar pelos caminhos que levam até a sua residência, não creio que ela goste de receber visitas. O rancho que lhe serve de moradia fica incrustado aos pés da serra, de fato um lugar de difícil acesso, quase tão difícil quanto conseguir uma reunião para tratar de trabalho. Mas se tem uma coisa que aprendi ao longo desse anos é que o dinheiro é capaz de proporcionar verdadeiros milagres.

Posso afirmar que estou acostumado a excentricidades, visto que trabalho para uma pessoa extremamente extravagante, um herdeiro de um grande império industrial, o sujeito, hoje um senhor de meia idade, nunca se deu ao luxo de trabalhar, mas domina como ninguém a habilidade de esbanjar e ostentar.

Nem sei bem como definir a minha função. Gerente? Assessor? Acho que um “faz-tudo” se encaixa melhor na definição dos meus afazeres. Agora ele quer uma escultura de corpo inteiro, um símbolo para ser exposto no pavilhão externo do conglomerado. Mas não pode ser uma estátua qualquer, não, ele exige que seja uma obra de Ana Grog, da renomada e temperamental Ana Grog. Por conta disso estou aqui, após cansativas e demoradas tentativas de contato, finalmente estou a caminho desse maldito sítio, ou rancho, sei lá. Mas, não posso me queixar muito não, afinal, recebo um bom salário para fazer as vontades do velho. Dinheiro, esse opera milagres...

Bom, o lugar deve ser esse, mesmo porque não há mais nenhum outro sinal de civilização num raio de quilômetros. A mulher pode ser esquisita, mas tem muito bom gosto, isso não posso negar. O trabalho em pedra nos muros é realmente refinado, os entalhes na madeira enegrecida do portão também são fascinantes.

Deslizo suavemente os dedos pela superfície escura que lacra a entrada, e como se percebesse meu toque, o portão desliza, oferecendo a entrada da residência, quase me levando ao chão pelo ato inesperado. “Pode entrar, senhor Carrara”, disse uma voz oriunda de um dispositivo de comunicação incrustado lateralmente no vão de entrada. Só então percebi que estava o tempo todo sendo observado por um circuito interno de monitoramento.

Deixei o carro do lado de fora e adentrei pelos domínios da propriedade. Que lugar lindo! Uma harmonia perfeita entre as dádivas naturais e a capacidade criadora do homem. Um verdejante e extenso jardim se estendia, em sentido de profundidade, até a base das montanhas. Entre os limites da entrada e os gigantes de pedra, ao fundo, ficava uma magnífica construção em dois pavimentos. Branca! Radiante! Reluzente ao contato com os raios de sol.

Entretanto, o que mais impressionava não era a imensa cordilheira, ou o tapete verdejante, muito menos a moradia da artista, o que mais saltava aos olhos estava espalhado em todas as direções do jardim. Altivas! Imponentes! Cativantes! As esculturas eram simplesmente deslumbrantes, e pela primeira vez nesse trabalho, me atrevo a dizer que o valor disponibilizado pelo meu chefe por uma obra de arte verdadeiramente valeria a pena.

Desviei do caminho que havia traçado até a casa, me aproximei de uma das inúmeras fontes que enfeitavam o ambiente. A água brotava de um jarro postado nos braços de uma mulher nua, jorrando numa cascata cristalina e acomodando-se num cercado de pedra, aos pés da escultura. Dentro do pequeno lago, peixes ornamentais nadavam por entre mini esculturas das mesmas espécies, formando uma harmonia perfeita entre vida e arte.

Era possível notar diversos tipos de animais representados em pedra: cães, gatos, cobras, aves, capivaras, alguns ruminantes, enfim, uma diversidade impressionante. Todas as obras confeccionadas com precisão, zelo e um realismo incomparável. Sem contar as estátuas que reproduziam pessoas, todas perfeitas em cada ranhura, em cada detalhe mínimo. Essa mulher deveria ter verdadeiras mãos de fada ou...

- Demônio! Ou quem sabe um anjo? – Disse uma voz feminina às minhas costas, proporcionando o segundo susto do dia.

- Como? – Perguntei quase automaticamente.

- Um demônio ou anjo. Sempre tive vontade de reproduzi-los em pedra, mas nunca estive frente a frente com um ou outro para que pudessem me servir de modelo. Como posso mostrá-los como realmente são sem tê-los visto?

A pergunta não necessitava de resposta, fora feita como uma confissão de pensamento. Mesmo que eu quisesse argumentar algo, seria impossível. Minha voz teimava em me desobedecer. Aquela mulher me causava mais espanto do que as figuras de pedra.

- Acompanhe-me, senhor Carrara.

Eu a seguiria até o inferno, se assim ela me ordenasse. Enquanto caminhávamos, ouvi um som estranho, semelhante a assobios, tive vontade de perguntar, mas me senti constrangido.

Entramos na casa, me recostei num confortável sofá. Sem que tivesse sido oferecida, ou que eu tivesse aceitado, uma xícara de chá já estava postada ao meu lado. Ana se acomodou à minha frente, agradeci internamente pela possibilidade de contemplar tamanha formosura.

Diferentemente do que eu pensava, visto que eu não havia encontrado nenhuma imagem dela antes dessa reunião, portanto, só pude especular acerca de sua aparência, ela não era uma velha amargurada como sua fama poderia indicar, longe disso. Ela exalava uma jovialidade contagiante, exibia uma vasta e longa cabeleira de coloração avermelhada, como as brasas de uma fogueira composta pela madeira mais nobre. Um conjunto simétrico de sardas se espalhava pelas maçãs de seu rosto e pelos ombros. Se cada pequeno ponto fosse uma estrela e a pele alva o céu, não haveria comparação mais bela. Já me deparei com diversas obras de arte, pinturas de mestres famosos, e posso garantir que nunca vislumbrei em nenhuma delas, ou mesmo na natureza, um tom de verde semelhante ao estampado em seus olhos, chamá-los de esmeraldas seria um leviandade.

- Não vai experimentar o chá? – A pergunta serviu para quebrar o transe hipnótico no qual estava mergulhado.

- Sim, sim, claro – sorvi um longo gole da bebida, mal percebi o gosto – está ótimo, obrigado.

- Sabe, senhor Carrara, sou uma pessoa reservada, não gosto de receber visitas. De qualquer modo, aceitei a encomenda do seu empregador porque percebi um certo apego demasiado à ostentação, sem falar, é claro, do narcisismo evidente. Isso é bom para os meus negócios. Entretanto, se aceitas um conselho, fique longe de pessoas assim, e não compareça à sessão de moldagem, por favor. Peço isso porque minha irmã, que mora comigo, me serve de assistente no processo de criação, e ela é ainda mais reclusa do que eu, não tolera a presença de ninguém que não esteja envolvido artisticamente com o assunto.

- Eu não sabia que a senhora tinha uma irmã, quanto mais envolvida com a arte também.

- Sim, eu tenho, duas irmãs, na verdade. Entretanto apenas uma vive comigo, a outra não mora nesse país, não a vejo há muitos anos, mas isso não vem ao caso. O senhor pode cumprir minha solicitação?

- Certamente. Amanhã o trago para a sessão de moldagem.

- Não. Peça que tome um táxi ou que venha guiando o próprio carro. Não quero motoristas, não quero ninguém esperando na minha porta e não quero mais vê-lo por aqui, senhor Carrara. Seu patrão que venha só e volte só. Depois eu mando entregar a criação. Temos um acordo?

- Sim, senhora Grog, como queira.

No dia seguinte, meu patrão seguiu rumo ao rancho, mas ele não estava só. Como disse, o sujeito era arrogante ao extremo, e não admitia por as mãos num volante de automóvel, tão pouco tomar um veículo de aluguel. Sendo assim, usei minha flexibilidade para conseguir um taxi que eu mesmo pudesse guiar, dessa forma, eu poderia deixá-lo no local combinado e retornaria num horário combinado para buscá-lo.

Mas tinha um problema, eu não conseguia tirar da cabeça a possibilidade de acompanhar o trabalho daquela mulher de mãos tão habilidosas. Com isso, um plano já estava traçado em minha mente: eu deixaria o velho, esconderia o carro longe dos olhos curiosos da câmera e daria um jeito de entrar na residência a fim de espionar.

Observei a abertura do portão e a entrada do chefe. Então, acionei a ignição e saí. Não foi difícil encontrar um local para ocultar o veículo. Abri o porta-malas e retirei uma escada modulada, abrindo-a como uma sanfona seria fácil vencer o obstáculo representado pelo muro.

Já dentro dos domínios da artista, segui diretamente para a casa, a porta destravada facilitou o acesso. Um silêncio absoluto tomava conta do ambiente. Como não existia nenhum tipo de empregado fixo no rancho, seria fácil circular pelos cômodos. Deduzi que o ateliê ficava no fim do longo corredor, pelo menos foi o que pude notar no dia anterior. Caminhei sorrateiramente.

Percebi uma porta aberta, olhei pelo vão e o que vi me deixou fascinado: uma estátua perfeita do velho, de pé, braços erguidos. Como um trabalho tão perfeito pôde surgir de uma maneira tão rápida? Não tive tempo para refletir sobre a questão, pois ouvi uma voz rouca e sibilante...

- Euríale! Você não falou que havia mais um...

Uma luminosidade esverdeada bruxuleava no interior do cômodo, de onde se originava o som. Uma outra voz feminina, esta conhecida, surgiu às minhas costas.

- Eu falei para você não aparecer mais aqui!

Ana me empurrou para dentro da sala enquanto gritava comigo.

- Você é um bom homem, senhor Carrara, mas a curiosidade não é uma qualidade. Por isso, nada mais posso fazer por você.

A luz de tonalidade verde provinha de uma grande bancada onde, por mais bizarro que possa parecer, estava postada uma cabeça, isso mesmo, uma cabeça humana. Ela estava voltada para a parede, na qual um grande painel representava uma construção antiga, com muitas colunas de mármore reluzente.

Os cabelos ostentados na cabeça eram louros, mas permitiam uma interpretação diferente mediante a iluminação incomum. A voz voltou a ecoar, competindo com o som ensurdecedor de assobios, eu nunca havia presenciado espetáculo tão perturbador.

- Eu quero a alma dele! Eu quero a alma dele!

A voz repetia a frase como se fosse uma ordem, uma necessidade urgente e irremediável. Por mais absurdo que fosse tudo aquilo, ainda consegui me surpreender, pois a situação ficava cada vez pior. Não encontro palavras que possam traduzir o horror estampado diante de meus olhos. Os cabelos daquela coisa maldita sobre a bancada começaram a se agrupar, sem qualquer interferência ou ação externa, grandes tranças surgiam e se mexiam como se a vida corresse por aqueles fios.

Logo os entrelaces capilares se converteram em algo pior, algo macabro que eu julgava poder existir apenas em antigas lendas: um emaranhado de serpentes, vivas, grudadas umas nas outras, fincadas como membros repugnantes naquela cabeça. A mulher, a qual a cabeça chamava de Euríale e que eu havia conhecido como Ana, caminhou até a bancada e agarrou algumas serpentes, trazendo aquilo até mim.

Os olhos da criatura estavam cerrados, a pele da face era escamosa e sórdida, presas afiadas enfeitavam o sorriso hediondo daquela boca, da qual pendia um longa e fina língua bifurcada.

- Esteno deveria estar aqui, irmã! Ela deveria estar aqui, a terceira irmã! – Falava a maldita.

A porta estava trancada, não havia mais saída. A voz daquela criatura oprimia meus sentidos, mas, ainda assim, um pensamento estava claro em minha mente: Ana Grog, Gorg Ana, Gorgana, Górgona! Não haveria escapatória. Fechei os olhos no exato instante em que a criatura ergueu suas pálpebras, por uma fração de segundo nossos olhares se cruzaram, não lembro de mais nada.

Acordei com uma terrível dor no corpo, não conseguia mexer um só músculo. Minha visão era turva, não havia muita distinção de cores. Enxerguei uma dupla cruzar o portão externo: um rapaz e uma moça. Eles estão olhando tudo, maravilhados, não, preciso avisá-los de que aqui é um local perigoso. Não consigo me mexer, estou paralisado. Grito com toda a força dos meus pulmões, eles precisam me ouvir, devem fugir daqui...

- Que som é esse, Raquel?

- Parecem assobios...

* A Górgona é uma criatura da mitologia grega, representada como um monstro feroz, de aspecto feminino. A mais conhecida delas ostentava serpentes na cabeça e transformava em pedra todos aqueles que a olhassem.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 06/01/2010
Reeditado em 08/01/2010
Código do texto: T2014084
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