O som da noite

José Teodoro, 12 de maio de 1949

Antes de qualquer intimidade devo admitir que não suporto crenças sobre as melhoras pretendidas com tal tipo de tratamento, porém considerando que me foram negadas outras opções, irei dar continuidade ao mesmo, ressaltando que não por suas finalidades terapêuticas, mas sim para preencher as tardes mortas que ganhei vindo para este fim de mundo.

A cidade não é de todo ruim, de fato, mas não o é apenas para aqueles que não chegaram a viver a vida intensa da capital. Sinto falta do concreto sob meus pés e das constantes sombras derramadas pelos altos prédios. Até mesmo o ar pesado e escuro me deixou saudade. Irônico, eu sei, mas acho que sempre tive certa predileção por aquilo que me faz mal. Considerando os últimos acontecimentos de minha vida, acho realmente que a única coisa maléfica que deixo passar com indiferença se encontra na figura de meu pai. Sim, não sou um modelo perfeito de filho, mas a anos a convivência com meu pai se tornou insustentável. Penso que a morte de minha mãe foi a real assassina dessa relação pai e filho; não que eu a culpe, mas nosso distanciamento se principiou no mesmo instante em que ele preferiu meter a cara em seus projetos e plantas ao invés de chorar a perda ao meu lado. Infelizmente creio que sua cara se mantém mergulhada em trabalho até hoje.

Deixando as crises e problemas familiares de lado, retomarei agora apenas aos meus, não que seja egocêntrico ou coisa parecida, mas o simples fato de que em valores numéricos eu ultrapasse a somatória de escândalos da família Castro nas últimas quatro gerações me dá esse crédito. Desta papai deve se orgulhar.

Bem, escrever um diário me é uma grande novidade, e devo admitir que o psiquiatra recomendar esta atividade me pareceu uma brincadeira de mal gosto, mesmo ela vindo acompanhada de uma dose drogas que daria inveja a qualquer paciente em estado terminal, mas papai sempre teve bons olhos por estes tratamentos de vanguarda. Segundo o médico, esta seria uma forma de separar o mundo real da fantasia que disputam terreno em minha mente através de uma releitura clara de tudo que fiz durante o dia. Ainda não digeri esta idéia, mas como dizem, melhor do que nada. Adotar esta terapêutica na realidade não foi nenhum incômodo, até mesmo aos remédios me habituei, mas a mudança para o interior do estado tem sido a pior experiência de minha vida.

Ainda quando estava no Brasil, papai trabalhou na extensão da Estrada de Ferro Sorocabana como engenheiro chefe e acabou investindo na região. Comprou um pequeno rancho as margens do Rio do Peixe, antes mesmo deste ser represado. Agora com a convocação para trabalhar na reconstrução da Europa pós-guerra resolveu me enviar para esta terra cercada de nada, escondido e longe do campo de visão da sociedade paulistana. Para papai não fica bem um filho esquizofrênico carregando o nome dos Castro.

Esta área é de pertence de família desde meus cinco anos de idade, mas nunca antes havia tido contato com a mesma. Sempre me pareceu que este canto do estado estava perdido em meio ao mato, devorado pela Mata Atlântica e isolado da civilização. Hoje sei que não estava de todo errado. Considero veemente que José Teodoro segue mais para o Mato Grosso do que para o estado de São Paulo. Pode ser ignorância de minha parte, mas em nada consigo ligar esta cidade à capital onde nasci. A viagem de chegada me valeu boas horas, mais do que pareciam necessárias para percorrer os seiscentos quilômetros de distância. Papai já havia sido transferido para a filial em Madri da empresa, então apenas me restou fazer uso das linhas ferroviárias para chegar a cidade. De certo modo posso dizer que foi mesmo meu pai que me trouxe para cá. Para adequar o horário de chegada em José Teodoro optei por partir no primeiro trem do dia, partindo logo nas primeiras horas da manhã, mal o sol irrompendo o horizonte. Nas primeiras horas da viagem pude aproveitar para dormir parte do percurso, e mal me dei conta de me despedir da vida que possuía. Com o fim da tarde vieram os grandes campos de café e algodão, onde homens e mulheres labutavam em meio aos mares verdejantes colhendo seu ouro negro e branco. Estas matérias primas são o combustível que impulsiona a economia da região, e foram até mesmo as responsáveis pela extensão da linha ferroviária para o oeste do estado, visando o seu escoamento para o centro do mesmo. Poucas horas depois, serpenteando entre as plantações, cheguei a estação ferroviária de José Teodoro. Recém inaugurada, ela segue uma arquitetura barroca, quase uma prima distante das capelas mineiras. A infelicidade é de apenas este prédio apresentar algum leve traço de sofisticação. Há em toda a cidade uma minoria de ruas rusticamente asfaltadas, e as construções com alguma extravagância, como um sobrado ou um melhor acabamento, pertencem a órgãos públicos. Não me cabe julgar a cidade, no entanto para um município onde oitenta por cento da população se encontra em meio à zona rural a sua disposição e estrutura são consideravelmente boas. E agora os oitenta por cento receberam um novo reforço, pois o rancho onde estou se localiza a dez quilômetros do centro de José Teodoro, nas proximidades da barragem do Rio do Peixe.

Mal me foi dado tempo para esticar as pernas após a exaustiva viagem e me dei de cara com Heleno, o caseiro do rancho, encarregado pela baldeação rumo ao destino final que estava a me esperar na estação de trem. Aceito que meus vinte e dois anos não sejam nenhum parâmetro para experiência, mas não se pode negar que valho mão de um amplo espectro de pessoas com as quais tive contato em minha vida em São Paulo, mas Heleno foi com certeza um dos tipos mais estranhos que já vim a conhecer. Era um caboclo alto e magro beirando talvez a sua quinta década de vida, e seu olhar sisudo entregava o peso da idade. Seus curtos cabelos lisos lutam para manter o negror que lhes são roubados pelo tempo e estavam parcialmente escondidos por um pequeno chapéu de palha. As marcas do trabalho infligem-lhe todo o corpo, evidenciadas em sua pele rachada e lastimada pelo sol. Seu rosto magro e sulcado é dotado de uma barba rala e mal feita, a qual rodeia sua boca com os poucos dentes presentes em precária situação. Usava uma camisa xadreza surrada branca e vermelha acompanhada por uma calça que um dia já havia sido bege, mas atualmente seria melhor classificá-la como marrom, e uma sandália de couro gasto. Embora não se encaixe de nenhum modo em qualquer padrão de beleza, a descrição até o presente momento nada tem de anormal quando comparamos a tantos outros trabalhadores rurais, porém não foram elas as responsáveis pelo meu espanto. Logo que o vi foram elas que me retiveram toda a atenção, duas grandes cicatrizes percorrendo lateralmente o pescoço, uma em cada lado, partindo de algum lugar por de baixo da camisa e se perdendo em meio ao cabelo. Somado a isso, notei que Heleno possui uma certa deficiência motora, o que é evidente em sua locomoção manca e arrastada, e pressuponho que haja alguma debilidade mental associada, pois o mesmo não detém de todas as habilidades da fala, sendo que em muitos momentos não pude entender o que dizia corretamente, e em momento algum de nossa conversa ele olhou-me nos olhos. Na realidade imagino que parte disto se deva ao nervosismo e a timidez, pois de forma alguma está acostumado com a visita de forasteiros. Porém, ao contrário do que poderia se pressupor, não posso dizer que em momento algum fui destratado. De sua forma, Heleno me recebeu bem, e com uma charrete a cavalos e meia troca de palavras me conduziu até o rancho.

Conforme seguia a estrada rumo a meu destino, notei que cada vez mais as plantações de café e algodão ficavam mais escassas, dando lugar a uma imponente vegetação fechada. O ar ancestral que exalavam das grandes árvores me oprimiam de um modo que nunca havia experimentado antes, como se toda a idade do mundo corresse por entre suas folhas. Pensava que segredos e perigos espreitavam entre os séculos escondidos nestas matas. Já era fim de tarde, e o sol jogava debilmente seus últimos raios sobre a copa das árvores em sua despedida ao dia. Por sorte conseguimos chegar antes do sol desaparecer por completo, pois confesso que temia a chegada da noite no momento em que estava cercado pelas paredes silenciosas da floresta.

Na chegada pouco pude ver da área do rancho, apenas conheci o estábulo, onde foi deixada a charrete, e a casa da sede, mas ainda não posso caracterizá-la fielmente, pois apenas consegui ver aquilo que a luz a gás presa próxima a porta de entrada pode me fornecer. A cerca de quarenta metros da porteira da entrada a casa se ergue na parte central do terreno. A casa é um sobrado feito com tijolos a vista e um telhado com telhas de barro. Possui grandes janelas no andar inferior nas partes correspondentes a sala de visitas e a cozinha, havendo ainda neste piso um banheiro e um pequeno escritório com uma boa soma de livros. No andar superior são onde estão localizados os quartos, sendo um maior, no qual estou instalado, e outros dois para visitas. No geral os quartos são bem simples, possuindo uma cama com um criado mudo lateralmente, um guarda roupa e, no quarto maior, uma escrivaninha. Ainda não desfiz minha malas, mas creio que poderei adequar bem o quarto para melhorar meus dias de exílio.

Ao chegar fui recepcionado pela família de Heleno, formada por sua esposa Cícera e suas duas filhas, Mariene e Rosângela. Cícera me pareceu pouco mais nova que Heleno, mas as marcas do trabalho também estavam escancaradas em seu corpo. Sua pela morena ressecada e os calos em suas mãos denunciavam a difícil vida que possuía. Também com descendência indígena, seus cabelos lisos e de um negro intenso descem até cerca de um palmo abaixo dos seios. Provavelmente como reflexo de uma vida de submissão ao marido, sua postura se mantém curva com a cabeça prostrada e os olhos constantemente vagueando por qualquer lugar no chão. Também pude notar nas poucas palavras que troquei com a mulher que ela detém a mesma deficiência do marido em relação à comunicação, bem como no modo de andar. Espantou-me que tais características não tenham sido transmitidas as filhas, duas garotinhas de sete e nove anos completamente saudáveis, apenas carregadas da timidez pertinente a qualquer criança.

Hoje o dia rendeu-me muitas novidades, se bem que mais preferia destas não ter nenhuma. Amanhã irei me familiarizar com as áreas vizinhas a casa e o restante da região; o peso da mata fechada que cerca este terreno me instiga mais e mais por desvendar seus segredos.Todavia, por hora devo descansar para o novo dia. Veremos o que este novo mundo reserva para mim.