O som da noite - 2ª parte

José Teodoro, 13 de maio de 1949

Em minha memória não consigo recordar de nenhuma noite tão bem dormida como foi esta que tive. Realmente os poderes relaxantes que atribuem aos ares do campo se provaram muito eficazes. Logo após levantar e tomar meus comprimidos resolvi descer para explorar os arredores do rancho. Ao chegar ao piso inferior, Cícera havia preparado uma fornada de pão e deixado uma jarra de leite sobre a mesa para o desjejum. Como já havia imaginado, culinária não vem a ser um dos dotes que esta mulher detém. Os pães estavam praticamente cruz e disformes. Já não me espanto mais com a magreza de Heleno.

Segui para conhecer as dependências do rancho, já que a escuridão que pairava em minha chegada ontem me impediram de o fazer. O estábulo, o qual já me era familiar, se localizava a esquerda da casa, a cerca de vinte metros da mesma. Cerca de trinta metros atrás da casa da sede há uma construção em muito mais simples, e lá Heleno e sua família residem. A casinha de madeira deve possuir no máximo três cômodos e imagino que isto atenda todas as suas necessidades, já que utilizam um pequeno banheiro externo e compartilhamos a cozinha de minha casa. Seguindo na mesma direção por mais dez metros existe um grande poço vedado com tábuas de madeira e ao seu lado uma casa de máquinas mal acabada onde, segundo me foi dito, são guardadas todas as ferramentas, fertilizantes e rações utilizadas para a manutenção do rancho. Não pude averiguar seu interior pois não encontrei Heleno nenhum momento da manhã. Realmente creio que o caseiro é um homem muito trabalhador, já que em poucos momentos o vi inerte nas dependências do rancho. Ainda assim, sempre que o vejo há algo primitivo em minha cabeça que me faz gelar até os ossos, como um sinal de alerta. Talvez sejam as cicatrizes, mas acho que o que mais vem me incomodando é seu olhar cerrado estático sempre fixado em algo que não consigo ver. Bem, talvez seja só implicância de minha parte.

Prosseguindo a expedição, segui um caminho de pedras que seguia descendo por um pequeno morro aos fundos do terreno até morrer aos pés da imponente mata. Encarando-a frente a frente pela primeira vez envolveu-me aquele irracional medo que nos envolve na infância quando nos deparamos com o desconhecido. Céus, como algo tão comum pode me gerar tanto mal estar? Não, comum não. Algo me diz que normalidade não é algo que resida em suas entranhas verdes. Apenas me falta saber se este algo se atende por instinto ou por loucura.

Estranhamente, mesmo tomado pelo leve medo, senti um ímpeto por adentrar naquele labirinto. A luz do sol lutava debilmente para passar pelas densas copas das árvores que subiam rumo a céu, de modo que apenas uma penumbra pairava no local. Uma atmosfera ancestral pesava sobre o ambiente. Tive a impressão de que tudo ali estava a décadas sem ser tocado, uma casa abandonada a muito esquecida. Minha pele estranhava o gélido toque da umidade do ar abraçando meu corpo. Uma carícia sedutora para me conduzir mais adentro da mata. Caminhando em frente segui desviando dos emaranhados de cipós que se escoravam em jequitibás, perobas e jatobás que Hora ou outra abriam espaço para dezenas de orquídeas, begônias, bromélias e tantas outras flores proliferadas pelo chão ou nos troncos das árvores, explodindo em mil cores e aromas. Lembro que no início da minha adolescência certa vez papai me disse que era preciso escolher com muito zelo as mulheres com quem me relacionaria, pois elas usam sua beleza para mascarar seus perigos. Foi esta a memória que saltou em minha mente naquele momento.

Mas foi a alguns metros a frente, enquanto me equilibrava sobre algumas pedras lodosas com cuidado de equilibrista, que me deparei com a coisa mais pavorosa que já tive contato. No tronco de uma grande figueira, poucos passos a minha frente, haviam marcas de garras gravadas profundamente em sua superfície. A simples possibilidade de alguma fera, como as onças que sei serem comuns pela região, me espreitar pela penumbra já me causaria calafrios, mas a disposição daquelas marcas fugia de qualquer possível compreensão! Na porção central seguiam três marcas paralelas próximas, enquanto lateralmente seguiam outras duas convergindo para a região inferior, uma a direita e outra a esquerda, estando esta ligeiramente mais afastada. Céus, que criatura poderia ter feito uma marca desta?! A altura da marca em relação ao chão indica que o animal tenha grande porte, ou ao menos consiga se posicionar sobre duas patas. Mas...animal? Ainda me questiono que ser hediondo possuiria tão estranha anatomia. E foi pensando nisto que tive a percepção de algo me gelou a espinha e fez com que saísse em fuga da densa mata: desde o momento de minha chegada, não havia ouvido nenhum animal.