O Ônibus Quebrado

Vila Magnólia é bem movimentada durante o dia, mas é a noite que a cidade desperta. Quando a claridade crepuscular vai embora permitindo que as lâmpadas de mercúrio derramem suas luzes amareladas sobre as ruas, as figuras mais ilustres põem a cara para fora, lotam os bares badalados e boates que dão o tom da vida boêmia.

Augusto estava presente na vida noturna da cidade, mas em relação à pândega, ficava do lado oposto, pode-se dizer que era integrante daquilo que as figuras ilustres se referem como a outra espécie, pois era barman do Holiday Bar.

Em uma noite de terça-feira, precisamente à meia-noite e trinta um, Augusto estava na Praça Central à espera de seu ônibus que só chegaria em vinte e nove minutos. Enquanto fumava um cigarro observava a movimentação do único lugar considerado seguro no horário. A Praça Central é uma extensão com pouco mais de cem metros à beira da rua, contém três bares funcionando vinte e quatro horas, inclusive nos feriados. São os únicos estabelecimentos da cidade em que se encontra bebida barata na madrugada, fato que acaba atraindo uma clientela não muito exemplar.

Cerca de sessenta por cento das pessoas que compõem a chamada outra espécie permanece no local durante as altas horas, seja para esperar um ônibus, tomar uma cerveja, comprar e vender drogas ou encontrar sexo a preço d’água.

Augusto mantinha seu boné à mão, não era seguro deixá-lo na cabeça, alguém poderia surrupiá-lo para trocar por pasta base, que é consumida sem malícia na frente de viaturas que por ali trafegam fingindo serviço. Terça-feira é a noite com menos movimento, o que permite à outra espécie ir dormir mais cedo.

Augusto tirou seu celular do bolso, sempre atento aos movimentos dos outros, discretamente pôs os fones nos ouvidos e tentou relaxar na melodia de uma banda que gostava. Depois de três músicas o ônibus encostou. Lentamente foi lotando. Augusto sentou-se perto da catraca, olhou para trás para ver se via algum amigo, mas só notou conhecidos: pessoas que pegavam o mesmo ônibus todas as noites, gente com quem a conversa se limitava a um simples cumprimento ou acenar de cabeça. Algumas garotas ao fundo do carro começaram uma pequena baderna. Augusto pôs seu aparelho no volume máximo no intuito de abafar qualquer ruído incômodo.

O ônibus seguiu o trajeto a uma velocidade razoável, Augusto adormecera com a brisa que entrava pela janela combinada com a melodia suave de sua playlist. De repente, houve um grande solavanco e Augusto foi jogado contra o banco da frente. Os fones caíram de seus ouvidos e ele pode ouvir todos reclamando e xingando o motorista:

Acha que tá carregando tua mãe, ô!

Isso aqui não é caminhão de boi!

O motorista se pôs de pé e apontou para a frente do veículo que expelia uma fumaça azulada.

Ah que ótimo, o busão quebrou!

— Relaxa pessoal! — disse o cobrador tentando acalmar o povo. — Tamo perto da garagem. A gente já vai pegar um carro reserva!

As portas foram abertas e os passageiros desceram tranquilamente para a noite fria. Os resmungos não passavam de encenações inconscientes. O ônibus quebrar era de praxe. Ninguém ligava de esperar alguns minutos pelo carro reserva, visto que já era uma rotina. Estavam em um trevo que levava a um dos bairros de pior fama da cidade.

Os notívagos foram se ajeitando pelo meio fio enquanto o motorista e o cobrador seguiam por uma rua escura. Augusto ficou perto de um outdoor ouvindo suas músicas. Atrás do outdoor só havia mato até onde as vistas podiam alcançar. No lado oposto do trevo haviam vários motéis baratos.

Passaram-se quinze minutos até que o motorista e o cobrador voltaram com o outro veículo. No mesmo instante, um rapaz ia entrando no meio do mato já abrindo o zíper da calça.

— Pede pra ele esperar só um minuto — gritou para um colega.

As portas traseiras do veículo foram abertas e os passageiros correram para conseguir se sentar em um bom lugar.

Augusto pôde ver o colega do rapaz no mato passando o recado para o motorista.

Esperaram por cinco minutos.

A bateria do celular havia terminado. Augusto enrolou os fones no aparelho e o guardou em seu bolso.

— Que que teu amigo tá fazendo lá, hein? — indagou o motorista impaciente.

— Não sei, ele já devia ter voltado — disse o rapaz apreensivo.

— Vai lá chamar ele. Se demorar, eu deixo os dois aí na rua!

O rapaz saiu com um ar ranzinza do carro e entrou no matagal chamando pelo nome do outro.

Todos olhavam curiosos para a mata escura.

Sem avisos, algo foi arremessado lá do meio da mata em direção as janelas do coletivo.

Automaticamente, todos se abaixaram para se proteger no instante em que o que quer que fosse estourava uma das vidraças.

Uma das garotas no fundo do ônibus soltou um grito aterrador.

Os passageiros olhavam bestificados para o que fora arremessado: uma cabeça humana.

— Minha nossa! Acelera essa joça! — gritou um velho logo atrás de Augusto que tinha a boca seca e os olhos arregalados ante aquele horror. O motorista fechou as portas e acelerou, mas o carro apagou. O interior do ônibus agora só era iluminado pelas luzes de mercúrio nos postes à beira da estrada. O silêncio só não era total devido às exclamações chorosas e aterrorizadas e um estranho ruído metálico.

— Meu Deus! — disse o motorista levantando-se de chofre. — Alguma coisa está comendo o motor!

Todos se calaram ouvindo o estranho barulho que cessou de repente.

Em seguida ouviu-se uma batida no teto do ônibus.

— Tem alguma coisa lá em cima! – sussurrou alguém ao fundo constatando o óbvio.

A vidraça atrás do cobrador se estilhaçou e ele foi puxado para fora por duas enormes pinças.

O que Augusto estranhou é que ninguém dizia nada enquanto o cobrador gritava lá fora, para ele o momento pedia gritos e mais gritos, mas imaginou que todos deviam se sentir como ele, aterrorizados demais para emitir qualquer som.

De cima do ônibus desceu o som de algo sendo rasgado e a lateral por onde o cobrador havia sido puxado foi banhada de sangue.

Os gritos recomeçaram.

Todos se levantaram, acotovelando-se nos degraus, tentando abrir as portas a qualquer custo, alguns tentavam pular pelas janelas, mas acabavam sendo puxados para cima como o cobrador. O barulho era ensurdecedor: gritos e corpos sendo dilacerados quebravam o silêncio da noite na rua deserta. Augusto estava paralisado no meio do ônibus quando uma das coisas entrou pela janela.

A criatura parecia uma cruza de lagosta e escorpião saída de um filme B.

Nem teve tempo de se perguntar de onde aquilo viera, em apenas um salto ela se lançou sobre ele. As duas pinças cravadas em seu ombro e um enorme ferrão estocado no abdome lhe tiraram a consciência em uma fração de segundo.

***

Manhã seguinte

Dois pontos à frente de onde ocorrera o incidente durante a madrugada, um senhor de meia idade acabava de se levantar deixando o jornal que estava lendo no banco. Se encaminhava para uma multidão perto do trevo dos motéis com o objetivo de comprovar se a notícia que acabara de ler era verdadeira.

Mistério Macabro!

“Nessa madrugada a polícia militar foi acionada por um motorista da companhia de transportes urbanos VilaTrans que informou ter encontrado dois ônibus quebrados no trevo que liga os bairros Imperial e Costa Verde. João Miguel voltava de uma festa quando se deparou com os dois veículos. Teria seguido seu curso normal se não parasse para verificar todo aquele óleo na pista.

Para sua surpresa, o líquido que cobria a rua era sangue. Assustado, o motorista entrou em contato com as autoridades que não encontraram nada nos coletivos a não ser os pertences de 43 vítimas. A busca pelos desaparecidos continua, a população pede por respostas à tamanha barbárie.

O Coronel Joaquim Siqueira se encarregou pessoalmente do caso e nos manterá informados de novas descobertas”

[Extraído do Diário de Vila Magnólia, 12/01/2020].

FIM

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Conto publicado em 2021 na antologia "Histórias Para Ler e Morrer de Medo - IV"