O som da noite - 3ª parte

José Teodoro, 14 de maio de 1949

A experiência perturbadora de ontem me rendeu uma noite conturbada. Pesadelos incontáveis me assombraram noite a fora e por vezes me vi acordado e suando frio. Em meus sonhos me deparava com as estranhas marcas de garra por todos os cômodos de minha casa, os quais estavam totalmente revirados. As hediondas garras haviam escorregado pelas paredes, riscado o chão e destruído os móveis. Garras, garras, garras! Não havia canto que não houvessem profanado: as escadas, as portas, as estantes, minhas mãos! Meu peito! As incisões profundas faziam meu sangue escorrer quente pulsando pelo meu abdômen e entre meus dedos para encontrar o seu fim no chão da sala. Corria para o meu quarto, e também o encontrava destruído. Temeroso, me virava para fechar a porta na busca de uma falsa segurança e via de soslaio um vulto negro estático no sopé da escada. Tentava fixar meu olhar na figura, mas já não a encontrava mais. Assustado, buscava o centro do quarto, recuando a passos curtos. Tentava segurar minha respiração frenética, como se o mínimo ruído pudesse me entregar. Parado a uns dois metros da porta tornava o rosto para a escrivaninha e me deparava com a janela escancarada. O vento noturno soprava impiedoso varrendo qualquer cor que ainda houvesse meu rosto. Lá estava ela! Jogada no chão, a figura negra mantinha-se estática me examinando. Minhas pernas fincaram no chão e eu já não podia mais ir a lugar algum. A porta por trás de mim se fechava com um estrondo, e ficavamos apenas os dois naquela mórbida contemplação acompanhados apenas pela luz da lua que entrava furtiva pela janela. Era então que num bote a criatura toma impulso saltava sobre mim! Sua forma eu não conseguia determinar, apenas vislumbrava suas mil garras revirando minha pele e músculos e sua respiração quente próxima ao meu rosto. Nesse instante sempre acordava ofegante, me custando um bom tempo para cair no sono novamente.

Em soma aos pesadelos, não posso esquecer do agravante de que a mente, nesses momentos específicos, não contente com o clima presente, decide por pregar peças para instigar ainda mais nossa imaginação e medo. Em três vezes durante a noite tive a impressão de ouvir algo se arrastando no piso inferior. Nesses momentos tomei a lamparina a gás em mãos e desci ao andar térreo, mas nada averiguei em minhas inspeções, me limitando por fim a apenas trancar a porta do quarto. Hoje ao amanhecer, tendo o sol como aliado, busquei alguma marca ou sinal no andar, mas não me deparei com nenhuma anormalidade. Com exceção de Heleno e sua esposa, obviamente.

Estes sim são realmente estranhos. Ontem, após o jantar e minha experiência inusitada, resolvi contar o episódio a Heleno. A conversa seguiu mais ou menos da seguinte forma, segundo me sustenta a memória:

-Mas o senhor sabe que tem muito bicho nessa mata, não sabe? – me disse Heleno indiferente, com seu olhar sempre perdido evitando meus olhos, enquanto enrolava um cigarro de palha.

-Certamente Heleno, em uma mata dessas é impossível se pensar o contrário, mesmo que seu silêncio pareça demonstrar isto. Mas aquilo... aquilo seria deixado por que animal?-perguntei ao caseiro com certa ansiedade na voz, enquanto buscava inutilmente seu olhar.- Nunca em meus quatro anos de faculdade de veterinária vi ou ouvi nada a respeito.

- Tem coisas que não ensinam nessas faculdades patrão. Tem muita onça no meio desse mato, o senhor teve sorte de...

-Não, não foi onça, Heleno. -interpelei irritado. Nesse momento me pareceu que Heleno duvidava de minha história, ou como meu pai, de minha sanidade. - Não menospreze o meu conhecimento na área, saberia muito bem se fosse uma onça ou outro animal!

-Mas às vezes o medo mexe com nossa cabeça, não é? – respondeu-me com uma voz mansa e um sorriso de canto. Pareceu-me haver certa dose de malicia em seu gesto, mas ainda não sei se uma pessoa simples como ele teria capacidade de camuflá-la com tamanha sutileza. - Te aconselho o seguinte garoto, não entre lá novamente, um diploma não te valeria nada lá dentro. -disse por fim com autoridade enquanto acendia seu cigarro e dava a primeira tragada.

Apenas a última parte de meu diálogo com Heleno considerei proveitosa. Realmente não havia planos de voltar a aquela mata por um bom tempo, não ao menos antes de arrumar alguma arma de caça na cidade. Por este motivo resolvi ir para o centro de José Teodoro a fim de comprar alguma espingarda para usar em minhas expedições pelo gigante verde. Tenho que confessar que este não foi o principal motivo de recorrer à cidade, mas o fiz principalmente para fugir do bolo de fubá queimado feito pelas mãos fracassadas de Cícera. Resolvi passar pela padaria da cidade para colocar alguma coisa comestível em meu saudoso estômago. O gosto marrento da comida da caseira parecia impregnar minha língua.

Tomei meus remédios e pedi a Heleno que preparasse a charrete com Segredo, um cavalo árabe que papai comprou para ser o garanhão do rancho. O animal é muito vistoso, possui sua pelagem quase que na totalidade marrom, exceto pela porção inferior de suas patas traseiras que é preta, acompanhando a tonalidade de sua crina, e uma pequena mancha branca no centro de sua fronte. Optei por não solicitar a companhia de Heleno, assim pude seguir com mais calma e conhecer os lugares que bem quis. Cruzar a estrada de terra por dentro da floresta me pareceu menos assustador do que fazê-la ao lado do caseiro, e dessa vez creio que acertei. O caminho foi em todo o percurso muito tranquilo. Ao contrário de ontem, pude ouvir o canto dos pássaros durante a trilha, o que me acalmou profundamente.

Chegando a pacata cidade de José Teodoro me dirigi a uma padaria próxima a igreja da cidade. A essas horas meu estômago já ameaçava devorar meu apêndice se levasse mais tempo. Pela primeira vez que cheguei pude comer realmente bem e nunca pensei que um pão com queijo e um café com leite pudesse ser recebido com honrarias de banquete. Após comer uma queijada caseira deixei o dinheiro sobre o balcão e fui me informar com o proprietário onde poderia comprar uma espingarda para manter no rancho. Seguindo a orientação do padeiro, cheguei a uma pequena loja decadente localizada nos fundos da casa de um senhor de meia idade chamado Marcos, que, assim como a sua loja, mantinha uma imagem de abandono. Magro e claro, sua barba por fazer associada a seus cabelos grisalhos embaraçados conseguiam agregar muitos anos a sua aparência. O vendedor me aparentou possuir uma grande dor guardada, algum acontecimento passado talvez, mas achei melhor não tocar nessa ferida. Ao dizer que iria comprar uma arma, Marcos e eu seguimos um diálogo que tomou mais ou menos a seguinte forma:

-E pra que o senhor ta querendo essa arma? Nunca te vi na cidade, e sinceramente não to a fim de confusão. - disse Marcos tomando a defensiva.

-Muito menos eu amigo, muito menos eu. Acabei de chegar à cidade, vim da capital. Me chamo Henrique Castro.- disse enquanto estendi a mão para cumprimentar o vendedor, que respondeu o gesto impulsivamente.- Eu gostaria de comprar um espingarda para manter em meu rancho, você sabe, com aquele matagal sempre devemos ter cuidado.

Por um momento pude ver o nervosismo correr os olhos do homem que ainda apertava minhas mãos.

-Castro? Está no rancho dos Castros, próximo a barragem? Garoto, não é de arma que você está precisando. Precisa é de sorte! Ou de juízo para sair já daquele inferno!-disse Marcos com uma severidade que emergiu de inesperado.- Muita coisa estranha acontece por aqueles lados, temo que uma arma de pouco servirá quando estiver lá.

-O que quer dizer?-perguntei-lhe cauteloso.-Os dias que passei lá foram muito agradáveis. Apenas me falta comprar essa arma, pois recentemente encontrei uma marca estranha de garras próxima a minha casa.

-Você as viu? É louco jovem, o que faz ainda por aqui?- disse Marcos apreensivo erguendo a voz.

-Não acho que seja motivo para tanto. Também me assustei quando as vi, mas creio que uma arma será proteção suficiente.-respondi modelando minha voz para tentar acalmar o vendedor.

-Você não entende garoto, realmente não entende.- disse enquanto balançava negativamente a cabeça desesperançado me olhando nos olhos.- Coisas inimagináveis estão lá. Coisas muito antigas e perversas!

-O que?-perguntei-lhe ansioso.

-Por toda minha vida morei aqui, antes mesmo dessa linha de trem chegar nesse buraco e essa cidade ser ainda mais selvagem do que é agora. Nessa época, quando era criança, sempre ouvia estórias. A cidade toda às ouvia, mas agora temo que a maioria tenha esquecido.

-Você poderia me contar? –pedi enquanto me debruçava no balcão.

-Acho que você, mais que todos, deveria saber no que está se metendo. A muitos anos, antes de pensarem em represar aquela área e a cidade ser muito menor do que já é, uma tribo indígena vivia na região. Eram os Kaiangang. Nunca foram muito dóceis, mas não demonstravam hostilidade desde que as fronteiras de suas terras fossem respeitadas. Eram de fato um povo muito orgulhoso, e sempre evitava o contato conosco, e sempre achamos melhor assim. Buscávamos sempre respeitar os limites da cidade para evitar confusão, mesmo porque a tribo possuía grandes guerreiros. Eles seguiam espreitando por entre as árvores na escuridão da noite e ainda assim conseguiam ver tudo. Os poucos que tiveram contato com eles falavam que os indígenas possuíam um olfato impecável e uma agilidade descomunal. As pessoas da cidade começaram o boato de que isto era resultado de um pacto com o Demônio. Se você quer saber minha opinião, não creio que seja com o Demônio, mas sim com algum demônio. O que eles fazem deve se repetir desde muito antes do cristianismo pisar por estas terras! Pelo que se sabe, diziam que havia uma cerimônia macabra realizada nas entranhas da mata que conferiam esse lado animal aos índios. Todo ano, todos os casais com ao menos três filhos eram levados amarrados nus com pinturas de guerras feitas com uma mistura de sangue e pétalas de orquídeas sobre sua pele por uma trilha pela mata até encontrarem uma caverna nas proximidades do rio. Lá eles encontravam seu o deus fera, que devido a sua devoção os dava força e longevidade. Pode parecer lenda, mas me lembro de um desses índios que, por variadas circunstâncias, apareceu na antiga loja de meu pai por três vezes em um intervalo de dez anos, e pela brecha da janela eu o observava. Ao vê-lo pela última vez tive a impressão de que ele havia dobrado os anos em meses! Eram leves as marcas do envelhecimento em seu corpo. Raramente eles vinham até a cidade, mas sempre que algum punha seus pés aqui minha mãe me trancava dentro de casa. Existem crianças que tem medo de escuro, ou de chuva. Eu tinha medo deles. Aos poucos, com a chegada da linha de trem e o represamento do rio, os kaiagang foram desaparecendo. As plantações de café e algodão foram invadindo suas áreas e imagino que tenha forçado sua fuga para o Pontal do Paranapanema ou para o Mato Grosso do Sul. Mas grave o que estou falando garoto, preste atenção como se sua vida dependesse disso, o que creio não ser mentira, mas há algo naquele lugar. E há algo mau. Use o dinheiro que iria gastar aqui e compre sua passagem de volta para a capital.

Perante a estória fiquei sem palavras. Nunca fui do tipo supersticioso, mas toda essa informação despejada de uma vez é capaz de atordoar qualquer um. Recobrei meu ar e prossegui:

-Senhor, sinto muito, mas não acredito em estórias que as mães do interior contam para assustar suas crianças. Além do mais, não tenho para onde voltar no momento. Agora por favor, uma arma? –disse ao vendedor demonstrando impaciência. Sinceramente, odeio tempo perdido.

-Deus tende misericórdia. Aqui está senhor. Que ela consiga fazer por você aquilo que espera dela.-me disse enquanto pegava a espingarda debaixo do balcão.

Sai da loja com uma velha Mauser 98, que foi a melhor que pude encontrar na loja, e um punhado de munição. Aproveitando o horário agradeci aos céus que já era próximo do meio dia e segui para almoçar em uma cantina na entrada da cidade. Em minha realidade atual, esse passeio foi praticamente uma explosão gastronômica. Depois do almoço, eu e Segredo seguimos de volta para o rancho, com o caminho igualmente calmo como o de minha ida.

Planejo amanhã fazer uma nova expedição pela redondeza, agora que tenho a mauser em mãos. Só espero que nenhum conto de fadas indígena aborreça meu dia, pois de aborrecimento já me basta o jantar que estou indo enfrentar.