Conto Grave de Catástrofe, Sangue e Vinho

Somente um imbecil não percebe que a humanidade caminha, em passos firmes e decididos, rumo à autodestruição. Meu nome é Rafael Guerra Richter e, há muito, deixei de acreditar nesta civilização. Talvez na opinião de muitos, seja isso condenável, politicamente incorreto, mas ... e daí? Dêem-me motivos para crer no homem atual... Creio que esta civilização deve ser aniquilada para que surja uma nova, e, quem sabe, então voltarei a ter esperança. Como diria Alphonsus de Guimaraens, “Já bem me basta o horror de tudo quanto hei visto”. Além do mais, julgo como absolutamente natural a morte de uma civilização para o nascimento de outra, como lei universal perfeitamente lógica e, por que não? justa.

Creio ser desnecessário dar exemplos do iminente suicídio da humanidade. Se alguém quisesse escrever o mais trágico poema de todos os tempos, bastaria que reunisse em um texto as manchetes dos jornais de nossos dias. Olhemos com olhos atentos ao nosso redor. Digo “atentos”, no sentido de ir além das aparências, e das engambelações da mídia, das autoridades, governos, militares, multinacionais, do “poder” em geral, cujo maior objetivo é enganar as populações para perpetuar seu infame domínio. O que a televisão e os jornais, por exemplo, divulgam à população espiritualmente adormecida não é 1% do horror que impera em cada rincão deste mundo. Observemos que o século XX foi o pior em termos de tragédias, guerras e catástrofes, e o XXI principiou avassalador. Notemos que a natureza, em todos os cantos do planeta, passa por terrível e impiedosa agonia, com a extinção brutal de florestas e animais, em um nível nefasto de exploração e degradação jamais vistos, irrefutavelmente incontrolável. Ninguém em sã consciência questionaria o fato de que a Terra, logo, não suportará mais o homem e seu consumismo desenfreado. E o que faz o ser humano? Afirmo que metade da humanidade é infeliz, e a outra metade finge não ser, para si mesmo e/ou para os outros. E ainda nos julgamos evoluídos, e não damos a mínima para o passo no abismo que estamos prestes a dar, acreditando que não sofreremos conseqüência alguma... A lei de ação-reação vale para todo o cosmos e seus aspectos, físicos ou espirituais.

Não, não creio na humanidade, porque para onde volto meus olhos só vejo a hipocrisia, a maldade, a vulgaridade, a inconsciência. No entanto, acredito que alguns raros humanos podem erguer-se do lodo da vida e resplandecer na grandiosidade universal, tal como os grandes gênios que nos legaram suas obras magníficas, hoje desgraçadamente esquecidas pela imensa maioria desta civilização de bestas e vermes chafurdados na lama. A Terra sangra e o homem ri. Ri, enquanto prepara o gatilho da arma que estourará seus miolos. Pois que estoure logo.

Falando em arma, agora narrarei minha história, a de um louco completo, sem nenhum cabimento... A mulher por quem nutria devoradora paixão havia falecido em um acidente automobilístico. Eu fui ao seu velório. E fui armado. Quando o rito fúnebre aproximava-se do final, saquei o revólver e ameacei a todos os presentes. Claro que não mataria ninguém, foi para intimidá-los e obrigá-los a realizar meu desejo, que consistia no seguinte: os parentes da morta deveriam tirá-la do caixão e segurá-la, enquanto eu, através do auxílio de um juiz ali presente (meu amigo e que sabia de tudo) realizaria meu casamento com a defunta. Isso enquanto eu apontava a arma para sua mãe. Tudo ocorreu conforme planejado, e, indiferente a rogos e gritos de desespero, carreguei o corpo de Francine para meu carro e parti alucinado. Afinal, o que seus familiares poderiam querer com seu cadáver? Para mim, seria bem mais útil, conforme os inteligentes leitores poderão constatar nas linhas subseqüentes...

Dirigi-me para minha propriedade rural, deixando o cadáver sobre a cama. Então, contemplei extasiado seu corpo inerte, depositei um beijo em seus lábios ainda doces, oh! seus lábios! acariciei suas mãos delicadas e frias, e ah! o seus cabelos, tão longos... e ,sutilmente, abri seus olhos, oh... os seus olhos quase dourados, que fitei febrilmente ainda mais uma vez... Esclareço que, antes de sua morte, é óbvio, eu e Francine havíamos iniciado um relacionamento tão intenso quanto fora rápido.

Deixei-a e parti para a adega de meus antepassados alemães, colecionadores de vinhos raros e praticantes das ciências ocultas. Entre o grande número de vinhos antigos que ainda restavam na empoeirada e tétrica adega, era do meu conhecimento que existiam três garrafas de um vinho enigmático, chamado Lux Aeterna, que fora preparado por sombrios alquimistas medievais, a partir de fórmulas dadas pelo próprio Paracelso, e que mantiveram suas propriedades por séculos. Tais propriedades, supostamente sobrenaturais, eram um mistério quase indecifrável, mas, através de pesquisas inenarráveis, obtive o conhecimento, ainda que incompleto, das mesmas.

Encontrei as garrafas e retornei para meu quarto. Deixei-as sobre a escrivaninha e, após um momento de hesitação, despi o corpo de Francine completamente. Não por motivos luxuriosos, mas para contemplar poeticamente sua mórbida beleza, enquanto apreciava o vinho. Em pouco menos de uma hora, esvaziei as três garrafas, mas não fiquei embriagado, pois aquele vinho, como o leitor sagaz já deve ter percebido, era absolutamente diverso de um vinho ordinário. Bem, talvez tenha ficado levemente inebriado... Em seguida, realizei um corte em meu antebraço e depositei meu sangue no cálice em que bebera. Devo dizer que esse sangue era especial, pois estava carregado dos átomos do vinho fantástico.

Já era noite, lá fora os seres noturnos executavam sua lúgubre e sonhadora sinfonia, febrenta e apaixonada, acompanhada pelos acordes sobre-humanos do vento invernal. Então, fiz outro corte, agora no pulso de Francine, e pude extrair uma considerável quantia de seu sangue, que mesclei com o meu no cálice. Porém, para que tudo ocorresse devidamente, deveria pôr junto com o sangue uma fração de minha saliva unida à de Francine. Então, abri sua boca, suguei o quanto pude a saliva que ainda restava e, com um cuspe, misturei com o vinho. Aguardei alguns minutos e logo coloquei uma amostra da mistura no microscópio. Observei, por conseguinte, que os leucócitos de meu sangue estavam absorvendo os do outro, bem como as hemácias e plaquetas. O sangue amalgamava-se com a saliva, e não nos esqueçamos que meu líquido sangüíneo estava tomado pelas propriedades do vinho medieval... Em seguida, bebi a mistura que havia na taça.

Ouvindo os cânticos, sussurros e murmúrios da noite espectral, que pareciam advir do infinito, adormeci. Porém, mantive-me consciente de tudo. Logo após meu adormecimento, principiei a escutar um retumbante tropel de cavalos e, simultaneamente, um intenso cheiro de sangue. Isso não era em meu aposento, mas num local indefinível, que se transfigurava incessantemente. Nele, em questão de segundos, assomou ante mim uma enorme cruz sangrenta, em um cenário de tempestade em chuva torrencial. Logo, pude divisar o Cristo crucificado coberto de chagas que gotejavam sangue sobre as poças de água lamacenta. Em seguida, uma imensa escada vermelha descortinou-se ante meus olhos, envolta em névoa rosácea.

Dela, descia uma infinidade de animais, que reconheci como correndo grave risco de extinção. Desciam derramando um sangue quente e vaporoso. Era um bizarro cortejo de guarás, onças, pumas, condores, tigres, águias, tamanduás, esquilos etc, que vertiam copioso sangue que ascendia em rubras nuvens. Então compreendi o que disse Goethe no “Fausto”: “O sangue é um líquido muito peculiar...”, e o que afirmou Bram Stocker, através de “Drácula”: “O sangue é a vida”.

Finalmente, divisei descendo a escada uma formidável mulher vestindo vívido vermelho... Era Francine, que se acercou de mim e depositou-me um férvido beijo emocionado, enquanto sentia que suas mãos incendiadas acariciavam meu coração, literalmente. Fitei seus olhos flamantes de uma chama azulada e neles pressenti o infinito, amor inconceituável, consolo sobre-humano.

Acordei-me, mas não sei explicar o que então descobri ter ocorrido durante minha ausência psíquica. Sobre minha cama, em lugar do corpo de Francine, havia somente um esqueleto. Minha residência estava em ruínas, e, pela janela, avistei um cenário apocalíptico de destruição absoluta. Talvez, o que explique tal situação seja a Teoria da Relatividade de Einstein e sua comprovação teórica da possibilidade de viagens no tempo... Sim, porque ao ligar o rádio escutei: “...e prosseguem os desastres climáticos e ambientais que vêm arrasando todo o planeta. Para o RS, está previsto o 5º furacão deste verão catastrófico...”.

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 29/07/2006
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