O Cadáver sem Rótulo

O mendigo atravessou a rua e bateu à porta d'O Coveiro, um homem de vida modesta, mas que ajudava sempre quem podia. Era conhecido como O Coveiro por ser esta sua profissão e por morar atrás do cemitério que cuidava. O mendigo persistiu, batendo, desesperado, mais uma vez.

Alguns instantes se passaram e a porta se abriu. Por causa da noite escura e da forte luz que vinha de dentro, o mendigo discerniu somente a silhueta do homem, que carregava um lampião e estava enrolado em um cobertor.

— Posso ajudá-lo? — perguntou, erguendo o lampião à altura da cara do maltrapilho, que recuou à aproximação da luz.

— Fome... Estou com fome... — O equilíbrio do mendigo vacilou. — Alguma coisa de... comer...

— Entre, entre. — O mendigo, cego pelas histórias que escutara, não hesitou e seguiu o homem.

Em poucos instantes, O Coveiro esquentou uma sopa no seu fogão à lenha e serviu-a em um prato rústico de barro. O mendigo agradeceu e começou a deglutir a sopa e o pão, lamentando as migalhas que caíam.

O Coveiro apenas assistia, divertindo-se com a fome desesperada do outro. Pegou a panela com toda a sopa e deixou-a com a concha na pequena mesa da sala para que o mendigo comesse à vontade.

Agora que começava a se satisfazer, o mendigo conseguia captar mais detalhes do lugar e de seu ocupante: O Coveiro tinha a barba mal cuidada que, enorme como uma juba castanho-escura, fundia-se ao cabelo e ninguém conseguia dizer onde um começava e a outra terminava; a casa era pequena, com a sala em que estavam, uma cozinha e talvez um banheiro e um quarto onde ele não conseguisse ver.

Conforme ia devorando a sopa como um cão faminto, o mendigo ia adormecendo. Quando desabou de vez, o prato com a sopa escorregou e espatifou-se no chão. O Coveiro ignorou a sujeira que poderia se ocupar mais tarde e pôs-se a trabalhar: agarrou o pulso do mendigo e começou a contar seus batimentos mentalmente.

Depois, arrancou um tapete vermelho e puído do chão, abriu uma portinhola no assoalho que levava ao porão e arrastou o mendigo para dentro. Lá, o colocou sobre uma enorme mesa de pedra e o prendeu à correntes agarradas à mesa.

Lentamente, andou até um imenso armário com inúmeras gavetas, abriu uma mais ao meio e retirou uma pasta suspensa onde se lia: “Cadáver sem rótulo n° 152”. Abriu a pasta com algumas folhas de papel A4 dentro e começou suas anotações superficiais: “Homem, mendigo, alto, magro...” Voltou sua atenção a um pequeno rádio do seu lado direito e o ligou. Uma música clássica lenta, tocada pela sua orquestra favorita, invadiu o ambiente, passou pela pequena entrada e pelo tapete corroído e alcançou os ouvidos da rua.

Acompanhando o ritmo da música mórbida, O Coveiro injetou, através de uma injeção enorme, um líqüido transparente e mortal. Calmamente, pegou uma fita métrica e começou as medições do corpo: altura, comprimento dos membros, do tronco, largura da cara, do nariz etc.

Depois de medir e anotar cada pequeno detalhe da ínfima existência daquele mendigo, O Coveiro estudou um relógio de parede próximo: faltavam alguns minutos para o veneno findar seu efeito. Descansou, então, numa cadeira ao seu lado, oscilando para cá e para lá junto da música, e, quando o ponteiro maior do relógio completou uma nova volta, o mendigo já havia parado de respirar.

Levou-o, então, arrastando seu corpo pelas suas mãos, à uma cova ali perto. Depositou o lampião no chão, terminou de cavar uma cova parcialmente aberta e jogou o corpo do mendigo no buraco. Deliciando-se com a música, terminou o trabalho cubrindo-o com a terra retirada para abrir o buraco e colocando um cruz de madeira, onde se lia em letras entalhadas: “Cadáver n° 152”.

Sorrindo e cantarolando, O Coveiro voltou a seu pequeno casebre. Quando chegou lá, pegou a pasta com todas as rotulações daquele mendigo e deixou-a numa gaveta que ficava sobre a que deixava as pastas vazias e havia aberto antes e pendurou a que segurava.

Voltou para sua a sala, limpou a bagunça e continuou ouvindo a música lenta e fúnebre. Mais um enterro decente fora dado por ele. Mais um infeliz morrera feliz. E, mesmo que fosse feliz, qual era a importância? Ele era só um cadáver sem rótulo, agora ajudado e devidamente rotulado para ser, algum dia, lembrado.

Tiaggio
Enviado por Tiaggio em 25/01/2010
Reeditado em 20/07/2010
Código do texto: T2050777
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