O som da noite - 4ª parte

José Teodoro, 15 de maio de 1949

Creio que Hypnos se apiedou de minha alma após as tormentas que enviou para devastar meus sonhos ontem. Desta vez nenhuma marca surgiu no meio da noite para atormentar meu sono, e confesso que apenas voltei a abrir meus olhos quando Heleno veio bater em minha porta para me informar que Marcos, o dono da moribunda loja de armas, estava me aguardando no andar de baixo. Intrigado, tomei meus comprimidos, troquei de roupas e desci para ver o homem. Lá estava ele, próximo à porta da entrada, com o mesmo cabelo despenteado e roupas abarrotadas do dia anterior. Quando me viu pude ver um leve sorriso de canto abrindo em seu rosto enquanto dizia satisfeito pela minha segurança, mas logo o cortei assim que começou a trazer a tona suas maldições indígenas. Perguntei então o que o havia trazido até minha casa, já que creio eu deva ter sido um grande desafio para o pobre homem pisar nessas terras. Colocando a mão no bolso da calça, Marcos retirou um pequeno relógio de bolso dourado e estendeu em minha direção. Era o relógio que papai me deu nos meus 18 anos. Não sei como acabei deixando-o cair na loja de armas.

Agradecido, convidei Marcos para me acompanhar o desjejum, o que foi mais um reflexo moral do que um ato de racionalidade. Ninguém merecia como recompensa uma refeição de Cícera, esta estava reservada apenas pros piores pecadores! Por sorte ou intervenção divina, Heleno havia colhido umas pequenas frutas da mata e as havia posto sobre uma vasilha na cozinha. Nunca havia encontrado essa variedade de fruta antes na capital. Possui o tamanho próximo de uma laranja, porém é de um rubro intenso. Sua superfície é levemente aveludada, tal qual a do pêssego. Mas dentre suas características, é o gosto o mais exótico. Sua polpa macia libera um delicioso suco doce, mas há algum componente estranho de fundo que não consegui distinguir. Uma essência forte, marcante, viciante. Procurei mais destas frutas hoje pela floresta, mas não pude encontrar nenhuma árvore que as tivesse.

Depois da refeição, decidi acompanhar Marcos até o fim da estrada que atravessa a floresta. Já havia sido um grande sacrifício para o homem vir até aqui, e não me seria sacrifício algum já que eu iria mesmo explorar a área. Selei Segredo, peguei a mauser 98 e seguimos os dois a cavalo pelo caminho. Nos separamos assim que começaram a surgir os campos de algodão, indo ele de volta para a cidade e eu retornando para casa pela mata, me limitando aonde pudesse seguir montado. Segui por uma pequena trilha até chegar às margens do Rio do Peixe e pude pela primeira vez ver ao longe a barragem erguida para represar as águas. Após mais alguma caminhada resolvi retornar ao rancho para poder deixar Segredo no estábulo e seguir a pé mais a fundo na mata.

Após soltar o cavalo, decidi percorrer o percurso nos fundos da casa até a marca que havia encontrado na figueira. Passando próximo à casa de máquinas vi Mariene e Rosângela brincando. Em seus cabelos haviam pequenas flores de pétalas brancas que iam se avermelhando rumo ao centro. As garotas espremiam as plantas em um pote com um pouco de água, formando um líquido com um tom levemente avermelhado, com o qual elas pintavam as paredes do barracão com os dedos. Me surpreendo como a criatividade busca alternativas para sanar o tédio, até mesmo em crianças tão novas.

Passando pelo manto verde da mata, segui rumo à figueira marcada apreensivo. Mesmo não crendo nas loucuras de Marcos, meus anos de veterinário me ensinaram que não é muito inteligente subestimar um animal. Fui penetrando na mata enquanto os galhos me arranhavam, até que cheguei à árvore que buscava. Lá estava ela. A hedionda marca se exibia triunfante a todos da floresta. No mesmo instante o frio me subiu a coluna e adotei uma postura de alerta. Segurei firme a espingarda próximo a mim enquanto corria com os olhos todas as quinas verdes do lugar. Examinei aproximadamente meia hora os arredores do local, mas não consegui encontrar mais nenhum vestígio de qualquer animal por ali. Voltei novamente minha atenção à marca. Observando atentamente, pude reparar que a madeira próxima a área arranhada estava apodrecendo. Coincidência ou consequência? Realmente não sei afirmar. Coloquei minha mão sobre a marca e a percorri com meus dedos. Os sulcos feitos deviam ter cerca de um centímetro e meio de profundidade. Após mais uns instantes de contemplação resolvi seguir mais adentro da mata.

Andei até o sol chegar ao meio do seu percurso, quando regressei para casa para o almoço. Ao passar novamente ao lado da casa de máquinas pude ver a obra de arte das garotas finalizada. Na capital poderia dizer que elas levam jeito para o modernismo. O máximo que pude diferenciar foram algumas pessoas, flores, e uma grande árvore. O restante eram coisas que vagamente poderiam ser um sol, uma estrada e um lago, ou então qualquer outra coisa do tipo.

No restante do dia aproveitei para ir até a cidade enviar um telegrama para papai para dizer como estão as coisas por aqui. Não acredito que faça muita diferença para ele, mas quem sabe fingindo alguma mudança ele resolve encurtar minha estadia?

Pretendo seguir com minhas expedições pela mata amanhã, e se não encontrar nenhuma fera procuro ao menos esbarrar com algumas das frutas vermelhas. Conversei com Heleno hoje na hora do jantar e ele me disse que elas são chamadas de pirangas, mas são difíceis de serem encontradas. Uma fera misteriosa e uma fruta exótica... Fazer o que, mantenho o mau hábito de me inclinar ao raro.