Quando a Morte Bate...

Dizem que quando você está andando no escuro e ouve uma voz sussurante exprimir seu nome, sem haver alma viva por perto, é a Morte quem lhe chama. E você não deve responder, ou ela vem ao seu encontro. Mas, tome cuidado, ela cria armadilhas, mesmo com pessoas por perto, pois não quer lhe perder; cada vida tirada, é um trabalho futuro a menos.

Chamam-me por Arthur. Os primeiros que me chamaram assim, foram meus pais, que morreram cedo, em um acidente enquanto transitavam da única cidade nas redondezas para a fazenda de minha avó. Assim, fui criado por ela.

Havíamos ido à cidade, porque precisávamos de alimentos básicos que não plantávamos. Cuidamos, eu e minha avó, Adda, sozinhos de tudo e eu procurava uma moça para vir morar conosco e nos ajudar em tudo. Foi aí que encontrei Lucy, uma doce garota da cidadezinha, que aceitou prontamente viver na fazenda para fugir do pai troglodita e se casar comigo.

Agora, nós três, voltávamos para a casa da fazenda, conversando, rindo das histórias de terror de minha velha avó que eu ouvia desde criança. Bem, essa primeira que contei, sobre o Anjo da Morte, era uma delas. Eu a achava sempre engraçada. Não era possível existir um ser que saísse por aí matando as pessoas simplesmente porque estas responderam ao seu chamado. Era doentio acreditar, mas minha avó parecia saber o que estava falando... Se eu talvez soubesse que pelo menos parte do que ela achava era a mais pura verdade, teria destruído minhas descrenças e marcado meu encontro antes, mas nada é como queremos...

Quando fazia uma curva, foi que ouvi:

“Arthuuur...”

— Não tem graça! Podem parar! — respondi às duas, que pareciam não terem entendido nada. Mas o sussuro persistiu:

“Arthuuur...”

Como estava cego pelas minhas antigas crenças, resolvi entrar no que eu acreditava ser brincadeira delas. Então, respondi:

— Tá legal: o que é? Por que me chamam tanto? Estou aqui, digam o que querem! — Minha noiva olhou-me sem entender nada, achando que devia estar apresentando algum sintoma de uma doença mental qualquer. Mas minha avó é quem sabia da verdade, da armadilha montada pela Morte para mim: no mesmo instante, ela olhou-me do banco de trás, pelo retrovisor, e eu pude identificar triteza em seu olhar...

Algumas horas depois do episódio, acordei no quarto de casa. Foi estranho, mas devíamos ter chegado e eu caíra, com toda a certeza, no sono. O mais inacreditável é que eu não lembrava de como chegamos em casa.

Levantei-me, beijei o rosto de Lucy, que dormia, confortável, ao meu lado e segui para a cozinha. No caminho, vislumbrei minha avó, sentada na cama, com véu na cabeça, concentrada em sua oração noturna. Quando percebeu que a olhava, perscrutou-me numa mistura de assombro e tristeza e, então, fechou a porta.

Na cozinha, enchi um copo com leite e devorei-o. Como sentia fome! Parecia que desde que chegara, não comera nada. Um lobo uivou na floresta próxima à fazenda e, minutos depois, esmurravam a porta. Abri-a depressa, parecia uma emergência. Do outro lado, o filho do dono da fazenda vizinha, Marcus, estava desesperado e sangrava, com arranhões em várias partes do corpo e uma espingarda na mão direita.

— Por favor, por favor... Ajude-nos! — ele pediu. — Lobos, muitos lobos invadiram a fazenda do meu pai! Socorro! Por favor, nos ajude!

— Claro! — Peguei minha escopeta e partimos rumo à floresta.

— Sabe, não é nossa culpa. — Ele me olhou seriamente, como se fosse culpado. — Eles ficam assim quando há algo errado por perto... Eles só querem cumprir seu dever: enganar não só suas vítimas por direito, mas também as inocentes. Veja você, quanta maldade! Já não bastasse tantos malditos que eles pegam, querem ainda os inocentes! Mas nós estamos aqui! Resolvemos o problema.

Não consegui captar se o “nós” dele me incluía, mas eu acreditava que não. Eu continuava calado, olhando-o sem entender uma palavra e procurando, ao redor, qualquer sinal de um lobo que tivesse já ali, à espreita. Os lobos uivavam em todo lugar, estavam em toda parte, pareciam estar nos cercando, como se houvesse, por ali, uma vítima da qual já haviam premeditado a captura muito antes...

Espantei-me pelo fato de Lucy e vovó não terem saído de casa para ver o que eram os lobos e, reparando somente agora, para meu desespero, não tinham vindo ver quem batera a tão altas horas da noite. Tentei voltar, mas Marcus segurou-me pelo braço e indicou a floresta, num gesto mudo de que não eram elas que os lobos queriam. Entendi e, sem muito ânimo pelo que possivelmente me esperava, segui-o.

— Bem, há alguém além de nós caçando os lobos? — Não pude evitar a pergunta; o medo me consumia.

— Sim, alguns — disse, somente.

— E onde os outros estão? — devolvi.

— Na floresta, e isso já basta! — Encerrou assim, qualquer outra dúvida minha que surgisse.

Continuamos, calados. Cada qual olhando em volta, a noite, o luar, com seus próprios pensamentos. Não que ele parecesse pensar, porque parecia simplesmente flutuar, ou algo assim, indescritível, mas parecia, pelo menos, concentrado em alguma coisa incompreensível para alguém simples como eu.

Quando começamos a adentrar a floresta, sem vermos um lobo sequer pelo caminho, os uivos tornaram-se terrivelmente mais fortes, mais próximos... Agora, arrepiavam a espinha, gelavam o estômago e provocavam leves acessos de tremedeiras.

— Isso é normal; não se preocupe — Marcus disse, com ar de quem sabe do que está falando, em relação a meu medo anormal de lobos. — Eles é que não são normais.

— Tudo bem — respondi, apenas.

Andando pelo caminho que ele me indicava, que eu não fazia a mínima ideia de onde devia levar, fomos interrompidos: um lobo ferroz, enorme e marrom, rosnando, com pelos arrepiados e olhos vermelhos, babando, pulou para interceptar nosso caminho. Queria-nos morto, queria me devorar... Ele parou, encarando-me profundamente nos olhos, e eu amoleci: lentamente fui me entregando, ele estava me hipnotizando, me dominando...

Então, ouvi o tiro da espingarda de Marcus e o lobo foi atingido na cabeça, caindo morto logo depois, mais à frente, quando tentava inutilmente fugir. Lá, a terra o absorveu, vagarosamente, como se o comesse: raízes saíram de lá, o enrolaram e puxaram para baixo, para o infinito, ao Inferno... Assustei-me por ter esses pensamentos numa hora como essa, mas foi inevitável: eu simplesmente pensei...

— O que foi aquilo? — perguntei, temeroso. — A terra o engoliu... Pode me explicar isso?

— Ele só voltou para o seu lugar... Onde sempre devia estar... — ele me respondeu, sem deixar mais nada transparecer.

Fomos em frente. Ele seguindo impassível, sempre parecendo olhar para algum lugar que eu não podia ver. Eu, seguindo com medo, sempre dando umas olhadas desconfiadas para trás ou para os lados. Então, com Marcus retirando uma folhagem do nosso caminho, demos em uma clareira, que apesar de ser uma, não possuía luz, porque o céu estava sem lua.

Havia, do meu lado direito, uma árvore seca, esturricada, morrendo, mas viva, com toda a certeza, cercada, protegida pelos mesmos lobos de olhos vermelhos que eu tivera a desagradável experiência de encontrar. No outro, existia uma árvore linda, bela, perfeita, como se tivesse acabado de nascer e crescia, crescia e crescia para cima até meus olhos não poderem ver mais, sem guarda, sem qualquer coisa por perto.

— O que é isso? Que lugar é esse? — perguntei. Ele olhou-me como quem contaria tudo e, então, disse, tranquilamente:

— São entradas. Eu devo trazer as pessoas aqui.

— Bem, então não existe invasão de lobos e não pegamos atalho algum?

— Sim. Esse é o meu trabalho.

— Quem é você, afinal?

— Eu sou um, eu sou todos... Eu estou aqui, mas também estou lá, em todos os lugares... Onde houver uma morte, eu estarei lá, porque eu sou a Morte...

— Mas e o Marcus?

— Ora, isso é só um... disfarce de oportunidade. Eu sou um anjo, um anjo que leva a morte às pessoas, às coisas que vivem em todos os lugares, e que leva os “mortos” aos lugares que pertencem corretamente, sem joguinhos satânicos; sou temida por todos, mas sou um anjo, o Anjo da Morte. Então, não tenho forma. Sou um espírito, uma alma vagante... Eu sou a luz; não é possível dar forma a isso... A luz simplesmente é, não tem forma, não tem cor, não tem traços... Ela usa das outras coisas para isso... Assim são os anjos... Seria ridículo trazê-lo até aqui somente usando a minha voz. Aliás, duvido que acreditaria que fosse verdade... Mas, de qualquer forma, eu sou a Morte, então, posso montar armadilhas... Não como sua avó e o povo dizem, mas para ajudar os “mortos” a seguirem. Somente essas são minhas armadilhas. Você ouve eu dizer seu nome instantes antes de morrer, porque tento trazê-lo até aqui antes que aconteça a amnésia da pós-morte. Mas, para variar, não deu certo. Algumas vezes dá, por isso sempre tento e vou tentar: tornou-se questão de honra trazê-los sem armar alguma trama... Isso, depois de um tempo, é claro, torna-se tedioso, apesar de ser o trabalho para o qual fui designada e criada...

— Então... então eu estou morto? Mas como é possível?! Minha avó me viu antes de eu vir para cá! Como é possível?!

— Você morreu já faz duas semanas e esteve vagando desmemoriado, em estado de choque todos esses dias pela fazenda. Sua avó lhe via sim. Alguns humanos têm tanta ligação com os entes que se foram, que os veem depois de mortos, se continuam aqui na Terra, vagando perdidos por causa da amnésia da pós-morte, embora tenham relances de suas vidas passadas e tentam descobrir quem são, por isso as aparições no mundo dos vivos, e, quando descobrem, esquecem que morreram e tentam, inutilmente, viver suas vidas de antes... Aí que eu entro: devo procurar essas pessoas e as encaminhar para seguirem seus caminhos depois da morte, antes que os demônios apareçam para “brincar”.

— Então, esses lobos são...

— Sim, demônios. Mas não se preocupe, eles temem qualquer anjo, porque a luz é mais forte que a treva onde quer que estejamos. E, além disso, eu sou a Morte, eles não podem me matar, mas eu posso... Eles temem a mim, mais que a qualquer outro anjo...

— E onde estamos?

— Na Passagem.

— Na o quê?

— Passagem. É onde as pessoas que morrem devem vir. Com minha ajuda, é claro. Se conseguir chamá-las logo que morrem, elas vêm antes... Se não, aí complica: a infeliz da amnésia da pós-morte vem me atrapalhar! Vê essas duas árvores? Bem, é claro que vê! Então, aquela podre e infeliz é a entrada para o Inferno! Ela “engole” as pessoas como viu a terra fazer com aquele lobo-demônio. É lá que as pessoas pagarão eternamente por seus erros, por seus pecados! Não, não é fogo como pensa! O fogo é só uma metáfora para as mais terríveis dores da alma! Lá no Inferno, você irá sentir toda a angústia, a dilaceração de perder todos que ama, a solidão eterna da Terra! Todo mal que uma alma pode sentir na Terra, sentirá triplicado e ao mesmo tempo no Inferno! E o pior é que saberá que é eternamente, para todo o sempre! Não haverá saída, não haverá refúgio! Deus se esquerá de você, assim como esqueceu-se Dele quando esteve aqui! Não que você vá para lá, é só uma exemplificação. Já que todos querem saber o que acontece, presumi que você gostaria de saber também!

— E para aonde eu iria? — perguntei, olhando esperançoso e, ao mesmo tempo, certo de que irria para lá, caso tivesse mesmo morrido.

— Isso mesmo! O Céu, o Paraíso é seu lugar! Olhou para o lado correto. — A Morte piscou para mim. — Lá, toda a paz do mundo o iluminará e Deus virá lhe receber e cantará contigo e lhe abençoará eternamente...

— Mas eu não morri... Não pode ser... Não me lembro disso... É impossível... — E saí correndo. Passei pelas folhagens que ele havia destruído antes para chegarmos até lá e continuei, de volta à fazenda. Olhei para trás e vi o Anjo da Morte abrir suas asas enormes e negras nas suas costas e levantar voo, vindo atrás de mim, por cima, alcançando meus passos fracos e desajeitados rapidamente.

Mas eu percebi que corria só mentalmente, refazia o caminho na minha cabeça, para tentar chegar à lembrança esquecida, porque, afinal de contas, eu sabia que estava morto. E a Morte me ajudava. Estava comigo, atrás de mim, me mostrando o caminho, me fazendo lembrar... E, enquanto lembrava, seguia para minha memória esquecida, ia rumo à Árvore da Vida, que se instalara ali especialmente para me receber, e a Morte, na pele de Marcus, vinha atrás, acompanhando-me, dando-me forças. Aí, percebi que era preciso sua existência. Fraco como era, não conseguiria sozinho, precisava da ajuda de alguém, de um anjo... Até nisso Deus era perfeito... Até na morte...

E, em minha corrida à lembrança, minhas memórias voltavam... Sim, tudo era resultado de minhas escolhas: eu escolhi fazer a curva no momento errado, não havia olhado o caminho corretamente, a morte fora só uma consequência... A Morte, que estava ao meu lado no carro, chamou-me, mas o acidente foi mais rápido: derrapamos na minha tentativa frustrada de brecar e evitar colidir com um caminhão que chegava à cidade da qual voltávamos... E, acelerando desesperado para sair do caminho do caminhão que não conseguiria parar, capotamos na inclinação de terra que havia do lado da estrada... E, assim, fui transpassado pelas ferragens, enquanto a Morte sempre ficava do meu lado, tentando me chamar, mas era inútil, eu já me esquecera de quem era e, nas duas semanas seguintes, vagara pela fazenda até a Morte encontrar-me novamente...

Então, conforme seguia rumo à árvore, ela se abria e eu pude ver luz, bondade, esperança, paz e tive certeza de que Lucy e Adda ficariam bem, saberiam se cuidar, que bastava elas fazeram as escolhas corretas para tudo dar certo... Eu dei mais um passo, despedi-me do Anjo da Morte, que agora era o que eu tinha mais admiração e até uma certa amizade, e, confiante, entrei na árvore, onde Deus me esperava...

Tiaggio
Enviado por Tiaggio em 01/02/2010
Reeditado em 14/07/2010
Código do texto: T2062367
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