O Ladrão de Pescoços

Encontrei Luciana, na noite de Natal, num botequim, beliscando aqui e ali. “Encontrei” era um termo um tanto sarcástico, na verdade. Havia provocado aquilo simplesmente para usá-la esta noite. E sabia que ela viria aqui, porque a estudei antes de escolhê-la.

Eu e ela trabalhamos juntos num escritório de advocacia pequeno que abriu faz pouco mais de dois anos no centro da cidade. Somos recém-formados, mas ela não cursou a mesma universidade que eu e por isso, infelizmente, não pude usá-la antes.

De tanto insistir, ela acabou aceitando sair comigo e já mantínhamos um relacionamento secreto. Além dela ter me conquistado com aquele jeito único de ser e com seu sorriso estonteante, eu a escolhi porque ela era órfã e ex-alcoólatra. Esses dois fatores seriam a principal chave para o sucesso da noite. É claro que a escolha do dia e as fantasias para o motel ajudariam, mas nada se comparava aos outros dois.

Com o passar dos meses, consegui fazê-la se apaixonar por mim. E, na tarde de hoje, inventei qualquer motivo para brigar com ela e dizer que nunca mais queria vê-la. Bastou isso para essa pobre alma órfã correr para seu único amigo fiel: o álcool. (Para ter certeza que ela tomaria essa atitude, já havia feito esse mesmo teste várias outras vezes e, na maioria de todas elas, foi para me divertir com o resultado; pensando bem, acho até que a livrarei da desgraça que é a vida dela).

Agora ela estava sentada numa mesa encardida do botequim da vila onde mora, tomando tudo o que contivesse álcool, sonhando com a família que jamais teria comigo, derretendo-se em lágrimas. E isso me divertia demais. Atravessei o caminho de três boêmios abraçados que entoavam grogues “Noite Feliz”, e entrei no recinto. Estava tão bêbada que não me reconheceu. Pedi uma bebida ao atendente, dissolvi algumas drogas na mesma e me dirigi a ela. Depositei o copo na mesa e disse:

— Pronta para ter uma noite feliz?

Ela olhou assustada na minha direção, mas se limitou a sorrir. Aparentemente havia me reconhecido.

— Para você — disse, indicando o copo.

— Bebida? Sabe que eu não posso beber — justificou ela.

— Essa noite merece exceções, não concorda? — provoquei.

— Tudo pela noite... — ela respondeu, continuando a brincadeira.

— Achei que fosse por mim. — Ergui uma sobrancelha.

— Talvez... Quem sabe? — Ela tomou tudo num só gole.

— Vamos? — Indiquei o caminho até um carro que havia “emprestado” da rua de cima.

Mal entrou no carro e já apagou. Ela poderia dormir o quanto quisesse. Eu tinha todo o tempo do mundo. Meu serviço não tinha importância. Eu era rico e só trabalhava para agradar meu pai. Aliás, só fiz a faculdade para isso também.

Despi-a e contemplei (como já havia contemplado muitas outras vezes) seu corpo nu, as formas que se desenhavam deliciosamente sinuosas até chegarem ao pescoço. Esse não era o momento ainda, mas, mesmo assim, não consegui dominar meu psicológico e precisei proteger meu pescoço com as mãos e, para me certificar que nada aconteceria a ele, alcei a gola do sobretudo que usava.

Respirando fundo e procurando não pensar e não olhar o pescoço dela, vesti-a como se fosse Maria Madalena dos filmes que já havia assistido. Tirei meu sobretudo e minha fantasia de Jesus ganhou destaque. Peguei, numa sacola que havia trazido, uma barba postiça castanha enorme e grudei-a a minha face. Uma peruca que se estendia até os ombros fazia parte do figurino também. Ela não precisava ficar escondida — não era ela que seria o assassino —, mas, ainda assim, tampei seu nariz e sua boca com aquela espécie de véu que a fantasia dela exigia.

Liguei o carro e, em uma hora, mais ou menos, estávamos num motel de segunda que já havíamos visitado em outras ocasiões. A pessoa que cuidava da entrada soltou risinhos ao ver-nos vestidos daquela forma.

— A Maria ali está com vergonha. Por isso, está fingindo que dorme — disse, para disfarçar. — Acorda querida! Vamos, não decepcione a moça aqui! Acorde! — Exclamei, chacoalhando-a. Fingi tédio antes de completar para a atendente: — Fique com Jesus! — Com um sorriso maravilhoso e uma piscadela, adentrei pelo portão enorme, atravessando um arco depois, onde estava escrito Calada da Noite, o nome do motel.

O quarto era simplório e meio sujo, mas eu não me importava. O centro das atenções seria ela, o pescoço dela. Carreguei-a até a cama, esperando o momento em que ela acordaria, o momento em que a diversão iria começar. Demorou algumas horas, mas ela finalmente estava voltando a si. Levantou-se com muita dificuldade e andava meio trôpega. Um pouco era a bebida, o resto as drogas.

— Que... que roupas são essas? — Começou ela. — Onde... estamos?

— No paraíso, querida, no paraíso.

Ela se levantou e foi na direção da janela. O letreiro cheio de néon mostrava o nome do motel. Ela voltou-se para mim cheia de ódio.

— Como teve coragem?! — Ela vinha na minha direção. — Eu achei que você me levaria para conhecer seus pais! Esse foi o combinado, há quase um ano! Esqueceu-se?! Você acha que eu sou o quê?! Uma vadia a sua disposição?!

— Querida, você não achou realmente que eu estava falando sério, não é? Você, conhecer meus pais? — Soltei uma gargalhada maldosa. Isso a atingiu como uma faca, eu sabia. Quanto mais ela sofresse, mais eu me divertia. — Você era e é só diversão, só prazer. Nunca vai passar disso! Nunca!

Ela se recusou a continuar a conversa. Mesmo com o efeito do álcool, conseguiu passar por mim. Estava chegando à porta quando a interceptei, segurando seu braço.

— Solte-me! Vai ser melhor para você! — Quase ri dessa ameaça. A única ameaça ali era eu.

Ignorei seu pedido. Ela tentou se desvencilhar da minha mão, mas eu fui mais rápido e a agarrei para imobilizá-la. Ela acertou o joelho naquela minha parte inferior e começou a correr. Se a situação não fosse tensa, teria rido: antes de chegar na metade do quarto, ela tropeçou nas vestes e caiu com um estrondo. Quando se levantou, agarrei-a e joguei seu corpo indefeso na cama, pulando em cima dela para deixá-la totalmente imóvel.

Com um rápido movimento, ela conseguiu libertar sua mão direita e pegar o abajur, quebrando-o em minha cabeça. Para minha feliz sorte não abriu ferida alguma, mas a dor compensou isso: fiquei com minha cabeça latejando tão forte que tinha vertigens. Com muito ódio, puxei-a pela roupa e dei-lhe um soco no meio do rosto. Ela caiu na cama sem sentidos, esguichando sangue pela massa disforme que se transformara seu nariz.

Com certo esforço, consegui estancar o sangue. Arrastei-a até uma cadeira próxima e a sentei lá. Depois, passei fita adesiva em volta do corpo e das pernas dela e, para finalizar, coloquei um pedaço na boca. Não queria escândalos. Peguei uma arma no carro, voltei para o quarto e fiquei assistindo-a dormir. A última vez que descansaria. Quando acordou, ela tentava falar, mas o máximo que conseguia emitir eram grunhidos indistintos por causa da fita na boca.

— Você não vai querer gritar quando eu tirar essa fita da sua boca, vai? — Murmurei em seu ouvido, enquanto deslizava o frio metal da arma pelo seu pescoço. — Queremos evitar mais sangue, não é? — Ela apenas assentiu, arfante de medo.

Arranquei o mais rápido que pude a fita de sua boca. Ela gritou de dor. Dei-lhe uma esbofeteada por isso. Olhou para mim. Se ódio matasse, morreria naquele momento.

— Vai me matar? — ela desafiou.

— Talvez... Quem sabe? — Soltei um risinho irônico.

— Não vai se safar dessa — continuava a me desafiar. — Ninguém sai impune desse tipo de crime!

— Quer apostar? — Ri com mais gosto.

— As apostas foram feitas quando eu aceitei sair com você — disse, sarcástica.

— Vou te soltar, mas novamente não queremos mais sangue, não é? — Ela riu gostoso.

— O que acha que eu vou fazer? — Ela me fuzilava com o olhar. Eu sorri, maldoso. — Estarei tão impossibilitada de agir, que será como se estivesse presa nessa cadeira.

Peguei um estilete e cortei as fitas que a prendiam. Ela terminou de descolar as fitas com murmúrios de dor. Olhou para mim.

— O que vem agora? O que planeja para mim? O que quer que eu faça?!

— Já disse que você não vai gritar, porque não queremos mais sangue — respondi calmamente, completando com outro tapa. Isso provocou mais um sangramento, mas passageiro. — Quer saber o que vou fazer?! Quer saber?! Tira a roupa! Agora!

Lentamente ela tirou a fantasia, peça por peça. Seu corpo nu foi ganhando forma. Sempre era uma surpresa para mim. Sempre descobria que o pescoço estava muito mais belo que antes. O que me surpreendeu mais foi ela ter aceito o que lhe impus. Nunca havia visto alguém desistir tão fácil. Talvez estivesse planejando alguma coisa. Um modo de me matar, um jeito de escapar. Teria muito cuidado.

Aproximei-me dela, agarrei-a pelo pescoço e a puxei na minha direção, beijando sua boca, seu corpo e seu pescoço como nunca, com sede. A arma na barriga. Joguei-a na cama e, já sem fantasia, fiz o calor de nossos corpos se fundirem. A arma se perdeu em algum lugar.

Sabia exatamente como agradar uma mulher. Sabia os pontos exatos que davam mais prazer. Queria ser correspondido, porque se não fosse, não havia graça. Aos poucos, ela estava aceitando o calor e correspondia a ele se mostrando cheia de prazer, desejosa.

Quando o calor estava chegando em seu ápice e ela, que estava sob mim, contorcia-se de prazer, senti, antes de realizar o estrangulamento para conseguir um orgasmo, aquela estranha sensação de medo de meu pescoço ser corrompido e, antes de protegê-lo maquinalmente, agarrei o pescoço dela, como se fosse uma fuga, uma defesa e, ao mesmo tempo, uma espécie de previsão da sensação que ela sentiria ao ter seu pescoço machucado.

Num primeiro momento, ela gostou da sensação, mas depois que a brincadeira se tornou séria e ela não conseguia mais respirar, começou a se contorcer freneticamente, a me bater e me unhar. Por sorte, as feridas que ela causou com as unhas não me fizeram sangrar. Gradativamente, vi o brilho da vida de seus olhos se esvaírem e os últimos espasmos da carne cessaram. Finalmente cheguei ao ápice do orgasmo. Uma lágrima escorria por sua face. O prazer me arrebatou e tive umas duas ou três ereções depois disso.

Pouco depois de ter juntado minhas coisas e eliminado qualquer vestígio que achasse que pudesse ter deixado, respirei fundo para ir embora. Contemplei, pela última vez, o belo rosto dela, agora já frio e meio azulado. Alisei sua face e seu pescoço, como uma despedida, e, mesmo de luva, pude sentir o quão gelada e sem vida estava. Com a gola do meu sobretudo alçada, pulei a janela e, mais tarde, a grade que cercava o motel. “Emprestei” mais um carro depois, que largaria algumas ruas de casa.

Enquanto dirigia e ainda sentia algum prazer, me lembrava do momento em que ela havia me conquistado, no momento que ela tinha se condenado, no momento em que passei a desejá-la. Eu a havia seguido até sua casa e, quando estava prestes a entrar, parou de fingir que não tinha reparado que eu a persegui explicitamente. Ela virou-se na minha direção e, um pouco surpresa com o ramo de rosas vermelhas que eu carregava, perguntou com aquele sorriso esplêndido:

— O que você quer de mim?

— O seu pescoço — respondi, insinuante.

Tiaggio
Enviado por Tiaggio em 04/02/2010
Reeditado em 20/07/2010
Código do texto: T2068170
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