O som da noite- 5ª parte

José Teodoro, 12 de junho de 1949

A relatividade na percepção do tempo é realmente algo intrigante. O dia para o miserável arrasta-se mais longe do que caminha para aquele que vive em fartura. Do mesmo modo ocorre com aqueles ricos e pobres de perspectiva. Posso dizer que infelizmente já não mais sou um detentor de tal bem em abundância, já que não houve espaço para expectativas em minhas malas. Logo, nem me parece fazer apenas um mês que cheguei à José Teodoro. Este prazo ainda não foi o suficiente para me desintoxicar da caótica vida da capital, e a abstinência me tem sido tão sofrida! Minha nova rotina vem se mostrado maçante, se limitando a algumas poucas idas à cidade em busca de suprimentos, munições e para enviar telegramas à papai, e a incursões na mata no período da tarde. Acredito que ainda busco sentir a emoção que me apossou no instante em que me deparei com as marcas de garra na velha figueira novamente, mas essa é até o momento uma jornada sem frutos. Em meus passeios pelo gigante verde apenas consegui abater alguns animais de pequeno porte, como antas e tatus, e algumas aves pelo percurso. Ao menos com essas cassadas consigo alimentar a esperança de salvar os terríveis jantar feitos por Cícera, o que invariavelmente não ocorre. Nem ao menos as rubras pirangas consegui encontrar nesse mês percorrendo por entre as entranhas da floresta. Ironicamente, as filhas de Heleno com freqüência usam as flores brancas e vermelhas da fruta em seus cabelos. Certa vez indaguei a elas onde as colhiam, mas elas se recusaram a me dizer. Devo concluir que a infâmia infantil é uma verdade universal, não se restringindo a vida urbana. Já vejo com outros olhos as encantadoras possibilidades da esterilização.

Em relação a Heleno, posso dizer que nossa relação está melhor. O caseiro já não me trata com tanta estranheza, e chego a notar até certa hospitalidade em alguns momentos, ou ao menos a ausência da rispidez inicial, o que para aquele homem já considero exigir um grande esforço. Ele vem se demonstrando grande cuidado nos momentos em que estou indisposto, o que ultimamente vem ocorrido com freqüência. Venho sentido recorrentes vertigens acompanhadas por um mal estar generalizado. Sinto principalmente uma grande queimação estomacal seguida por pontadas por toda a região abdominal. Vez ou outra associa-se um quadro de febre e sudorese. No entanto, pude notar, curiosamente, que a situação costuma melhorar logo após a administração de meus remédios psicotrópicos. Não sei como, ou qual componente de sua composição, poderia amenizar sintomas tão adversos aos que são indicados para combater. Caso o desconforto se mantenha por mais dias terei que recorrer ao pronto socorro da cidade, mas esta será apenas a última opção. O pouco que conheci do hospital da cidade já me foi o bastante para desejar nunca depender de seus serviços.

Portanto, enquanto não estou completamente disposto, tentarei manter minha mente ocupada com a busca da fera misteriosa, ou ao menos arrancando das duas diabas onde posso arrumar algumas pirangas.