Morto e Vivo

O cemitério estava vazio. Vazio de pessoas e de sons, que não fossem o das gotas de chuva titubeando sobre o mármore dos túmulos e lápides cobertos de limo. O temporal tinha começado, abruptamente, as três da tarde. Era madrugada. A chuva só aumentara de intensidade. Vivos se recolhiam em suas tocas e abrigos, dormindo sobre camas macias e aconchegantes. Mortos se escondiam sob a terra encharcada, deitando com as sombras em caixões de madeira dura. Os corpos rígidos e apodrecidos transpassavam um sono inquieto, almas se contorcendo em teias de dor e lembranças perdidas. Seres subterrâneos, vermes e pedras, dividiam o espaço adormecido debaixo das trilhas e caminhos sobre os quais o tempo corria, agitado, levantando o pó que já fora vida, e ceifando a vida que logo seria pó.

O céu noturno encoberto pelas nuvens escuras. A terra bombardeada pela água segmentada, que lavava pedras esculpidas. Cruzes se erguiam até o limite da visão, no breu em que tudo se fundia, durante a noite. Inscrições guardavam datas e nomes, caracteres que evitavam evocar rostos e recordações sofridas. Plantas cresciam e se enraizavam nas tampas pesadas, cobrindo entalhes artísticos que enfeitavam os túmulos. Uma forma de compensar o esquecimento forçado no qual todos eles caíam. As argolas e placas de bronze e metal barato que não haviam sido roubadas se enferrujavam. As flores mortas sobre os vasos quebrados estavam murchas e ressequidas, pétalas espalhadas no chão irregular. Casas dos mortos. Uma cidade assombrada, abandonada, deplorando.

Ninguém caminhava na calçada esburacada, que margeava a rua por fora dos portões do cemitério. Trancados, pelo pobre infeliz encarregado de cuidar daquele deserto sombrio. As barras de ferro através das quais os túmulos espiavam estavam corroídas. As pontas sobre as grades eram mortalmente afiadas, afastando invasores que quisessem pular por cima. Um garoto morrera ali, na semana passada. Quando estava passando por cima do portão, escorregou, e caiu atravessado sobre as pontas. Teve uma perna e o estômago perfurado, e ficou pendurado ali, a noite toda, berrando até o fim de suas forças. Mas ninguém o ouviu, porque ninguém morava perto do cemitério. Sangrara até morrer, a vida se esvaindo lenta e dolorosamente. Tinham retirado o corpo, na manhã seguinte. Mas não tinham conseguindo limpar todo o sangue que escorrera sobre os paralelepípedos, e ficara ali como uma imensa mancha vermelha, assombrando quem passasse por perto. O cemitério bebera o vinho de hemácias com prazer tétrico, como bebera tantas outras vezes no passado, e continuaria bebendo, enquanto existisse. O tempo não passava ali. E os Mortos podiam continuar dormindo, embalados em seus sonhos sombrios.

Um cachorro latiu. O som se perdeu na madrugada, engolido pela noite. Um raio rasgou o céu e o mar da escuridão, iluminando momentaneamente o cemitério. O som do trovão retumbou pelo ar. Quando a luz do relâmpago desapareceu, o escuro apenas pareceu mais denso e sólido. A chuva continuava, constante. Água penetrava com dificuldade entre as fendas do solo argiloso, inundando concavidades e cantos nas tumbas. Vozes mudas gritavam lamúrias que ecoavam entre as torres em miniatura. Os minutos passavam, sem serem contados. Vivos e mortos dormiam, sem serem acordados.

Outro raio cortou a noite. Seguido de outro, e mais outro, despejados à pequenos intervalos na Terra. Lançavam a luz e fazia as sombras tremularem. Trevas pulavam para fora do alcance da visão, para em seguida tomarem conta do cemitério, novamente. A tempestade parecia estar piorando. Ninguém sentia, entretanto. Estavam todos resguardados, imunes ao frio e aos castigos da noite gelada. Ninguém consciente do que aconteceria. A seqüência de raios foi interrompida, e a noite voltou a ser escura. Não mais se via nada, dentro e fora do cemitério. Os que viam algo, desejariam não ver.

Um túmulo se encontrava separado dos demais, por vários metros de distância. Estava na borda do cemitério, ilhado junto ao portão. Por coincidência, junto a grande macha de sangue da criança morta. Como todos os outros, estava em condições péssimas. Porém, esse estava pior do que os outros. Era o mais antigo de todos, o mais rústico, e menos chamativo. Ninguém nunca lhe dera atenção, mesmo quando o cemitério ainda era um lugar movimentado e bem cuidado. Ninguém nem mesmo se dera conta de há quantos anos ele estava ali. Os que tinham enterrado seu dono haviam ido embora, há muito tempo, e não tinham chorado por ele. O choro e os gritos que vinham da tumba nem ao menos foram ouvidos.

Uma lápide baixa e simples adornava o túmulo, além de uma tampa sem enfeites. Nenhuma flor, nenhuma lágrima. Apenas uma data marcada aparentemente com um canivete de bolso, que estava ilegível, por causa do desgaste na pedra. Feito para ser esquecido, abrigava a dor em carne e ossos apodrecidos. Dor que ninguém sentira desde que tinha sido enterrada viva. Dor que dormia, não na morte, não na vida. Mas num patamar de rochas lascadas, entre as duas.

Um vento forte soprou sobre o cemitério, inclinando a rota da queda dos pingos de chuva. Estalidos abafados, por folhas e coisas mortas rolando. O som da tampa do túmulo sendo levantada nem foi ouvido. Nem mesmo o baque surdo de pedra contra chão, quando ela foi empurrada e atirada com violência para o lado, expondo a terra revolvida. Nem quando a mão emergiu daquela mesma terra, agarrando-se ao solo em desespero absoluto. A dor se mantera quieta, durante muito tempo. Mas fora perturbada. E quando despertara, assim despertara seu corpo, o qual voltara a fazer sofrer. Sofrimento gerava raiva por quem o tinha causado, raiva gerava desejo de vingança, e este desejo movia o corpo precário que ressurgia através do solo.

A mão tateou, até encontrar a borda do túmulo. Ali se firmou, o pulso tremendo, enquanto tentava erguer o braço. Os dedos longos estavam descorados, e podiam-se ver alguns ossos aparecendo em fendas na carne exposta. Os músculos não eram protegidos por nenhuma pele, e pulsavam grotescamente ao tentarem se mover. Os tendões sustentavam pedaços que ameaçavam cair do corpo. Os dedos se agarraram a borda de mármore, e o pouco sangue que ainda não se esgotara vazou por entre suas articulações. Algumas unhas negras ainda estavam presas às pontas dos dedos, mas a maioria tinha sido arrancada enquanto ele cavava para a superfície.

O braço emergiu, ondulando os sedimentos orgânicos que enterravam o resto do corpo. Era um membro retalhado, onde frangalhos misturados de roupas e carne pendiam da ulna escurecida. Ele saiu da terra, erguendo-se, arrastando o semicadáver consigo. O ombro deslocado surgiu, seguido pela clavícula. Do outro lado, a outra mão apareceu, se sacudindo euforicamente em busca de algo a que se agarrar. A chuva saudou o recém-chegado, fustigando-o com as gordas gotas d’água. Ele respirou, sentindo o ar entrar como fogo em seus pulmões. Seus membros tremendo como borracha, dificultando a movimentação. Escorregava na lama, nadando na terra como um peixe moribundo. Cada centímetro que se mexia exigia um esforço enorme. Içou-se para fora da terra, apenas por que a dor malhava impiedosamente seu corpo, só superada pela raiva. Deitou-se na terra, filetes de gélida agonia escoando nas rugas de seu cérebro. Ele arfava, a cara enterrada na terra lamacenta. Suas costas eram percorridas por espasmos, enquanto o organismo tentava se reorganizar. Ele mesmo labutava para arrumar as idéias. Não conseguia pensar direito, os pensamentos das últimas horas todos desviados para a luta para chegar ali. A fadiga corporal acrescentava muitas toneladas ao seu peso real, o que o impedia de erguer a própria carcaça.

O cheiro da própria carne em decomposição o deixava nauseado. Sentia sua pele começando a crescer, se regenerando. Ondas de força varavam sua espinha cada vez mais freqüentemente. Mas a dor continuava a ser sua companheira inseparável. Seus músculos pareciam estar em um motim, não obedecendo as ordens de as mente. Até esta estava num estado totalmente caótico. Ele via o cemitério como um borrão monocromático, que entrava e saía do foco de seus olhos amarelos, inchados e lacrimejantes. Queria esperar ali, deitado, que seu corpo se regenerasse. Mas não tinha tempo à perder, e se deixasse sua mente relaxar demais, temia que ela dormisse, e dessa vez nunca mais acordasse. Trincou os dentes, prendendo os gritos angustiantes. Se virou, ficando com as costas no chão. A chuva lançou beijos gélidos em seu rosto imundo. Olhou para o céu, piscando quando um relâmpago lançou os braços pelas nuvens negras, abraçando-as. Ele ergueu as mãos diante do rosto, e acompanhou com certo prazer macabro a camada epidérmica brotando e avançando com lentidão sobre a carne viva. Fitou o sangue vistoso que delas escorria, regando o solo e o que restava de suas roupas. Imediatamente, sentiu outra coisa se agitar em seu interior. A fome.

Baixou as mãos, deixando um berro escapar. A coisa martelou sua caixa craniana. A besta. Despertada pela fome. Merda. Ele tinha suposto que aquilo levaria mais tempo. O monstro se espreguiçou, roçando em suas costelas e o que ele julgava ser a membrana exterior de sua alma. Aquela criatura que tinha espreitado-o do canto de seu consciente, Estava faminta. Ele estava faminto. Porém tinha que reprimir a coisa. O tempo estava correndo. Quanto demoraria até descobrirem que tinha escapado?

Voltou a ficar virado para o chão, de bruços, e começou a laboriosa tentativa de ficar de pé. Viu que seu pé esquerdo estava quebrado. Não era problema. Se ergueu, os ombros encurvados, ainda tremendo como uma britadeira ligada. Equilibrou-se precariamente no pé direito, deixando o pé esquerdo apenas levemente apoiado. Hesitou dar o primeiro passo. Suas pernas estavam bambas e sua cabeça estava grogue. Caminhou. Caiu, resvalando no solo do cemitério. SE reergueu, apesar de sua vontade de viver ser cada vez mais estrangulada pelas teias de cansaço e sofrimento. Estava agonizando. Sua metade humana queria morrer. Mas o que ele realmente era, o vampiro, gritava protestos a plenos pulmões. Morrer na praia. Morrer. Desistir.Ser vencido. Vencido por eles.

Ninguém vencia Argus Hycker.

Aquela frase reboou em seu interior. O nome brilhou em sua rotina como um anúncio de néon embutido na córnea.

Voltou a caminhar, muito devagar. Debruçou-se sobre uma poça em uma tampa tumular, não muito longe do buraco que abrira no chão. Viu seu reflexo na água turbulenta. Carne e rasgas dos ossos cranianos. Mas uma parte já tinha se reconstituído por quase completo. Era a face esquerda. Argus voltou-a para a poça. A tatuagem estava clara, em tinta preta e brilhante sobre a pele cinzenta. Alguns pontos interligados, marcados por símbolos e números, sobre uma pintura tribal com pouca opacidade. Ele pensou nela, e sorriu. Seu sorriso era uma esgar sem lábios, que expunha ainda mais seu caninos longos e amarelados. Fitou com ar doentio o próprio rosto, correndo um dedo indicador pelas linhas da tatuagem. Naquele instante, a dor pareceu se amainar. Ficou fitando a cara de linhas rústicas, por muito tempo, as lembranças fluindo pelos neurônios.

Outro raio. O som demorou a chegar, e despertou-o de sua auto-admiração. Demorou até perceber que a chuva tinha parado. O som de sua queda se substituíra por uma quietude palpável, de tão densa. Argus ergueu os olhos para o céu, o sorriso psicótico se alargando. A dor fora empurrada para um canto, acotovelando-se com os veios da sensação de vitória. As nuvens tinham se dispersado, embora ainda cobrissem a maior parte da obscura abóbada celeste. Os raios caíam agora próximos ao horizonte, ainda fazendo um amor ensandecido com as trevas terrestres. Uma brecha nas nuvens revelava um pedaço do céu estralado. Deveria ser lua nova. Argus fitou as estrelas que apareciam, destacando-se contra a cortina azul-escura. Em poucas horas, essa cortina seria aberta, para dar lugar à claridade do sol nascente. As estrelas se agrupavam em uma constelação. Argus olhou para ela, e olhou para seu rosto, sua tatuagem, os muitos pontos interligados. Olhou de volta para as estrelas. Sentiu a pele sob os traços negros arder. AS estrelas piscaram para ele.

Lupus, o lobo. Adornando o céu do hemisfério sul. Sua estrela alfa brilhava mais linda do que todas, tremulando como uma chama branca na noite. O cemitério não a olhava. Nem os vivos e mortos adormecidos. Mas ele a contemplava, com um sorriso. E contemplava a si mesmo, quando fazia isso.

O vento frio o acariciou, os gritos da paixão sinistra trovejando cada vez mais longínquos. Ele desviou-se do céu, e olhou para os telhados das casas da cidade, cobrindo quem sonhava, embalado na inconsciência. SENTIA o cheiro da vida preciosa emanando de lá, como fumaça nevoenta saindo pelas chaminés. A besta rosnou, exigindo satisfação. Fome. Estava com muita fome.

Ajeitando os farrapos de seu antigo casaco preto, ele deu uma última olhada para sua estrela. Alfa do lobo. Então, agarrou com as mãos pé deslocado, e retorceu os ossos, ouvindo um estalo alto quebrar o silêncio. A dor aguda, e os ossos estavam de volta no lugar. Iria se fixar de novo. Só precisava se alimentar. Ele segurou com ambas as mãos o próprio joelho esquerdo, começando a mancar em direção à cidade.

Argus Hycker estava de volta.

Júlia Palazzo
Enviado por Júlia Palazzo em 07/08/2006
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