O Sonho de Amor e a Velha Corcunda

Deixarei este breve relato apenas para testemunhar à posteridade, se é que ele chegará a ser lido, os estranhos, absurdos acontecimentos que vêm desabando sobre minha consciência por estes dias de minha vida obscura. Escrevo-o como forma de aliviar a alma de tão dramáticas experiências, que, certamente, jamais poderiam ser comunicadas pessoalmente a quem quer que fosse, pois correria o inevitável risco de ser tachado de louco, na mais amena das hipóteses.

Tudo começou no dia em que conheci aquela jovem com quem mantive um mínimo contato de amizade, sendo que nunca mais a vi, por mais que a procurasse desesperado por todos os cantos da cidade. Aliás, não sei nada de concreto a seu respeito, tenho somente suposições que não revelarei, mas em geral sua existência me é um enigma indecifrável. No entanto, ocorreu-me aquilo que o leitor sagaz certamente já deduziu: apaixonei-me inflamadamente pela misteriosa mulher. Claro! Apenas isso justifica minha busca alucinada, porém, em vão. Hoje, completam-se três meses desde o dia em que conversei com a belíssima moça. Como nem ao menos sei seu nome, chamar-lhe-ei apenas de “Dama do Sonho”, e o motivo virá adiante. Desde então, principiaram-se os absurdos acontecimentos. No primeiro mês, durante todas as noites, sem nenhuma interrupção, tive sonhos estranhamente intensos, vívidos, dir-se-ia reais, de uma profunda verdade plástica. E tais sonhos eram rigorosamente iguais, a não ser por um terrível elemento...

Em todos eles eu sonhava com a mulher de meu encontro, vestida sempre de um branco imaculado, espargindo alva pureza e vivo amor angelical, em uma ambiente de névoas densas, iluminado somente por imensos vaga-lumes. O cenário era paradisíaco: campos cobertos de flores vermelhas, azuis e púrpuras, imensas árvores de antiga exuberância e algumas corujas de olhos enormes que chispeavam fogo, pousadas em galhos tortuosos. A jovem, então, caminhava para o interior de um bosque muito cerrado e ali se ocultava de meu campo visual. Por esse motivo a chamo de “Dama do Sonho”. Entretanto, dissera que havia, como variação da experiência astral um terrível elemento... Ocorria que após a Dama se ocultar na mata, eu, quase sempre, acordava-me em febre, úmido de suor e ainda não acreditando que tudo fora apenas uma visão onírica, desejando violentamente correr atrás da magnífica mulher. Devo esclarecer que no sonho eu jamais me encontrava fisicamente no cenário, era como se eu fosse um espectador distante, avistando tudo do alto, mas não sei dizer exatamente o que viria a ser esse “alto”.

Mas nem sempre eu despertava no instante acima mencionado. Algumas poucas vezes o sonho prosseguia, e, nas minhas visões, uma velha corcunda, encarquilhada, resfolegante, trajando imundos trapos amarelados, com uma expressão cruel e diabólica, seguia a Dama por dentro da mata, também se escondendo. O pavor que aquela criatura decrépita e doentia causava-me era indescritível, e ainda sinto calafrios ao relembrá-la. De sua boca e nariz gotejavam secreções repugnantes, e seus dedos pálidos e encurvados projetavam-se exageradamente para baixo, possuindo longas unhas sujas. A velha constituía o “terrível elemento”.

Todavia os sonhos findaram-se e nunca mais se repetiram. Nem seria necessário, tendo em vista o que sofri subseqüentemente... Desde o fim dos sonhos, passei como que a viver mergulhado em dimensões paralelas, ainda que estivesse em plena consciência do mundo físico, ou tridimensional. Sucedia-se que ao invés de ver somente os seres e objetos ditos “concretos”, encontrava-me em uma série de situações e circunstâncias inaceitáveis, alheias ao que chamamos “realidade”. Assim, por exemplo, se eu caminhava por entre as árvores de um parque, entre elas avistava criaturas jamais descritas em lugar algum, pelo menos não do meu conhecimento. Algumas delas aparentavam benignidade, um mágico ar sereno, mas outras possuíam um ar ameaçador, integralmente maligno. Não obstante, nunca fui atacado, apesar de sempre me olharem fixa e ominosamente. Também as benignas criaturas observavam-me, porém, com profundo carinho e ternura.

Quando realizava excursões a locais afastados da cidade, como para campos ainda preservados, era como se eu passeasse por outras regiões remotas, desconhecidas, além, é claro, do próprio campo em seu aspecto tridimensional. Percebia que ora andava por fantásticos lugares celestiais, que para mim nunca foram pisados por nenhum mortal, de uma beleza inefável, muito além de qualquer descrição mental; ora perambulava por algo como círculos infernais, pântanos lúgubres e desolados, charcos abomináveis, insufladores de uma profunda depressão emocional. E tudo se constituía em uma mescla com os campos de nosso mundo. Ou seja, simultaneamente, eu dividia minha atenção entre eles.

Posso ainda deixar mais exemplos dos insólitos acontecimentos que me afligem... Quando ouço qualquer música, em um de meus ouvidos, ouço vibrar divinas harmonias, notas sobrenaturais plenas de glória e força, provindas de majestáticos anjos. No outro ouvido, invadem-me horrores satânicos em forma de som, músicas do abismo, espantosas, maléficas, as vozes dos próprios anjos caídos retumbando. E, agora, falo do quem mais me impressionou: seguindo sempre essa estranha lei das antíteses, da mesma forma, quando observo qualquer pessoa, diviso em torno dela, por um lado, uma legião de monstros e bestas absolutamente perversos e, por outro lado, uma esplêndida luz azulada, única e vibrante, formando algo como um ser cósmico de amor e sabedoria. Contudo, tal ser mirífico de luminosidade é cercado pelos monstros, somente luzindo por baixo da força malevolente daqueles diabos. Tenho certeza de que a natureza dessa contemplação advém do próprio interior dos seres humanos que observo, ou seja, um reflexo inexplicável do que todos trazem dentro de si. É lógico que o mesmo se dá comigo. Ao mirar-me no espelho, flagro-me dividido de maneira idêntica à que referi acima.

E tudo isso, todos os absurdos que sobre mim recaem, são alimentados, acredito, pelo meu sentimento para com a Dama do sonho. Sempre imagino sua alma e sinto sua presença em todos os lugares; minha intuição capta suas irradiações femininas e benfazejas onde quer que eu esteja. Porém, muitas vezes, um pavor percorre minha espinha... é quando percebo algo mais... a negra energia da Velha Corcunda...

Creio que devo encerrar meu relato. Afirmo que não estou preocupado com o julgamento dos leitores. Sei que sempre haverá pseudo-sábios, pseudomestres, pseudogênios que me condenarão ou irão ridicularizar-me. Contudo, eu pergunto a tais senhores: quem são para julgar-me? Em sua “sabedoria”, responderam as principais questões da humanidade? Descobriram um sentido para nossa existência? Explicaram todos os mistérios? Sabem de onde viemos? Para onde vamos? Resolveram os problemas do homem? Resolveram seus próprios problemas? Encontraram a paz e a felicidade em suas vidas? Uma saída para o ser humano? Trouxeram uma diretiva, uma dialética para realmente elevar o homem, torná-lo melhor e mais próximo do amor? São livres? Falam muito em liberdade, mas não passam de escravos de seus próprios conceitos, de sua própria matéria, de sua própria rotina. Glorificam a força, contudo são vergonhosamente fracos e débeis, incapazes de entender e modificar sua própria existência. Superaram seus infortúnios? Experimentaram a verdade? Viveram-na? De que serviu seu tão cacarejado “conhecimento”? Portanto, pensem bem, muito bem, antes de julgarem-me.

Mas... agora... o que estará principiando a acontecer comigo? Em que nova esfera do mistério estarei penetrando? Pressinto que estou sendo absorvido por outras realidades... agora, penetro em dimensões ignotas... Sim, entendo... chegou o momento decisivo... Todo meu espírito e meu corpo são tomados pelas etéreas atmosferas dos jardins de minha amada. Oh, agora aqui estou eu em um outro mundo, apenas com este caderno e esta caneta; prossigo meu relato... Mas é chegada hora de findá-lo para todo o sempre. Já vejo, já vislumbro a Dama do Sonho me acenando ao longe... Vem ela levar-me para o Sonho de Amor... Mas... atrás dela, que vulto é aquele...? Meu Deus, havia-me esquecido... a Velha Corcunda! asquerosa, demoníaca, aquele ente das desgraças, sempre a perseguir os passos virginais do meu Amor... E vêm as duas em minha direção, para o meu abraço...! as duas... vêm rápido... tão rápido... Eu...

Meu Blog : www.poemasdoterminoecontosdofim.blogspot.com

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 09/08/2006
Reeditado em 23/08/2006
Código do texto: T212285