A aparição

Para meu grande horror, quando cheguei à minha casa depois de uma saída breve para comprar o jornal, deparei-me com a minha esposa, que me encarava, pálida e boquiaberta. Tinha os grandes olhos negros arregalados e balbuciava algo ininteligível:

- Que foi, mulher? O que pretende me dizer?

Mas ela, embasbacada, não conseguia pronunciar uma sequer sílaba... estava em choque.

- Droga... que bicho mordeu esse diabo de mulher? – resmunguei, ignorando-a, pegando do jornal e indo em direção à minha poltrona favorita, na sala, onde a lareira crepitava.

Cessei meus passos, contudo; havia alguém sentado em meu lugar... eu não lhe via o rosto, pois o estranho lia o jornal com ávido interesse, descansando sobre a mesa os pés calçados com as minhas sandálias.

Olhei para a mulher num tom reprovador:

- Quem é o nosso convidado? Não me apresentas, mulher?

Como ela permanecia sempre calada, dirigi-me ao visitante que, sequer parecia se dar conta de minha presença, entretido pela leitura:

- Com licença, senhor... mas creio que não fomos apresentados! – estendi-lhe a mão, cordialmente.

O estranho não se moveu... permanecia com o jornal levantado diante do rosto, folheando-o de vez em quando. Tossi, então, ruidosamente:

- Senhor... olá!

Em vão...

Uma fúria me dominou... quem seria esse facínora que entrava em meu lar, sentava-se na minha poltrona e usava as minhas sandálias e nem sequer se dignava a me cumprimentar? Com um violento golpe, fiz voarem pelos ares as páginas do jornal que o homem segurava compenetrado:

- Não está me escutando?!... – gritei.

Eis então que pude contemplar... juro-o pela terra e pelos céus... sentado na minha poltrona favorita estava a minha própria figura, que me olhava com ar interrogativo e contrariado.

Como se estivesse diante de um demônio, afastei-me rapidamente, colando minhas costas à parede:

- Quem é você?... – perguntei.

A criatura, erguendo-se vagarosamente, respondeu:

- Não lhe parece óbvio quem sou? Sou o dono desta casa!

- Mas... não é possível! O dono desta casa sou eu!

- Não seja ridículo, meu senhor... tenha a bondade de se pôr daqui para fora! – disse o estranho, agarrando-me pelo ombro e me arrastando em direção à porta.

- Não! Não! Eu não quero ir! Aqui é a minha casa! – debatia-me, tentando agarrar em algo sólido, uma vez que o impostor me excedia grandemente em força física.

- Pois bem! – disse ele, soltando-me de encontro ao solo – fica, então, se te apraz... Mulher, traze o jantar!

Minha mulher, embora confusa, acenou com a cabeça que sim. Agarrei-a pelos dois braços, sacudindo-a;

- Margaret, pelo amor de Deus! Você não me reconhece mais? Não sabe que sou eu o seu marido?...

- Sim, meu amor, eu sei... – balbuciou ela.

- Mulher, o jantar! – bradou, novamente, o estranho.

Livrando-se de minhas mãos, Margaret se dirigiu à cozinha;

- Já vou! – disse ela.

E esse impostor era, de fato uma perfeita cópia de mim mesmo... semelhante no gesto, na voz e no temperamento.

Diante desses gritos, ouvi passos na escada que dava ao quarto de meu pequeno filho: ele, certamente, despertara com a balburdia e descia para saber o que se passava...

Ao chegar onde estávamos o pequeno parou, confuso, vendo o seu pai duas vezes:

- Papai?!...- balbuciou o garotinho de oito anos.

Era essa a minha chance de desmascarar o impostor, pondo-o, de uma vez por todas, fora de minha casa. Sabe-se muito bem que o inocente coração infantil é o senhor de um tipo de verdade cristalina e incorruptível; sendo assim, ajoelhei-me e principiei a chamar meu filho:

- Franz, meu filho, venha aqui com o papai! Venha!

Mas o estranho, repetindo o meu gesto, ajoelhado, principiou, também a chamar o nome de meu filho:

- Franz, venha com seu pai!...

O menino deparou-se, então, neste fogo cruzado, entre dois homens que alegavam ser seus pais e permaneceu assim durante alguns segundos, tentando assimilar na sua mente infantil o que se passava com o universo conhecido por ele; mas a saraivada de súplicas de ambos os lados não cessava... Finalmente, meio que cambaleando para os dois lados, constatei com imensa mágoa que meu filho se aninhava nos braços do impostor que invadira minha casa e que tomava a minha vida sem me dar, sequer, uma explicação para este absurdo.

A voz de Margaret interrompeu meus pensamentos e minhas lágrimas:

- O jantar está na mesa!

Foi com uma espécie de desespero que corri à frente do estranho e sentei-me à mesa, no meu lugar de costume, agarrando-me a ele como se me agarrasse à minha própria salvação. O estranho chegou tranqüilamente e me falou com severidade:

- Sentou-se no meu lugar...

E eu, agarrado à mesa tal qual numa tábua de salvação:

- Aqui é o meu lugar! Sempre foi e sempre será o meu lugar à mesa!

O homem pareceu irritado:

- Este é o lugar onde me sento há anos... e não pretendo mudar este hábito por sua causa!

Margaret trazia o jantar e punha a mesa, impassível diante de nossa discussão.

- Margaret! Margaret! Diz a este louco... não é verdade que sou eu quem me sento nesse lugar há anos? – implorei à minha mulher.

Ela, assentindo com a cabeça que sim, mas dando de ombros como se não soubesse, retirou-se à cozinha.

Reparei, nesse instante que, à mesa foram dispostos apenas três pratos: um para minha esposa, e outros dois, para meu filho e eu. Era essa a minha vitória...

Entretanto, o homem, com violência indescritível, segurando-me pelos cabelos, arremessou-me de encontro à parede e, calmamente, sentou-se na minha cadeira, sendo servido, então, por minha esposa:

- Margaret!!! – chorei.

Então, o impostor, fazendo um gesto com a mão, disse:

- Mulher, dá a este louco um prato de comida!

Quando Margaret me trouxe um prato eu me debulhava em lágrimas.

Ao cair da noite, na hora de dormir, Margaret veio em minha direção com um travesseiro e um cobertor, arrumando-os no sofá:

- Você dorme aqui!

- O quê?! – gritei, histérico.

O homem apareceu subitamente e repetiu:

- Você dorme aqui! – forçando-me, com seus dois braços e deitar.

Permaneci, então, desse jeito, deitado, até o apagar das luzes... quando já passava muito da meia-noite, no escuro, eu estava de olhos abertos e fitos no nada, conjeturando esse absurdo que me ocorrera.

Levantei-me silenciosamente, afastando de meu peito o cobertor; dirigi-me à cozinha, abandonada a essa hora... muito devagar, abri a gaveta de talheres e, dela, retirei a longa faca que procurava. A escuridão mascarava meus movimentos... abri a porta de meu quarto e pude ver, deitado na minha cama, ao lado de minha esposa, o farsante que assumira meu lugar. Silenciosamente, cheguei bem perto e, enquanto ele dormia, cravei-lhe a faca no flanco direito, ao qual ele soltou um pavoroso grito.

Esse grito fez em mim o efeito de uma droga... perdi a conta de quantas punhaladas desferi naquele homem...

Desse ponto em diante, tudo é confuso para mim... lembro-me dos gritos de Margaret, de seu pranto, de ter lhe falado que agora tudo estava bem e dos policiais arrombando a minha porta e me algemando.

Eu gritava ao ser levado:

- Me larguem! Eu não fiz nada!

Um dos policiais, então, apontando o dedo ao meu rosto, rosnou:

- Você é culpado de ter matado a si mesmo! Levem-no!

E, desde então e para sempre, estou enclausurado nesta masmorra...

Henrique de Castro Silva Junior
Enviado por Henrique de Castro Silva Junior em 19/03/2010
Código do texto: T2146972
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