CÃO CINZENTO

Sempre fui muito reservado, de poucas palavras, um tanto reprimido, confesso. Talvez, por conta disso, o principal motivo que me leva a escrever esse breve relato tenha a ver com essa necessidade quase sufocante de desabafo, uma força crescente, diria até indomável, que se instalou no meu peito nos últimos anos. Neste momento, quando a ampulheta da vida libera seus últimos grãos de areia sobre mim, torna-se inevitável, ou mesmo uma questão moral, concretizá-lo.

O fato que me atormenta teve início há muito tempo atrás, numa época em que a infância não era apenas uma lembrança turva em minha mente. O cheiro da terra, o perfume das flores, o toque da chuva, detalhes que não damos muita importância no dia-a-dia quando temos liberdade, sinto falta daqueles dias, como eu queria caminhar sob as estrelas novamente sem temer o que se esconde nas sombras da noite...

Noite...palavra poética, refúgio dos amantes e apaixonados...para mim, sinônimo de medo, de insegurança, pavor, morte. Eu caminhava tendo apenas a luz de um plenilúnio como companhia. Pensamentos leves me dominavam, pois a razão da minha desgraça ainda não havia se revelado. Trazia nas costas um amarrado de lambaris, dizia meu avô que a lua cheia atraía os graúdos, não sei se havia verdade nesse ensinamento, mas fosse coincidência ou não, eu sempre fazia boas pescarias nessas ocasiões. Meus pais não temiam em deixar um molecote como eu em andanças noturnas, não havia motivos para alardes numa cidadezinha como aquela, afinal, nada de anormal acontecia mesmo. Eu preferia a solidão a ter companhia nessas investidas, combinar uma turma com pescaria, invariavelmente, terminada em distração ao invés de peixes.

Eu não estava muito distante de casa quando ouvi aquele ruído. Não era um rosnado, não era um grunhido, não era um sibilar, não era nada disso, mas ao mesmo tempo era um somatório de todos esses sons. Uma amálgama de lamentos, exultação e sofreguidão. Tive medo. Muito medo. Não posso negar. Entretanto, movido pela estupidez e curiosidade, elementos que nessa idade tão facilmente se disfarçam de valentia, perscrutei os recantos sombrios de onde se originava a manifestação.

A folhagem dos arbustos exibia um movimento descompassado, ritmo semelhante ao que palpitava em meu peito. Uma estranha e súbita onda de bom senso me invadiu, mas já era tarde, pois já não era eu quem espreitava, naquela altura, era a minha presença o foco das atenções. Infelizmente, só percebi a inversão da situação quando os estalos, os quais traziam à minha mente a imagem de ossos sendo triturados, cessaram.

Um grito agudo e metálico arranhou meus tímpanos. Larguei os peixes e corri sem esperar que o mistério envolto pela vegetação se desvendasse. Nunca pude imaginar que minhas pernas fossem capazes de tamanha desenvoltura. Por um instante achei que não seria seguido, obviamente estava enganado, e não precisei, nem ousei, me virar para constatar tal fato. Bastava apenas a certeza de que algo desejava me alcançar, alguma coisa cuja maldade crua e avassaladora se espalhava no ar.

Minha casa estava próxima, mas eu sentia que o meu perseguidor se aproximava cada vez mais. Pulei a cerca viva e rolei pelo gramado, coloquei-me de pé e continuei a correr. As gambiarras próximas à porta de entrada ofereciam uma ínfima luminosidade, porém mais do que suficiente para projetar uma grande sombra nas paredes alvas.

Ouvi os latidos do labrador. Percebi que o meu cão partia ao encontro do invasor. A urgência fez com que me ferisse no corrimão de alumínio que margeava o lance de dez degraus até minha salvação. O animal protetor não soltou um único ganido, era certo que o desafio se mostrara maior do que poderia suportar. Provavelmente morrera feliz por ter cumprido sua missão: prezar pela segurança de seu dono.

Ganhei as dependências da casa sem entender muito como consegui fazê-lo, só sabia que dois sentimentos conflitantes me dominavam: a gratidão por conseguir chegar em casa, e a incerteza acerca da veracidade de segurança em tal fortaleza.

Subi até meu quarto, afastei cautelosamente a cortina de renda e espiei a noite. Pouca iluminação artificial se espalhava pelo quintal, o que não fazia muita falta, a julgar pelo abraço acalentador e claro oriundo dos céus. Pela primeira vez vi os contornos que nunca mais pude apagar da memória. Um cão, cuja pelagem desgrenhada me pareceu acinzentada ao toque do luar, devorava os restos do velho Rex. Seus traços eram brutos e bestiais, totalmente fora dos padrões da normalidade.

Precisei tapar a boca com as mãos para não gritar. Em poucos minutos a carcaça do labrador desapareceu. O cão cinza lambeu o focinho e farejou o terreno até a entrada da casa, parando exatamente no corrimão, onde me feri. Filetes do meu sangue escorriam pela superfície polida da armação metálica. O maldito fez pender a imensa língua, que ainda guardava os resquícios do meu fiel amigo, deslizando-a sobre as grades, sorvendo as gotas que até pouco tempo corriam em minhas veias.

O impacto da cena foi demais para mim, não suportei e entrei numa histérica convulsão, eu gritava e me debatia. Logo meus pais irromperam pelo quarto, não pude articular com clareza e pouco me lembro do que aconteceu a seguir. Só sei que meus dias nunca mais foram os mesmos. Passei por inúmeros hospitais, clínicas e instituições. Fui submetido a uma verdadeira peregrinação, levado ao encontro dos mais diversos profissionais especializados nos enigmas da mente.

As respostas? Bem, foram muitas. Porém todas se assemelhavam no resultado final do veredicto: a loucura, ou algo próximo a isso, havia me dominado, que eu não seria o primeiro, nem o último na história da humanidade a sofrer com as excentricidades dessa dama tão temperamental.

Soube que uma garotinha sumira sem deixar vestígios nas cercanias da cidade. Meus pais, por um bom tempo, acharam que eu havia feito algum mal ao Rex, e que, por conta disso, tenha entrado em colapso e procurado uma justificativa para isso. As marcas de sangue no gramado eram um bom indício. Eu sabia que, sem sombra de dúvidas, era o corpo da desaparecida o alimento que descera pela garganta do cão cinza naquela noite, era o som de seus ossos sendo moídos por sua mandíbula o que ouvi.

Desde então vivi confinado, seja em casas de repouso ou unidades especializadas em reabilitação de mentalmente debilitados. Nunca mais caminhei pela noite, pois sei que ele anda a espreita a me esperar. Ele experimentou do meu sangue e tenho a convicção de que não esqueceu e nunca esquecerá. Tenho medo de olhar pela janela, nada vai me tirar da cabeça a idéia de que um cão de pêlos cinzentos e olhar demoníaco está lá fora, de prontidão, aguardando uma oportunidade, um descuido, para acertar velhas contas.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 21/03/2010
Código do texto: T2150302
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