Malaquias (13)

A luz do dia que ainda era esbofeteou-o lá fora em cheio nas vistas e Malaquias, o Grande, sem os seus habituais óculos escuros, perdidos algures num envelope no arquivo de soltura do estabelecimento penal do Monte à espera que um dia ele saísse, como estava a sair, mas dentro da legalidade processual, o que não era o caso, escudou-se com uma manápula que eclipsou o sol e contemplou o parque de estacionamento dos funcionários do presídio do qual acabara de se evadir, embora não fosse razão para se pôr a festejar já, ainda aí vinham vinte e muitos quilómetros de curvas montanha abaixo que se adivinhavam, no mínimo, escarpados, precipitados e, sendo que vivia numa era da tecnologia de informação em tempo real, provavelmente a certo ponto bloqueados caso as forças da autoridade do Monte tivessem alertado as suas congéneres da Baía para o fugitivo que, mesmo que por enquanto ainda no Monte, já se encontrava a monte, não seria difícil de o identificar, realmente nada, bastava abrirem a pestana para a eventualidade de virem passar um leviatã cor alaranjada pingando como uma boca de incêndio das bainhas das calças e, se o vissem, já agora não esquecessem de atirar a matar porque com bons modos o pessoal do Monte não fora a lado nenhum, excepto, talvez, até ao consultório de ortopedia mais próximo, ou de algum estomatologista que tivesse acordo com a Polícia.

Outros quinhentos, que Malaquias, o tal, debruçava-se agora hesitante entre fazer ligação directa ao autocarro oficial e marcado que transportava os guardas prisionais montanha acima, montanha abaixo ou em vez desse ao SUV estacionado no parque no lugar reservado ao senhor director, um e outro veículos sendo os únicos por ali espalhados à torreira do sol onde o descomunal foragido acreditava conseguir encaixar o seu volume corporal, roliço diria a sua falecida e, apenas por razões de antipatia pessoal pelo homem, nem todas muito bem fundamentadas, era mais uma questão visceral que intelectualmente alicerçada, a sorte calhou ao veículo de ancas largas e rodas altas desenhado originalmente para o serviço militar mas que depressa ganhou uma popularidade inconveniente e inexplicável entre todos aqueles a quem um pénis pequenino calhara na rifa genital, como não podia deixar de ser o caso do senhor director, cotovelo molhado contra o vidro inquebrável do condutor, onde é que Malaquias já vira aquilo acontecer antes, oferecendo-se como voluntário de peito aberto àquele deja vu, cacos depressa estilhaçados e o alarme da viatura a pedir um socorro comovente, de muito lhe serviria, de tanto quanto serviu à sirene de alerta da cadeia, que ainda se ouvia mas à qual já não se prestava tanta atenção, Malaquias soltou a tranca da porta e içou-se para o interior de cabedal estofado qual génio a espremer-se de volta para dentro da sua lâmpada, arrancou com um puxão os fios debaixo do volante, despiu dois deles da sua cobertura isolante e uniu um a outro, que faiscaram felizes por estarem finalmente juntos, o motor trepidou pujante em compasso com o mundo inteiro, caixa automática, como era óbvio, a meter a primeira quando o presunto quarenta e nove de Malaquias calcou o acelerador e se fez ao piche amolecido pela temperatura elevada, lá indo ele a toda a velocidade de encontro aos altos portões de malha de aço, antes da colisão aparatosa ainda trancados que constituíam a única barreira física entre quem queria deixar o Monte, de uma forma ou de outra, e foi de outra, não de uma, que Malaquias, o Grande, o fez, o deixou para trás.

A estrada virou imediatamente para a direita, mergulhando num pinheiral crescido, denso e seco e a pedir que alguém numa distracção incendiária lançasse uma beata pela janela, não seria o caso de Malaquias, que já não fumava, uma das promessas que fizera à sombra da sepultura da sua querida esposa, embora fosse mais correcto dizer que seria a sepultura que estaria à sombra do enorme corpanzil de viúvo de Malaquias, juras de nunca mais tocar em cigarros, juras que faria dieta, embora esta jura fosse uma falácia calculada da sua parte já que, e após pesquisa aturada no dicionário que tinha em casa, um calhamaço cheio de pó e palavras, descobrira que a dieta era apenas um regime alimentar, não especificava qual, não tinha forçosamente de ser um regime onde escasseasse tudo o que era bom e faltassem aquelas coisas que sabiam bem, muito pelo contrário, não havia ponta de fascismo na definição, apesar de lá vir a palavra regime, a estrada virou para a esquerda, essa jura fora assim manobrada com Malaquias pensando ainda em mudar, no que à outra jura dizia respeito, para charutos, que não eram de todo em todo cigarros, mas achou que se houvesse uma vida depois da morte em que os mortos passavam a sua vida a espiar a dos que continuavam vivos e a seguir-lhes os passos quase sempre com fantasmas de desaprovação estampados nos seus rostos, a falecida, a quem ele, Malaquias, tanto amava, tanto viva quanto morta, estaria mentalizada para sofrer uma desilusão, talvez, mas nunca duas, e fora por essa ordem de razões que deixara de fumar, cigarros ou lá o que fosse, nem salmão que tivesse sido fumado ele mandava vir do menu, convindo, se quisesse ser sincero, que peixe não era bem o tipo de carne que ele gostava mais de comer, a estrada mudava novamente de ideias recurvando-se para a esquerda.

O SUV descia a montanha como se tivesse o diabo às costas, com o condutor pantanoso a contribuir para o peso exercido no acelerador, a segurança das curvas não desfazendo, a pressa fazendo parte da imprudência exibida pelo o velocímetro, aí vinha na mecha Malaquias, o melhor condutor dos tempos da Academia, fitipaldi dos chaços com fundidos pirilampos no tejadilho que os instrutores passavam para as mãos dos formandos como se fossem bólides topo de gama e ai deles que lhes acrescentassem uma nova depressão na chapa apinhada de amolgadelas antigas, ai deles, deméritos e o caraças, Malaquias a entregar sempre os veículos no mesmo estado em que lhe chegavam, nem risco nem nada, nada que lhe pudessem apontar e dizer “vês?”, e sempre a bater todos os recordes de provas, sempre a ziguezaguear veloz entre os pinos com a mesma facilidade com que fazia as esquerdas repentistas e as direitas abruptas da apertada estrada florestal que servia o Monte, Malaquias era o melhor condutor que alguma vez sucedera na Academia, eles que se mentalizassem disso, que nem se pusessem com ideias de erigirem uma barreira na estrada lá em baixo, eles que o deixassem passar, porque se não deixassem, ele passaria à mesma, o SUV tinha cinto de segurança, o SUV tinha airbag grande o suficiente para o levar numa viagem de balão, os cento e muitos quilos do passageiro ou não, o SUV tinha um pára-choques de carro blindado, o SUV era, efectivamente, um blindado, eles que não se pusessem com ideias, a estrada a fazer a sua última curva para um dos dois lados disponíveis na ementa, não interessava qual, e o acesso à auto-estrada a surgir lá ao fundo, Malaquias nem queria acreditar, lá ao fundo surgiu o acesso e estava completamente desimpedido, ninguém se chibara da sua fuga, caminho apresentava-se livre, queridos sobrinhos, o tio ia a caminho, o tio era só mais um bocadinho, só esperava não chegar demasiado tarde, era tudo o que pedia Malaquias, Malaquias, o Grande.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 29/03/2010
Código do texto: T2165450
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