Malaquias (15)

A Cidade Baixa surgia arraçada de carrossel numa insistente curva sempre para a direita do viaduto número sete, acesso privilegiado, e único para quem vinha da Baía, ao caos arquitectónico cujo mero vislumbre despreparado empurrava muitos ao suicídio apressado e outros para os braços parasitários da religião, era um sítio que ficava para lá do feio, portanto, mesmo mau, perfeitamente hostil à vida, que só era visitado por quem, por esta ou por aquela razão, se via obrigado a isso, como era o caso de Malaquias, o Grande, que torcia com agastamento e sempre para a direita o volante do pequeno carro alugado, os seus pensamentos também espiralando descendentemente como o viaduto, à volta da pessoa do Palhaço e de como ia tratar da saúde à referida pessoa, que era um eufemismo comummente aceite quando se queria dizer “causar a morte”, e muito apropriadamente, porque a morte resolvia todos os problemas de saúde que se tivesse, curava todas as maleitas, talvez com a única excepção do acne, o acne confirmava a regra, a morte nada fazia pelo acne, talvez até o piorasse, que a morte não fazia bem nenhum à pele era conhecido mas, tirando isso, matar alguém era realmente tratar-lhe da saúde, e Malaquias sentia-se um valente dum fantástico dum Senhor Doutor enquanto olhava com incredulidade para a Cidade Baixa e via as cores vivas do mundo desaparecerem, substituídas pelo pardacento melancólico do tecto de nuvens que cobria o vale e escondia dele o sol e fazia de conta que era noite ou que estava sempre a anoitecer, Malaquias sentiu o estômago dar-lhe uma volta ou duas, pensou na sua própria morte e nas formas possíveis de a acelerar, pensou em filiar a sua alma à convicção mais modernista das Testemunhas de Jeová, e depois engoliu em seco e tentou conservar o que restava da sua sanidade mental, passando revista ao último dia.

Os cunhados estavam mortos, espalhados em peças soltas e sangrentas pelo apartamento onde muitas vezes Malaquias fora levado a jantar pela sua amada falecida, que uns anos antes perdera um duelo insólito com um autocarro, outra história, outras lágrimas, mas a muita véspera de Natal, a muito aniversário da petizada Malaquias, o Tio, ou Malaquias, o Cunhado, comparecera naquele apartamento de braço dado com a falecida, nessas ocasiões ainda viva, com a sua melhor e nem sempre convincente careta de felicidade por ali estar, por ter sido convidado, quase sem demonstrar o tédio que o convívio familiar lhe causava ou o alívio que sentia quando vestia o casaco sobre o colete listrado quando era hora de voltar para casa. Desta vez, quando Malaquias abandonou o apartamento dos cunhados, acima da opressão dos sentimentos de culpa de não ter chegado a tempo de salvar a eles e a um dos gémeos deles, impossível dizer qual, sentia saudades daqueles tempos, da felicidade estampada, se não no seu, nos rostos de todos os outros, era o fim de uma era, causado pelos ventos do apocalipse Palhaço, a quem Malaquias jurara tratar da saúde muito bem tratadinha, ou não fosse ele Malaquias, o Sr. Dr., que não era, mas naquele caso, para todos os efeitos, era como se fosse.

Deixou o horror coagulado do apartamento dos cunhados e deslocou a sua pesada, de grandeza e estado espírito, pessoa através da cidade luminosa esticada nas praias douradas da Baía até à sua casa, nos subúrbios perfumados a cinco minutos a pé de locais bonitos em todas as direcções, e onde, quase sem surpresa alguma, não encontrou a polícia à sua espera. Era como se ele, um assassino tido como muito perigoso pelos antigos colegas, não se tivesse evadido do Monte, cobrindo de hematomas o ego de muito rapagão insolente, e andasse por aí a monte ao volante do utilitário blindado do senhor director do estabelecimento prisional, Malaquias estava indignado, ou estaria caso estivesse para aí virado, com a falta de brio profissional duma instituição que, enquanto ele lá andara, mantinha os seus padrões elevados e não se desleixava mesmo perante os desafios que uma sociedade moderna e violenta lhes jogava na cara. Assim como assim, aproveitou todo esse laxismo, era mesmo uma pena, e esgueirou-se ao coberto da noite escura para o interior tranquilo da casa onde os ecos felizes de tantas recordações conjugais lhe davam as boas-vindas sempre que metia a chave à porta. Desta vez, meteu o punho à janela da sala, as chaves tinham-lhe ficado no outro fato-macaco laranja padronizado, e como nenhum vizinho veio ver da algazarra que os vidros fizeram ao estilhaçarem-se sob o jab de direita do antigo campeão de boxe super pesos pesados da Academia de Polícia, Malaquias, o Foragido, encontrava-se em casa.

O banho de imersão que tomou foi longo e o tempo que demorou a secar e a pentear os seus cabelos vermelhos e a desenhar as curvas e as rectas perfeitinhas da sua barba bicolor foi por demais exagerado e quando adormeceu de borco no cadeirão de braços da cozinha o seu ressonar foi suficiente para que os vizinhos mais próximo achassem que a Câmara resolvera novamente fazer obras no bairro sem os alertar nem respeitar minimamente as horas a que as máquinas podiam avançar, nunca às quatro da manhã, de qualquer forma, e quando Malaquias, o Sonoro acordou, sol já alto e quente no céu, o pequeno-almoço que preparou para si foi evocativo dos banquetes de cristãos esfarrapados que os leões de Roma frequentemente degustavam nos tempos antigos. Bons tempos, os antigos, era a opinião de Malaquias, tempos em que conseguia vestir os seus fatos de bombazina sem ter de encolher a pança, suster a respiração, abrir um novo furo já na extremidade do cinto, teria ele engordado na prisão, seria uma coisa dessas possível, duvidada, ainda por cima sendo a comida da prisão tão sensaborona quanto era, o mais certo seria a roupa ter encolhido por ter ficado muito tempo pendurada no armário, ou a traça a devorar-lhe o diâmetro, algo nesse género, a verdade era que as calças azul marinho Emporium Armani, se o botão rebentasse, ainda matavam alguém, e a camisa branca Chitãozinho & Xoróró só com muita boa vontade lhe enfardelava a hipérbole da sua pança e a gravata Marie Claire vermelha por pouco não se enrolava no seu amplo gargalo e o colete listrado da mesma cor e marca das calças mal se abotoava à altura do umbigo, tal como o casaco, no sovaco direito do qual escondia uma pistola oculta, prima da mula, necessitava de grandes quantidades de incentivo para não se romper entre as omoplatas, verdadeiras placas tectónicas no esqueleto improvável de Malaquias, o, por tudo isto e indubitavelmente, Grande, que, uma vez pronto, nasceu de lado e de pés para a frente pela porta da sua casa direitinho para o novo dia com ganas de matar um Palhaço.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 29/03/2010
Código do texto: T2165458
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