CÉU VERMELHO

Sinto uma forte sensação de enjôo. Quero abrir meus olhos e gritar, mas não tenho forças. Meu corpo senil parece estar pregado fortemente ao chão. Forço minha mente para buscar lembranças remotas, porém as veredas de minhas memórias encontram-se bloqueadas. Preciso me encorajar, não quero morrer aqui.

Brandamente vou abrindo os olhos. Este lugar é escuro e lúgubre. O som do silêncio me corrompe intrinsecamente. Assim que meus olhos começam a se adaptar a ausência de luz, percebo ao fim da sala um frágil feixe de luz, provavelmente uma saída. Mas para ir até lá precisarei levantar-me.

Meu corpo parece mais pesado que o comum, a gravidade não é aliada de meu cansaço. Cerro os punhos e num impulso doloroso e árduo lanço-me a frente. Sucesso. Trôpego, me apoio nas paredes forradas de paralelepípedos gélidos. Milimetricamente no meio da sala há uma mesa decrépita, e em seu centro, um livro. Jogo me contra ela para alcançá-lo. Em sua capa há um nome escrito: Albert. - Sim, agora me lembro, esse é o meu nome.

Folheio todo o livro, mas para minha desolação, somente a capa e a primeira página estão escritas, o resto está vazio. Na página inicial há uma frase: "Siga a luz". - Como se eu não tivesse essa intenção! - Ao olhar à luz novamente, noto que está mais forte. Possivelmente minha vista já deve estar totalmente adaptada a escuridão.

Paulatinamente, e apoiado às paredes, vou seguindo a claridade. Já consigo ver o que estou vestindo: uma calça jeans, dois tênis velhos e uma camiseta branca, sem logo algum. Preciso deixar os olhos entreabertos, a claridade parece lancinar meu cérebro com voracidade. Apesar de não me lembrar do passado, acredito que nunca havia estado num ambiente com um silêncio tão profundo e perturbador.

Então era em uma caverna que eu estava. E agora, um bosque debaixo de um céu luminoso e rubro é a paisagem que assisto. - Ao menos o som de pássaros seria propicio para a situação. - Olho ao redor no intuito de encontrar algum animal, ou quem sabe... Insetos. Mas nada. Estranhamente tudo é silêncio. Quando enfim decido adentrar a floresta, sinto minhas mãos queimarem.

O livro está vermelho e fervendo. Não suporto e jogo-o no chão. Ajoelho-me em frente a ele e sopro. - Até poderia deixá-lo aí, mas algo me diz que ele ainda será útil nesse lugar hostil. - percebo que a sua cor avermelhada já retornara ao cinza e opaco de antes. - Ao analisar suas páginas, se não haviam sido queimadas, percebo que a segunda, antes vazia, agora possui uma nova recomendação: "Siga em frente até o rio das almas lascivas".

Acho que não tenho escolha. Minha única voz, mesmo que muda, era a do livro. Ele se parecia com uma bíblia. Daquelas que todas as avós possuem exibidas em seus quartos, mas nunca usam. - Sim, era grande e pesada! - Com ele debaixo do braço adentro ao matagal. Apesar de andar cambaleando, preciso ser atencioso. Nesse lugar tudo é possível. - Espere! O que é isso? As árvores parecem com pessoas!

Os formatos dos troncos lembram rostos humanos. Há fendas no local dos olhos e boca, e uma saliência protuberante onde seria o nariz. Isso é assustador, parece que estão me vigiando. - Tenho certeza que se forem pessoas, estão tristes. Claramente é esse o semblante delas. - Segui andando por quase dez quilômetros. Pensei que nunca chegaria, mas enfim, vejo o tal rio. Aproveito também para ver como é minha aparência, pois nem disso me recordo.

O rio é vermelho, não igual ao sangue, mas como um suco de morango colorido artificialmente. Mesmo assim, ele reflete bem e poderei me ver. Pela fraqueza, chegou a passar pela minha mente que eu era mais velho, porém devo ter uns 25 anos. Possuo pouco cabelo, quase careca. - Acho que vi alguma coisa se mover no fundo do rio. - Aproximo meu rosto mais próximo e fixo bem os olhos. - Pluft! - O rosto de uma pessoa sobe em uma velocidade voraz e quase toca minha face. Caio para trás de sobressalto. Meu coração acelera a uma taquicardia quase mortal. Há uma distancia maior, vejo que não é apenas um corpo, são vários, ou melhor, milhares!

Todos estão nus e deformes. Estão grudados uns aos outros como se estivessem numa grande orgia. Alguns não possuem braços, outros, olhos. E por incrível que pareça, alguns são apenas troncos. Aquelas pessoas parecem que caíram em alguma espécie de ácido de tamanha deformidade e repulsão. Estranhamente, apesar de tudo elas apresentam uma sensação de prazer lascivo. Enquanto me distraio observando a cena, novamente sinto minhas mãos se abrasarem, acho que novas instruções irão vir.

"Seguir a leste ao encontro do guardião", essa era a nova ordem. - Espero que esse guardião seja alguém com quem eu possa conversar. - Caminhei muito pela margem do rio, e pela primeira vez, sem nenhum lugar para escorar. Muitas vezes achei que não agüentaria e me jogaria no rio, no meio daquela massa de pessoas, que aos milhares, formavam apenas uma. - Na verdade, várias dessas tentativas de me jogar seriam propositalmente. Apenas para saciar meu desejo sexual. Devo ser um monstro por pensar isso. - Após mais uns três quilômetros, comecei a ter uma sensação de que estava sendo seguido.

Agora era visível. Um homem barbudo, muito forte, com uns dois metros de altura e trajando uma armadura medieval estava me seguindo. Enquanto eu andava em campo aberto, a beira do rio, ele se camuflava pelas árvores da floresta. Quando menos percebi, ele já estava a minha frente me guiando. Tentei me aproximar mesmo cambaleando para um diálogo. Quando tentei dizer um olá, não saiu som algum. Na verdade, para meu desespero, eu não possuía língua. Alguém a cortara. Isso me desestimulou tanto que resolvi apenas me limitar a segui-lo.

Uma nova estrada surgiu em direção à floresta. Seguimos por ela. Ainda tive tempo de dar uma última espiada no rio dos lascivos. Dessa vez caminhamos pouco, acho que não mais que um quilômetro. E num grande espaço oblongo de terra seca, um pouco menor que um campo oficial de futebol, em seu centro estava um velhinho. Ele vestia uma túnica bege e velha. Estava ajoelhado, e seus dois braços encontravam-se presos por correntes amarradas em toras grossas fixadas ao chão. O guardião parou há uns 200 metros e cruzou os braços. Como num ato de instinto, passei pelo guardião e segui até o velho. E foi o idoso quem proferiu as primeiras palavras que ouvira desde que acordei nesse lugar.

- Olá jovem viajante, sei que deve estar confuso em como veio parar nesse lugar, mas não se preocupe, vou lhe explicar. Há muitos anos atrás eu comandava esse mundo com paz e compaixão, até o dia em que o anjo da morte veio e destruiu tudo e a todos. Os que sobreviveram tiveram suas línguas cortadas, e eu, como rei, acabei aprisionado aqui. O único modo de restabelecer a paz é matar o anjo e recuperar a chave.

Eu não podia falar, mas concordei com a cabeça. A sua presença ali milagrosamente havia me revigorado. Agora conseguia me movimentar de forma arguta, era uma sensação ótima.

- Você pode estar se perguntando, por que você. Mas acredite, no final saberá, e poderá enfim voltar para casa. Enviarei como auxílio em sua jornada todo o meu exército de guerreiros. Apenas siga o guardião, quando chegar a hora ele lhe dirá o que fazer.

Concordei novamente, e fui em direção ao guardião. - Tudo estava tão confuso que só queria ir para casa. Se esse era o único jeito, não havia como discordar. - O homem corpulento me levou por várias regiões sombrias. Lugares com pessoas empaladas, estacas presas ao chão que perfuram o ânus das vítimas, que deitadas sobre elas, sangram até a morte. Em outras regiões, vi porcos com rostos humanos, que pareciam implorar pela vida enquanto pessoas os destripavam apenas por diversão. Após várias semanas, enfim estávamos perto do anjo.

Uma luz rubra muito forte saía dele, e seguia a uma distância de quilômetros. Ele possuía uns cinco metros de altura e segurava uma espada igualmente grande. Não consegui ver seu rosto, a luz era muito forte. O guardião entregou-me uma faca pequena e suja e mandou que o exército atacasse o anjo. Nós estávamos em um infinito de soldados, poderia dizer 100 mil, mas tenho certeza que era bem mais. O anjo se armou e se iniciou uma batalha épica. A cada golpe o anjo aniquilava uns dois mil soldados. Tudo indicava que o anjo sairia vitorioso, pelo menos até o guardião me dizer:

- Vá, ele não pode te ver. É a sua chance.

Caminhei vagarosamente em direção a ele, minhas pernas tremiam. Todos ali eram enormes, e eu, diminuto com meu um metro e setenta. Pisava sobre os corpos dos soldados mortos, enquanto um vento forte seguido de uma sensação estranha tomava meu corpo. Fui por trás do anjo e cortei seus tendões, ele caiu causando um grande estrondo. Foi o suficiente para que o resto do exército desferisse golpes mortais sobre ele. Quando o anjo já estava agonizando no chão, todos abriram espaço para que eu lançasse o golpe final. Aproximei-me, ergui a faca e tremi por um momento ao ver sua expressão lívida.

- Não faça isso... você não enten.... - clap! - A faca perfurou facilmente seu peito.

- Quero sair logo desse lugar. - Pensei.

O guardião arrancou o coração do anjo com as próprias mãos. Levei um susto. E agora, sentindo pena do anjo, desviei o olhar.

Todos comemoravam muito. A viagem de volta foi de muita bebida e festejo. Só aí então percebi que muitos como eu não possuíam língua. Ao chegar até o velho preso, o guardião colocou o coração do anjo bem próximo a sua boca. Ele mordeu como se estivesse faminto. Por um momento fechou os olhos como se estivesse morto, mas pouco depois, seu corpo começou a transmutar-se. Onde havia rugas e pele flácida, começava a surgir um monstro de proporções gigantescas. Em poucos minutos um ser vermelho como sangue, de uns 30 metros de altura, e com chifres como os de um bode surgiu na pele no velhinho indefeso.

- Obrigado soldado por conquistar minha liberdade. Eu sou Lúcifer, ou para alguns, o Diabo. Aquele anjo que matou era Gabriel, ele além de proteger a entrada para o mundo de cima, ainda guardava a chave que me aprisionava aqui durante mais de dois mil anos. Como você era uma pessoa pura, o anjo não sentiu sua presença, o que permitiu a aproximação. - Vociferou.

Comecei a chorar sem parar, não sentia mais meu corpo, havia libertado Lúcifer. Eu não sabia, não queria ter feito aquilo. Antes de o guardião rir para mim e enfiar uma lança em um dos meus globos oculares, escutei o Diabo dizer-me enquanto partia para a superfície:

- Albert, bem-vindo ao Inferno.