O PORÃO DE LORENA

Lorena não era uma criança feliz. Com apenas 12 anos, podia dizer que possuía tudo que qualquer garota da sua idade desejaria, exceto por uma coisa, a visão. Lorena não enxergava. Como se isso já não fosse algo tenebroso, a menina há poucos dias havia perdido a mãe num acidente de carro. Desde então, Lorena não saia mais do porão de sua casa.

O porão da velha mansão na Rua 15 era grande e gélido. De noite, era possível ouvir o som dos ratos que se arrastavam pelo chão. Lorena não ligava, o mundo sem a mãe havia perdido o sentido. A menina Passava todo o tempo alisando sua comprida cabeleira loira na penumbra, escuridão que para ela, não fazia diferença.

Em certo dia, algo insólito aconteceu, enquanto a menina estava encolhida no canto a chorar, pôde escutar vozes e risadas ressoarem do outro lado da porta. Pareciam crianças brincando. Com o passar dos minutos, era possível distinguir os meninos que sorriam do garoto que chorava. Lorena tentava ouvir com atenção aos ruídos. De repente, a porta do porão se abriu e logo rapidamente fechou-se. Jônatas foi arremessado para o escuro, caindo bem ao lado da menina. Enquanto ela ouvia seu choro baixinho, percebeu que os demais garotos haviam deixado a mansão.

Lorena sabia que estava escuro e que ele não poderia vê-la. Então, tratou de começar um diálogo em sussurros:

- Ei garoto, não chore. Por que te jogaram aqui?

- Sou muito pequeno, os meninos mais velhos tomaram meu dinheiro para o lanche, e depois, me lançaram aqui, no escuro. – respondeu o menino em soluços.

As duas crianças começaram ali uma grande amizade. Todos os dias depois da aula, Jônatas ia visitar sua nova amiga. Conversavam durante horas e horas, os assuntos não tinham fim. Lorena queria saber tudo o que se passava do lado de fora daquele tenebroso porão, onde enxergar ou ser privado da visão não fazia diferença.

Certo dia, o garoto tardou a chegar. Alguns meninos mais velhos haviam pegado Jônatas. O menino teve seu lanche roubado e mais que isso, estava sendo humilhado perante muitos alunos. Ovos, farinha e outros alimentos estavam sendo arremessados no jovem. Tal tortura parecia não ter fim.

Lorena sabia que algo estava acontecendo, afinal, sempre que o garoto não poderia comparecer ao porão ele a informava com antecedência. Muito disposta, a menina decidiu sair do porão. Mesmo cega, foi se apoiando nas paredes até alcançar a porta. Ao abri-la, uma luz radiante a tocou. Ela percebeu que, pela primeira vez em sua vida, estava enxergando.

A menina se lembrou do nome da escola do garoto, Colégio São Tomas de Aquino. Seria fácil localizá-lo, pois era lá que ela havia estudado até a morte de sua mãe. Lorena andou pouco menos de duas quadras, quando avistou o colégio. Ela observou que todos da escola estavam se direcionando para um lugar no pátio e resolveu segui-los. Chegando ao destino, avistou um menino preso no alto de uma árvore, estava coberto por sujeiras. Ela não teve dúvida, era o pobre Jônatas.

A menina como um trovão gritou aos prantos:

- Parem com isso!

Todos da escola em uma fração de segundos miraram seus olhos para ela. No lapso em que os alunos a viam, se colocavam a correr desesperadamente. Tropeçando uns aos outros. Lorena estava sem nariz. Seu olho direito balançava trôpego ante seu rosto, enquanto o esquerdo era apenas um buraco vazio. Sua pele estava quase toda corroída pela umidade do porão, e para piorar, sobrepunham poucos fios de cabelo em sua cabeça e nenhum dente preenchia sua boca, sem lábios.

Jônatas gritava desesperado. Tinha medo, entretanto, estava emaranhado à árvore e não podia fugir. Lorena se aproximou paulatinamente e disse algumas palavras:

- Jônatas, sou eu, Lorena. Vou te ajudar a descer.

O menino reconheceu a voz de sua amiga do porão, que apenas ouvira no escuro. Aos poucos seu medo foi cessando.

Mesmo com dedos deteriorados, Lorena ajudou-o a descer. Assim que Jônatas estava liberto, alertou um pouco sem jeito a situação da menina. Ela que ao perceber a realidade, chorou. Lágrimas escorriam de seu rosto deforme. Mas antes que a última lágrima tocasse o chão, Jônatas avistou uma luz vinda do céu. Provavelmente seria um anjo, pelo menos é o que acreditava em sua simples concepção de criança.

Essa luz parou muito próxima aos dois, e vociferou:

- Lorena, estava a sua procura. Você estava junto de sua mãe no acidente, e como ela, não sobreviveu. Muitos anjos a procuraram, entretanto, estava oculta para nós. Tenho que levá-la agora. Venha!

- Espere! – Indagou Lorena.

A menina foi em direção a Jônatas, deu-lhe um forte abraço e num tom de despedida disse:

- Adeus

- Adeus – respondeu o menino com lágrimas nos olhos. Não era fácil ter de se despedir de sua única amiga.

O velho porão da rua 15 havia sido o responsável pelos anjos não acharem a menina. Isso, até o momento em que uma amizade verdadeira, a fez voltar para luz.

Lorena e o Anjo lentamente desapareceram entre as nuvens. Jônatas estava triste, mas sabia que ela não poderia ficar entre os vivos. Com essa tristeza, o garoto partiu para casa.

A partir do dia seguinte, Jônatas passou a ser mais respeitado na escola, sendo conhecido como o rapaz que expulsou bravamente o monstro da escola. Mesmo com o passar do tempo, o menino nunca pôde esquecer sua amiga “zumbi”, afinal, fora ela a grande responsável por Jônatas não receber mais traquinagens na escola.

Dez anos depois, dois garotos adentraram novamente a velha casa da rua 15. A casa estava mais obsoleta que nunca. Os meninos brincavam de detetives, andavam por toda a casa. Num certo momento, se depararam com uma porta decrépita. Os meninos com um pouco de receio, abriram a porta e entraram. Desceram tacitamente as escadas, degrau por degrau. Quando enfim terminam o último, o garoto de trás gritou em zombaria:

- Buuuu!

Ao mesmo tempo em que a criança proferia o som, acima deles as luzes se apagavam e a porta se fechava com extrema violência. Os garotos estremeceram. Não era possível mais enxergar um palmo à frente. Desesperados, os meninos correram em direção a porta. Gritaram, choraram e enfim, se cansaram. Em uma rápida conversa, decidiram procurar alguma ferramenta que pudessem usar para arrombar a porta. Enquanto procuravam, o silêncio perdurou pouco. Na total penumbra, uma voz trêmula soou muito próxima a eles:

- Olá, vocês querem ser meus amigos?