A Revoada dos Corvos (1ª partte)

A tarde de inverno de cintilâncias medievais fulgurava em um céu irrepreensivelmente azul. Poucas vezes presenciara um dia tão resplendente e agradável, de temperatura amena, tendendo para um frio levemente melancólico, como é de meu gosto. Ainda mais magnífica e comovente tornava-se aquela tarde ensolarada pelo fato de eu estar no campo, entre animais e plantas, a léguas de distância de qualquer pútrida região urbana.

Dentro de poucos minutos chegaria à rústica e singela residência da senhora Arnélia, uma idosa e estranha camponesa que vivia em uma pequena casa em meio a uma extensa mata. Dona Arnélia morava sozinha, na companhia somente de inúmeros animais, entre domésticos e selvagens, os quais ela tratava com profundo e até exagerado carinho. Seu esposo havia falecido há décadas, mas, apesar de sentir falta de sua companhia, a senhora dizia-se feliz em sua inusitada solidão, afirmando não passar dificuldades no campo, uma vez que possuía uma série de conhecimentos que muito facilitava sua vida...

Isso tudo soube através da conversa que travamos em sua sala de estranha atmosfera, e tive um também estranho pressentimento ao ouvi-la falar dos conhecimentos que possuía. Não gostei ao intuir que havia algo de furtivamente oculto por trás daqueles “conhecimentos”, certamente ligados a mistérios que pululavam naquela região isolada... Era muito inquietante a sensação que o lugar me transmitia... Contemplando-se aquele bosque, dir-se-ia que ele era como qualquer outro, talvez um pouco mais belo, mas nada além disso. No entanto, em nossa psique, não era essa a impressão deixada. Inexplicavelmente havia algo de enigmático naquela ampla região rural.

Quanto ao interior da casa, a sensação de esquisitice era a mesma. Pequena mas confortável, possuía uma antiga mobília, sendo bastante limpa e acolhedora, com vários vasos de plantas em todos os cantos. Nada de anormal, a não ser, talvez, pelo imenso número de quadros de antigas fotos e pinturas. Creio que as fotos eram de ascendentes, como pais, tios, avôs, e de seu marido. Dona Arnélia não tinha filhos. Quanto às pinturas, havia algumas muito diferentes de tudo o que eu conhecia, mesmo sendo um grande apreciador das artes. Contudo, volto a ressaltar que todo o ambiente aparentemente normal da casa sugeria uma anormalidade intrigante, ainda mais pelo fato de ser inexplicável. Paradoxalmente, eu me sentia muito bem naquela residência e, ao mesmo tempo, um pouco nervoso, sem nenhuma razão aparente, sensações dificilmente compreensíveis.

Ademais, a própria Dona Arnélia irradiava esse mesmo tipo de sugestão. Era muito simpática, agradável, atenciosa, rindo a todo instante, mas não sei dizer exatamente que tipo de estranheza sua fisionomia e comportamento a mim sugeriam. A risada... havia algo na sua risada que me inquietava... Havia nela uma tênue ironia, um sutil deboche anomalamente espontâneo e constante, mas não afirmo com certeza, talvez fosse só uma impressão minha. Além disso, a todo o momento, também sem a mínima razão, eu sentia-me sendo observado por alguém ou por algo...

Após conversarmos assuntos de pouca importância, pedi a Dona Arnélia para dar uma volta por suas terras, conhecer o que havia em suas misteriosas matas. Ela consentiu imediatamente, mas disse para cuidar-me dos inúmeros seres que a mata ocultava e alertou-me sobre um lago que existia no interior do bosque. Segundo a senhora, o lago era muito profundo e perigoso, e seria melhor que eu não me aproximasse de suas margens, que eram um tanto escorregadias, finalizando suas advertências com mais um de seus irritantes risos. É claro que o fato de saber que havia um lago no interior da mata fez com que uma pessoa extremamente curiosa como eu saísse à sua procura, ignorando os alertas de Dona Arnélia. Até pelo contrário, fui ainda mais excitado pelos mesmos. Inclusive desconfio que ela mencionou sobre o lago justamente com a intenção de despertar meu interesse por ele...

E conseguiu. Fui penetrando mais e mais na densa mata em busca do lago, sempre com aquela canhestra impressão de estar sendo observado, o que fazia aumentar meu nervosismo. Olhava para os lados com o intuito de ver alguma coisa, mas, fora aves e outros animais nativos, nada divisei. Entretanto, havia momentos em que eu tinha a intrigante sensação de ter visto alguma coisa se escondendo furtivamente atrás das árvores... Prosseguia, apesar de certo medo, no ambiente estranho daquela floresta, sem nunca saber definir o que é que eu julgava haver de estranho, de insólito na mata, mas minha intuição dizia-me que havia algo e que iria se revelar em algum momento.

Devo ter caminhado por mais de uma hora entre as imensas árvores solenes, que aparentavam querer dizer-me alguma coisa no ambiente enevoado e espectral. O sol baixava e o frio se intensificava, quando divisei através da vegetação o lago, que devia ser ao que Dona Arnélia se referira. Lentamente, aproximei-me de suas margens, não sem antes perceber que havia alguns urubus, ou corvos, como entre nós os urubus são chamados, pousados em altas árvores à beira das águas. Notei que eles me observavam fixamente. Porém, tinha algo mais me observando, o que percebi ao ouvir a irritante risada de Dona Arnélia. A senhora aproximou-se com um irônico sorriso, declarando que estava preocupada comigo, pois temia que, mesmo com suas advertências, eu fosse em direção ao lago. Talvez fosse só uma sugestão de meu medo, mas havia um ar de insinuante deboche na fisionomia da velha que me infundiu calafrios...

Perguntei à idosa senhora se estaria me seguindo e se seria ela que se ocultava atrás das árvores quando eu tentava identificar o que é que me observava. Ela garantiu que não me seguira, apenas tivera a intuição de que eu poderia passar por algum perigo e, por um atalho que somente ela conhecia, chegou rapidamente ao lago. Após, soltou mais uma de suas risadas, acrescentando em seguida, em tom de absoluta naturalidade, que as águas daquele lago possuíam um poder mágico, qual fosse, o de refletir o verdadeiro interior do ser humano, o aspecto de sua alma. Conforme Dona Arnélia, isso somente aconteceria, no entanto, quando a água fosse retirada do lago e levada para regiões urbanas.

Dito isso, a velha e esquisita senhora retirou de uma sacola que trazia consigo um pequeno vasilhame com o qual se acercou do lago e o encheu com suas águas frias e turvas. Em seguida, fechando hermeticamente o recipiente, entregou-me ao som de mais outra risada enervante e acrescentando que eu levasse a água comigo e experimentasse na cidade os seus supostos poderes sobrenaturais...

Então, convidou-me para retornarmos à sua casa, pois a noite caía rápido no inverno, e ali, naquele local específico da mata, eu não estaria seguro, uma vez que coisas inimagináveis se desenrolavam ao longo das sinistras horas noturnas... Por mais que eu insistisse, rindo muito e me deixando mais desconfiado e impaciente, Dona Arnélia recusou-se terminantemente a esclarecer o que é que ali ocorreria durante a noite invernal. No entanto, ainda lembrei dos misteriosos corvos pousados nos galhos das altas árvores e voltei meu olhar a eles. Permaneciam lá e continuavam mirando-me de forma fixa, ao menos foi essa minha impressão.

Durante o percurso de volta à casa de Dona Arnélia, novamente senti-me sendo observado, vigiado. Assim, obviamente, não poderia ser a velha, como suspeitei a princípio. Mas não quis questioná-la, com receio de sua resposta... e das risadas. Mas sobre uma questão fui obrigado a interrogá-la: como deveria utilizar a água para testificar suas enigmáticas capacidades. Dona Arnélia, com muita tranqüilidade e sorrindo canhestramente, esclareceu que eu deveria colocá-la em um recipiente largo, como uma bacia, e tentar fazer refletir na água o rosto de uma pessoa adormecida, e somente se estivesse adormecida, caso contrário, não seria percebido nenhum efeito. Acrescentou que, de preferência, eu deveria procurar uma pessoa que possuísse um comportamento que todos considerassem irrepreensível, exemplar, alguém admirável por sua bela personalidade e pureza de sentimentos. Garantiu ainda que eu ficaria surpreso, se não chocado, com o que veria refletido na água. Concluiu dizendo que eu deveria, para os resultados serem melhores e mais seguros, escolher uma noite de lua cheia para o experimento.

Ao chegarmos, sem delongas, pois já era quase noite, e queria retornar à cidade antes do amanhecer, despedi-me de Dona Arnélia, não sabendo definir se me sentia atraído ou repelido pela velha senhora, enquanto ela espargia uma seqüência arrepiante de suas sarcásticas risadas, pelo menos essa foi a impressão que tive...

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 29/08/2006
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