A Revoada dos Corvos (2ª parte)

Saíra das terras de Dona Arnélia levando a estranha água do lago. Antes da aurora, caminhando rápido, já havia chegado à minha casa na cidade e guardado o precioso líquido em um local seguro. Durante meu retorno, refleti em todas as pessoas de que poderia ter o reflexo de seus rostos adormecidos e decidi que a ideal seria uma moça bastante conhecida minha e tida como uma jovem quase perfeita, sincera, bondosa, amiga, fiel...

Eu e Suzana (esse era seu nome) pertencíamos a um mesmo grupo de amigos. Sabia que dentro de um mês haveria uma janta na casa de seu namorado, também meu conhecido. Verifiquei no calendário que a data da mencionada janta não cairia em uma noite de plenilúnio. Porém, obtive com meus amigos a postergação da data para cerca de uma semana, justamente para uma noite de lua cheia. De forma que passados os dias, a janta realizou-se conforme o planejado.

Na noite fatal, onde, é claro, encontrava-se Suzana, já realizadas as refeições, e estando todos nós em animadas conversas regadas a vinho, em um momento de distração geral, coloquei furtivamente algumas gotas de um possante sonífero na taça de Suzana. Em questão de minutos, ela caiu em um pesado sono e foi levada a seu quarto por seu namorado, e, após, a conversa continuou transcorrendo normalmente. Aguardei alguns minutos, e então, aproveitando-me que todos estavam já sob os efeitos da bebida, dirigi-me cautelosamente a meu carro, peguei uma sacola onde estava o recipiente com a água do lago e uma bacia e parti sorrateiramente para o quarto de Suzana.

A porta se encontrava entreaberta, e penetrei no aposento tentando agir o mais rapidamente possível. Suzana dormia um profundo sono. Despejei a água do lago na bacia, coloquei esta sobre um pequeno banco que ali havia e aproximei-a do rosto da moça. Mas para que fosse possível refletir sua face, como não poderia inclinar a bacia, tive que inclinar seu rosto. Cuidadosamente, ergui a cabeça adormecida de Suzana e direcionei-a para acima da bacia e, enfim, consegui o reflexo de seu rosto. O que vi na água foi tão chocante e violento que de chofre acabei largando bruscamente a moça na cama e ainda derramei todo o conteúdo da bacia sobre o tapete. Felizmente, Suzana não se acordou e ninguém subiu até o quarto.

Mas ali, naquela água diabólica, o que vi refletido não era exatamente a face da admirável moça. Era uma imagem hedionda, repulsiva, que parecia se projetar para fora da bacia. Vi um rosto demoníaco, que vagamente lembrava Suzana, carregado por uma expressão insaciável de volúpia e desejo. Havia algo como uma multiplicidade de faces, todas com alguma coisa de familiar com Suzana, mas que aparentavam uma pavorosa independência, expressões de torpes defeitos e fraquezas, abismais segredos inenarráveis, deformações monstruosas de uma alma atormentada pelos mais insuspeitáveis desejos violentamente oprimidos. De um daqueles rostos tenebrosos tive a impressão de projetar-se uma viscosa língua que buscava meu rosto. Aquela cena fantástica lembrou-me assustadoramente o quadro do famoso personagem de Oscar Wilde, o vaidoso Dorian Gray.

Sem tempo para refletir, peguei o recipiente que trouxera a água e a bacia, coloquei-os na sacola e, com cuidado para não ser visto, saí da casa sem me despedir. Nem sei o que aconteceu posteriormente na janta, pois no dia seguinte parti alucinado para as terras de Dona Arnélia, precisava conseguir mais daquela água miraculosa. Encontrava-me em um estado tão alterado de consciência que nem ao menos passei pela casa da velha, entrei direto em suas terras, até porque queria evitar ouvir mais uma vez aquelas odientas risadas que me sugeriam um agourento deboche ao recordá-las. Seguindo a trilha entre a mata, e sempre com a fatídica impressão de estar sendo observado, cheguei até o lago, quando a tarde já principiava a declinar...

Detive-me por um instante, para ver se via ou ouvia algo de suspeito, talvez Dona Arnélia estivesse outra vez por ali. Contudo, fora os sons naturais da mata, nada mais verifiquei. Lembrei-me nesse instante dos corvos pousados nas árvores, à margem do lago, mas dessa vez eles não estavam ali.

Então, aproximei-me da beira daquela misteriosa formação lacustre e, com um recipiente que levava, tentei colher um pouco da água. Porém, nesse momento, ao olhar para a plácida superfície do lago, pude vislumbrar o reflexo de um sem-número de seres de aspecto diabólico, que me cercavam com fisionomias de soturna ameaça. Imediatamente, olhei ao meu redor e não vi absolutamente nada, havia somente o reflexo nas águas. Intrigado e com medo, aproximei-me mais do lago para tentar ver melhor o que poderia ser aquilo, quando um par de braços não-humanos emergindo subitamente das águas puxaram-me para dentro delas.

Lembro-me de ter submergido naquelas águas escuras e turvas, quando, sem mais nem menos, como penetrando em um pesadelo, vi-me em um ambiente não-aquático, porém terrestre, extremamente obscuro e de uma pesadíssima atmosfera aflitiva e angustiante. Ali havia alguma categoria doentia e amarelada de luminosidade, cuja fonte não pude identificar, que foi crescendo gradativamente, até que me permitiu discernir o que se encontrava imediatamente ao meu redor. Então, assombrado, divisei, pelo que pude constatar na mórbida penumbra, um desfile estático de seres demoníacos, monstruosos, até arriscaria afirmar que eram os mesmos que havia visto refletidos nas águas do lago. Estavam todos imóveis, como se fossem estátuas, mas de uma aparência um tanto viva e horripilante. Não se ouvia o mínimo som, tudo permanecia no mais sepulcral silêncio.

O que havia mais ao fundo daquele tétrico ambiente não pude distinguir, mas à minha frente, onde a luz era um pouco mais intensa, percebia-se uma lúgubre escadaria que ascendia para algum local ignoto. De qualquer modo, como lá havia um pouco mais de luminosidade, dirigi-me até ela. Ao chegar aos seus pés, discerni quatro colunas negras, sendo que em cada um de seus topos havia uma cruz de um rubro sanguinolento. E bem no alto dessas cruzes estavam pousados quatro corvos que me olhavam de forma fixa e ameaçadora. Também pareciam estátuas, mas transmitindo uma terrível sensação de estarem vivos... Nesse momento, cri resolutamente que se tratavam dos mesmos corvos que tinha visto às margens do lago há mais de mês.

Olhando para o alto da escadaria, pude ter a definição que ela levava a um outro local mais iluminado e, assim, decidi galgar seus perigosos degraus. Ao atingir mais ou menos a metade de sua extensão, ouvi um som paralisante, parecia o ruflar de uma asa... Olhei para trás e vi os quatro corvos erguendo suas enormes asas negras e voando por entre a escuridão. Nesse instante, aparentemente despertados pela revoada dos corvos, todos aqueles monstros e diabos que pareciam estátuas movimentaram-se, olharam em minha direção e, numa fúria indescritível, começaram a subir a escadaria em meu encalço. Enlouquecido, subi o restante dos degraus e quando dei por mim estava novamente na floresta, ao lado do lago.

Meu desvario era tanto que nem lembro de como saí da escadaria e voltei à mata, foi tudo tão alucinante como um pesadelo absurdo em que mal consigo acreditar. Ao meu lado somente vi Dona Arnélia, que ria perturbadoramente de meu estado de quase demência.

Perguntei-lhe o que havia ocorrido, ao que ela respondeu-me, com uma irritante tranqüilidade ironicamente risonha, que eu conhecera mais uma propriedade sobrenatural das águas do lago... Seria ela a possibilidade de nos carregar para uma dantesca viagem ao inferno particular que todos levamos em nosso interior, mencionando por fim que tudo aquilo que existe dentro de nós possui sua correlação externa, e vice-versa... Em seguida, soltou mais uma de suas arrepiantes risadas...

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 29/08/2006
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