O AMOLADOR DE FACAS

“Amolo faca, tesoura e cutelo, aliso o fio, deixo o aço mais belo”. Assim se apresentava, aos gritos, o velho amolador de facas ao entrar em uma nova freguesia. Ele empurrava uma carroça humilde, de aros empenados, que emitia uns rangidos irritantes conforme se movimentava. O instrumento de trabalho era herança do pai, assim como o ofício, que passava de geração a geração, ao longo dos anos.

Ele vivia atormentado pela saudade de um tempo em que se sentia útil. Um tempo em que a durabilidade dos utensílios e o zelo destinado a eles compunham os alicerces necessários para o seu viver. Nos dias atuais, a futilidade e o descarte imediato contribuíam para o quase esquecimento do que ele aclamava como arte.

Por vezes, ele considerou a possibilidade de abandonar definitivamente seus dias de peregrinação por entre os vilarejos distantes e as ruelas dos subúrbios. No entanto, sabia que muito mais do que a força de uma missão a cumprir, ou a falta de outra habilidade, o que realmente lhe impedia de desistir, era o peso do fardo que sua linhagem lhe obrigava a carregar.

Enquanto se arrastava pelas vias de barro, chacoalhando a sineta com a mão calejada, repetindo incessantemente o pregão até perder a voz, um pensamento insistia em lhe alvejar como o ferrão nocivo de uma abelha. Sua atenção era quase exclusiva a algo que parecia lhe circundar, embora não ficasse claro exatamente o que poderia ser. Ele vencia o percurso sem hesitar, mesmo com o cansaço a consumir cada gota de energia dos seus músculos. O suor encharcava seu rosto, levando ardência aos olhos sofridos. A tensão não lhe abandonava, pois ele sabia que o temor poderia converter-se em fato a qualquer instante.

Quando ele se sentia importante, na época em que lhe davam o devido valor, tudo ficava mais fácil. Suportar a agonia lancinante era possível. Eram muitas lâminas. Inúmeras. Diferentes. A cada uma dispensava especial atenção. Alisava o fio na pedra áspera até obter o melhor do que dele se poderia esperar. A turbulência em sua mente circulava como um leve brisa, não como agora, quando uma tempestade lhe açoita com golpes duríssimos, exigindo o máximo de sua sanidade.

Ele ficava cego. Pela dor. Pela angústia. Pela incapacidade. Pelo ódio. Seus dentes trincavam. Ele sentia o usual arrepio na espinha, o prenúncio do que estava por vir. “Amolo facas, tesouras, cutelos”. Ele repetia a ladainha como uma fuga de si mesmo, quando sua visão turva se deparou com uma senhora de idade avançada, talvez tão velha quanto ele mesmo. Ela esboçou um sorriso mutilado ao oferecer-lhe um facão de mato, corroído pela ferrugem.

Ele respirou descompassado, fazendo força para retribuir em educação. Suas mãos trêmulas tentavam manusear o objeto. Um pincel embebido em um líquido lubrificante deslizou sobre o metal. Um pé calçado com um sapato de solado gasto iniciou o trabalho no pedal de madeira. Então, a pedra em disco começou a girar, ganhando velocidade em resposta à força empregada pela perna.

Um chiado ressoava pelo ar conforme a lâmina dançava pela superfície áspera. Em poucos minutos, de maneira até surpreendente, a julgar pela aparência inicial da peça, a faca passou a ostentar um fio perfeito num brilho reluzente.

A senhora depositou algumas moedas no recipiente plástico da carroça. O velho agradeceu. Ele sabia o que viria a seguir, pois já tinha visto a mesma cena se repetir inúmeras vezes ao longo do tempo. Então, resignado, ele empurrou a fiel companheira pelo chão irregular, mas desta vez, sem fazer muito alarde.

A noite chegou, e com ela um grito abafado. As razões para a dolorida manifestação só seriam conhecidas na manhã seguinte. Com a descoberta do corpo estendido no ladrilho frio da cozinha. Um corte profundo na garganta enrugada tratava de lavar em vermelho aquele espaço para o qual a velha senhora ofereceu tanto apreço durante toda a sua vida.

Em muitos outros recantos, a figura do amolador de facas era tratada como um mau agouro. Um indício de algo ruim. Os rumores ganhavam força pelos comentários fervorosos. No entanto, naquele vilarejo, tal fato ainda era desconhecido, até aquele momento. Alguém levantou a suspeita sobre o infeliz. Dizia que o maldito não seria apenas um emissário de coisas ruins, uma ave agourenta a espalhar a peste por onde passasse. A voz que falava com tamanha veemência insistia que aquele velho, o mesmo que caminhara pelas ruas da vizinhança na noite anterior, era, de fato, um assassino.

A revolta se apoderou da turba aglomerada pelos arredores da casa da recém falecida. Gritos de ordem eram bradados. Ancinhos, pás e enxadas surgiram de todos os lados. Facões e foices exigiam o sangue daquele que conheciam tão bem. Logo, um exército marchou pelas trilhas barrentas seguindo o rastro das rodas tortas.

O velho amolador percebeu a presença em seu encalço e tentou empregar mais força do que suas debilitadas pernas poderiam suportar. Ele empurrava a carroça de forma atabalhoada. O rangido lembrava o desespero de um animal agonizante. O ritmo em seu peito insinuava que o coração estaria prestes a explodir. Ele ouvia os gritos e as ameaças cada vez mais perto.

Uma pedra mal posicionada pôs fim à sua tentativa de fuga. Uma das rodas dianteiras da carroça resvalou na saliência produzindo um solavanco que o levou ao chão. O céu se nublou diante de seus olhos. Inúmeras pessoas o cercavam. Ele implorava por piedade. Jurava inocência. Ameaçava de modo acusador. Vociferava contra a velha morta. Poucos notaram, mas suas últimas palavras se referiam a algo relacionado a não lamentação pela perda insignificante de uma vida. Ele desempenhava um papel importante, embora não fosse reconhecido por isso. Sua vida se resumia a carregar um fardo de um lado para o outro. Ele transportava em suas próprias costas um demônio de apetite insaciável, que drenava as almas dos sacrificados. Um mal que sua família deveria carregar por toda a eternidade em troca de um favor recebido há muito tempo.

O demônio, embora quisesse, não poderia andar por si só nesse plano, ele precisava, obrigatoriamente, de uma casca a lhe abrigar, e assim deveria permanecer. A não ser que alguém quebrasse o revestimento libertando-o para esse mundo. Algo semelhante ao que as lâminas enfurecidas faziam naquele momento.

Aquelas pessoas que empunhavam os objetos cortantes com tamanho ódio. Elas, cuja fúria era exalada pelos poros. As mesmas que continuavam a bater e a xingar, mesmo depois da vida ter deixado o corpo daquele que julgaram. Tais figuras ainda não sabiam, mas naquela mesma noite, quando o silêncio da escuridão abraçasse o vilarejo, elas veriam a terra rubra ser moldada pelos contornos de algo que ansiava há muitas eras por liberdade.

Algo, que agora, não se contentaria com apenas uma vida. E aquele vilarejo seria a primeira de suas paradas. Pois ele teria muitos outros lugares para visitar. Muitas opções para aguçar o fio das lâminas em sua boca.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 31/05/2010
Reeditado em 01/06/2010
Código do texto: T2291425
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