Malaquias (24 e Conclusão)

A noite, tendo mais uma vez derrotado as aspirações do dia, aguentava-se no céu de braço dado com o compacto manto de poluição que cobria a Cidade Baixa desde o ocidente onde a Número Sete descia vinda da Baía, até à antiga zona industrial transformada no paradeiro do vício e da iniquidade, cobrindo também o sul onde o velho caminho-de-ferro servia de divisa que se fazia necessária entre a cidade e a lixeira a que chamavam “depósito de monstros”, e o norte, o obsoleto centro administrativo abandonado às pressas para onde os fundadores haviam empurrado os serviços municipais e a maioria dos estabelecimentos de ensino, que era onde Tattoo se encontrava agora sentado no muro tombado das ruínas duma escola primária, aguardando inquieto, impacientemente à espera que as suas promessas de vingança fossem finalmente cumpridas pelo descomunal polícia vindo do outro lado das colinas, mas já com um farnel próprio de loucura, e desaparecido no interior do edifício onde o Palhaço se escondia quando não andava por aí a comer crianças, como fizera à sua mana, de apenas seis anos, há tanto tempo atrás, Malaquias não regressava, Tattoo desesperava, mas um movimento subtil nas suas costas, embora não suficientemente subtil, fê-lo virar a cabeça para a mulher que se aproximava e que ele reconheceu de imediato, dizendo:

“Boa noite, minha senhora.”

“Boa noite.”

“A senhora é a esposa do meu amigo, não é?”

“Sim, sou.”

“A senhora é um fantasma.”

“Manda o roto à cara do nu.”

“O marido da senhora não me disse o seu nome.”

“Ele prometeu nunca mais o dizer em voz alta. Mas tu podes dizê-lo. Chamo-me Mimi.”

“Tattoo.”

“Tattoo?”

“A minha mana é que me chamava assim.”

“É bonito.”

“Ele entrou ali. O seu marido.”

“Foi?”

“Há algum tempo.”

“Há quanto tempo?”

“Algum. Estou preocupado.”

“Eu não. Conheço o homem com quem casei.”

“Ele cumpre as suas promessas?”

“Às vezes. Posso sentar-me ao teu pé?”

O miúdo acenou e indicou o lugar vago e sentaram-se os dois lado a lado em cima duma laje tombada do muro, a olhar para a porta escura que dava para o interior da escola primária onde Tattoo andara com a sua adorada mana, uma experiência cheia de felicidade e brincadeira até ao momento em que o Palhaço apareceu para estragar a festa, com os seus dentes e as suas garras e a sua fome devoradora, apanhando a mana primeiro, apesar de tudo o que Tattoo fez para evitar um desfecho inevitável, e quando o rapaz, tinha oito anos nessa época, e ainda tinha, se atirou ao Palhaço de raiva e desespero, o monstro matou-o também e depois Tattoo testemunhou em espírito todos os passos na imparável descida ao inferno dos pais, não sabendo explicar como ficara para trás, condenado a assombrar a sua antiga escola ao longo de longos anos, décadas, até que um dia, uma noite, viu o mesmo Palhaço regressar ao local do crime e fazer dele o seu covil, um lugar discreto num lugar perdido onde fazer a outras crianças o que ele fizera à sua mana e a si, tantos anos antes, as mesmas atrocidades e Tattoo nada podia fazer senão olhar impotente, vê-lo arrastar a pequenada para os corredores negros e as salas de aula destruídas onde ele aprendera a ler e a escrever e a somar e a subtrair e a multiplicar e a ser uma criança, vê-lo alimentar-se não só dos seus corpos miúdos mas também dos seus gritos, das suas almas, era assim que o Palhaço se mantinha vivo e aquele pesadelo caminhava eternamente na Cidade Baixa, chegando inclusivamente a aventurar-se para lá das colinas, a espalhar a sua maldade nos lugares onde ainda havia sol, o monstro era poderoso, e os esforços de Tattoo para o deter, ineficazes.

“Tentei, minha senhora.”

“És apenas um fantasma.”

Na Cidade Baixa ninguém ouvia coisa alguma pois nunca nada se passava, crianças não gritavam na noite, os seus pedidos de ajuda perdidos para sempre no vento mal cheiroso que soprava do depósito de monstros e anestesiava os corações daqueles que viviam ali à volta em prédios deixados devolutos pelas grandes corporações e resgatados pelos miseráveis que, por alguma razão, continuavam a afluir àquele buraco que era como uma cicatriz purulenta no rosto granítico do mundo onde ninguém queria saber do jantar volante do Palhaço, nem sequer do Palhaço, Tattoo sentia-se muito só, vazio, um fantasma no meio de almas penadas agrilhoado à semelhança de destino das vítimas seguintes duma criatura que resistia ao passar dos tempos, prosperar, até, medrava, enquanto que ele se extinguia.

“Estar morto é uma maçada, minha senhora.”

“Pois é.”

“Ninguém nos vale.”

“Pois não.”

“A senhora morreu há muito tempo?”

“Não sei. Em que ano estamos?”

“Não sei, minha senhora.”

Tattoo, com o tempo, começou a reparar que se tornava cada vez mais complicado para si manter a coesão do seu protoplasmático “eu”, sentindo que era puxado como que por um torvelinho invisível para o nada que engolira a sua mana e os seus pais no instante das suas mortes, e ele não querendo ir, não dando por cumprida a sua função no mundo dos vivos, se era que se podia dizer isso da Cidade Baixa, que era um mundo de vivos, ao qual ele se agarrava com todas as forças que lhe restavam, com tantas quanto se agarrava obstinado à esperança de alguma vez chegar ao momento em que conseguiria, sem dúvida por intermédio de um milagre, atalhar as atrocidades do Palhaço, não era já a vingança que o animava, era o desejo de pôr um fim ao pesadelo, seu e das outra vítimas.

“De todas que ele matou, porquê eu?”

“Porquê tu o quê?”

“Porque só eu fiquei para trás?”

“Não sei. Sou só uma dona-de-casa.”

“O fantasma duma dona-de-casa.”

“A falar com o fantasma dum miúdo com a mania que é, ou que foi, esperto.”

Esperto, talvez, mas o mais certo era que Tattoo tivesse antes sido casmurro, como a mãe dizia que ele era sempre que ele era realmente casmurro, que saía ao pai, nisso e noutras coisas, e que isso tinha tanto de bom como de mau, o ser-se casmurro, provavelmente a parte boa da coisa a mantê-lo na sombra do Palhaço, por muito que lhe custasse vê-lo pela frente e mal algum lhe poder causar, vê-lo fazer o que fazia sem nada poder fazer para o impedir, e muito diligenciou Tattoo, na Cidade Baixa onde os fantasmas nem a todos passavam despercebidos, onde havia quem o visse mas fizesse de conta que não via, ou que negava tê-lo visto por medo de estar a enlouquecer, um medo saudável e fora de tempo, pois a loucura era condição inevitável para se viver ali e, pelos vistos, para se demorar por ali depois de morto, e os piores eram aquele que o viam e o ignoravam, não lhe prestavam atenção, não queriam saber de palhaços para nada e de crianças a gritar aterrorizadas, a vida naquele lugar era difícil para toda a gente, viva ou morta, a esperança não tinha ascendência alguma na Cidade Baixa, não tinha até Malaquias entrar em cena, num momento muito avançado do terceiro acto em que de Tattoo restava já muito pouco e da sua fé menos que nada, o espírito do miúdo reduzido a fumos e a memórias dispersas pela antiga escola que passara também a ser para ele o lar, escuridão gélida partilhada com o seu algoz.

“Estava a morrer, minha senhora. Outra vez.”

“Pode-se morrer duas vezes?”

“Aqui na Cidade Baixa até mais, se calhar.”

Tattoo achava que morria de vez, não sabia há quanto tempo se sentia assim, mas sentia-se mais lá do que cá, acabado, fracassado, um miúdo de oito anos num corpo desvanecido de um fantasma de sessenta, sem forças e sem esperança, que era uma espécie de força, se calhar a única que o prendia à escola, e então sentiu uma energia incrível irradiar de não muito longe dali e foi essa energia que o atraiu para o “Sol Morto” onde foi encontrar um assombro enorme de homem a fazer perguntas sobre um Palhaço em particular e a comer coisas que um adulto não devia comer e, para seu alívio, este homem conseguia vê-lo e, para seu regozijo, este homem queria ouvir o que tinha para lhe contar e, cereja no topo do bolo, como o bolo que fora servido na escola primária no dia da festa estragada pelo Palhaço, este homem que viera de lá das colinas queria tanto quanto ele matar o monstro, e esta era a história, admitidamente muito resumida, que Tattoo contou a Mimi, englobando acontecimentos desde o momento em o Palhaço lhe comera a mana até ao marido do fantasma da dona-de-casa ter entrado na escola, já lá ia algum tempo.

“Quanto tempo?”

“Algum, minha senhora.”

“Não estou preocupada.”

Mal Mimi terminara de o dizer, Malaquias emergiu todo roto e ensanguentado, mas vivo, da porta escura, vivo como só homem vivo poderia parecer a um fantasma, ou a um par deles, cambaleando num passo que podia ser mais certo, paciência, ao menos ali vinha ele, e do Palhaço nem sinal, Malaquias a quem faltava agora o nariz e ambas as orelhas e diversas outras partes do seu corpo, em pior estado ficara a farpela, mas essa era apenas questão de vestir roupa lavada, as orelhas não voltavam a crescer e apesar de saber isso sorria, ainda que de forma estranha, mas era indubitavelmente um sorriso que se demorava no trejeito conhecido da sua boca larga, os olhos dele, ambos tendo sobrevivido, caindo no fantasma da sua mulher, sorriso que não se desmanchou até se chegar junto a ela e ela dizer-lhe:

“O estado em que tu vens…”

“Devias ter visto como ficou o outro.”

Tattoo a dizer-lhe:

“Matou-o?”

“Sim, puto. Toma.”

Malaquias passou-lhe qualquer coisa para a mão, o maxilar inferior do Palhaço.

“Prometeu-me o coração.”

“O coração…”

Malaquias interrompeu-se, arrotou e disse:

“…não era nada de especial.”

A falecida dizendo-lhe:

“Que fizeste tu?”

“O que faço sempre: tirei mais um criminoso das ruas.”

“E agora?”

“Agora? Acho que vou ficar.”

“Aqui? Porquê?”

“É uma cidade enorme onde a autoridade não é mais que um músculo definhado. Pessoas desaparecem todos os dias. As taxas de crime devem ser altíssimas. Nunca vi um lugar mais necessitado do amor bruto que só eu sei distribuir. Além disso…”

“Sim?”

“Tu estás aqui.”

“Feita fantasma.”

“Mas estás aqui. Aqui, e não do outro lado das colinas.”

“Não sei se posso ficar.”

“O puto ficou este tempo todo. Não ficaste, puto?”

“Fiquei, sim senhor.”

“Achas que podes ficar mais um pouco? Vou precisar de um ajudante. O trabalho é muito.”

“Acho que posso ficar o tempo que for preciso.”

“Vês? Se o puto pode, tu também podes.”

“Deves estar louco.”

“Só porque estou a falar com fantasmas?”

“Não, porque finalmente encontrámos uma criança de que tu gostas.”

“Ele está morto, não conta.”

Tattoo riu-se, Mimi riu-se e Malaquias sussurrou à Cidade Baixa:

“Preparem-se. Aqui vem Malaquias, o Grande.”

FIM

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 05/06/2010
Código do texto: T2300830
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