A outra Raça (Parte 2)

- O quê?! Que loucura é essa agora? – Matias não entendia nada.

- Que diabos estão fazendo? Deixem ele em paz! – gritou Sara.

- EU NÃO MATEI MEU FILHO, PORRA!!! – ele gritou, enquanto o policial o imobilizava e lhe colocava as algemas.

- Sr. Matias, o senhor me disse que não tocou na arma do crime em momento algum.

- E EU NÃO TOQUEI! AQUELA FACA NÃO ERA MINHA! POR QUE ESTÁ ME ACUSANDO, PORRA?! EU NÃO LIGUEI PRA VOCÊS!! VOCÊS MATARAM MEU FILHO!!! – ele atacou a mulher, mas foi imobilizado por mais dois policiais. Sara chorava ao ver a cena.

- Levem-no para o Centro Psiquiátrico. Acho que resolvemos esse caso.

- Esperem! Ele precisa de um advogado! – disse Sara.

- Sim, Sra. Sara. E terá. O caso não está encerrado ainda. Mas impressões digitais na arma do crime dizem muito. Eu não confiaria demais na inocência do seu amigo. Por hora... Ele precisa mesmo é de um médico.

Matias acordou. Estava preso por uma camisa de força.

Haviam duas luzes.

Brilhantes como o sol.

Ardentes como o inferno.

Desciam diretamente sobre seus olhos.

Ofuscavam sua visão, queimavam seu olhar...

- Me tirem daqui! Eu não sou assassino! Eu não sou louco!

Ele se levantou da cama em que estava e caminhou como pode, correndo o mais depressa possível em direção ao desconhecido. Havia uma porta aberta no final. Passou por ela e terminou na sacada do trigésimo andar de um enorme arranha céu no meio da cidade. Contemplou a funesta palidez da noite.

- O que está acontecendo aqui? – perguntou para si mesmo.

Ele olhou para trás e viu o que lembrava uma clínica psiquiátrica. Pessoas amordaçadas estavam presas em camisas de forças. Pessoas pálidas, esbranquiçadas. Pareciam pacientes em estado terminal.

- Que diabos de lugar é esse?

- Você está sendo tratado. – respondeu uma voz grave, logo atrás dele.

Matias se virou rapidamente e encontrou alguém sentado na mureta. Um senhor de cabelos grisalhos, fumando um cigarro. Parecia não se importar com a altura em que estava. Apenas observava Matias com curiosidade.

- Eu não sou maluco, que merda pensa que está fazendo? Me tira daqui!

- Como conseguiu fugir, Matias? – perguntou o homem, jogando o restante do cigarro lá embaixo.

- Como eu o quê?!

- Não se faça de desentendido, seu rato covarde! – o homem lhe atirou um soco na cara e Matias tombou para trás. O sangue escorrendo em seus lábios.

Ele foi agarrado pela gola da camisa de força.

- Como é que você foge de um sanatório de proteção máxima assim? E ninguém sabe de seu paradeiro durante anos? Dizem que já tinha até um filho!

- Eu não sei... eu não sei do que você está falando! – Matias sentia o hálito horrível de cigarro em sua face. – E acho muito curioso um sanatório tão distante do chão. Quantos internos se jogam por dia?

- Engraçadinho! – o homem o jogou contra o chão gelado.

Matias se arrastou para longe, enquanto era chutado com força. Sentiu os ossos da costela quebrarem.

- Você não mudou nada, morcego desprezível! – ralhou o homem, cuspindo em cima dele.

- Andou matando uma criança dessa vez, não foi? Se nós fôssemos descobertos por sua culpa, eu juro, seu insolente, que eu mesmo ia acabar com a tua raça. Tivemos que interferir em tudo para que a polícia não suspeitasse de nada. Tive que abandonar um projeto importante. Porque você é incapaz de se manter longe de um problema.

- Eu não sei do que você está falando! Me deixa sair daqui, por favor! Eu não sei de nada!

Uma mulher extremamente pálida apareceu na sacada, trazia uma prancheta nas mãos e vestia um uniforme de enfermeira.

- Doutor Rubens, estamos prontos para o programa de aperfeiçoamento da raça. A meta número 15 é de que não precisem se alimentar tanto como antes. Os sinais vitais foram melhorados, diminuímos os sintomas de anemia e...

- Obrigado, Chibi. Já podem começar com os que acabaram de chegar. E há mais alguns na sala 502 que acabaram de despertar, por favor cuide para mim. – disse Rubens.

- Sim, senhor. Com licensa. – a mulher o cumprimentou, indiferente à presença de Matias ali caído, e em seguida saiu.

Matias estava encolhido no chão, amarrado como um bicho, sentindo a dor e o sangue escorrer pelo rosto, até chegar em sua língua. Sentiu o gosto. A sensação sem igual. Era simplesmente maravilhoso. Entrou em extâse, sentiu calafrios.

- Então é aqui onde terminamos, Matias. – disse Rubens, o olhando com desprezo. – Lamento muito o maldito dia em que nós te acordamos. Você pôs toda a raça em risco. Agora terei prazer em te fazer voltar a dormir.

- Vai se foder, seu maluco! – gritou Matias – o que estão fazendo com aquelas pessoas? O que fizeram com meu filho? Seu desgraçado!

- Isso você mesmo pode me responder... Por quantos anos mais você pretende brincar de casinha, Matias? Quem é sua nova família agora?

Matias ficou em silêncio. O gosto de sangue era divino. A melhor sensação que já sentira, e isso incluía sexo. Lembrou de Sara. Das noites em que passaram juntos. Por que estava sempre com medo de se aproximar?

A verdade é que desejava ela. Desejava devorá-la. Precisava manter distância, era difícil se controlar. Lembrou de sua mulher. - Manter o controle era mais difícil ainda com ela, pois todas a noites ela estava em sua cama.

- Dessa vez... – o tom de voz de Matias mudou drasticamente. – em todos esses anos... dessa vez eu os amava, amava de verdade.

Ele começou a chorar enquanto falava.

- E mesmo assim sugou até a última gota. – zombou Rubens. – porque não voltou ao Instituto, Matias? Estamos aqui para ajudá-lo.

- Vocês não sabem o que estão fazendo! Acordando mais e mais a cada dia – ele apontou para as pessoas lá dentro. – você não entende, isso nunca vai parar, não podem pegar pessoas mortas e achar que tem uma raça superior sendo desenvolvida, são só assassinos famintos querendo caçar!

- Isso é o que você é, Matias. – disse Rubens. – Mas posso afirmar que os seus amigos voltam aqui regularmente, estão sendo monitorados. Não estão caçando por aí, muito menos matando por diversão.

Matias sentiu o sangue subir à cabeça ao ouvir Rubens dizer que ele matava por diversão.

- Eles não são meus amigos!

- Para alguém que mata o próprio filho, deve mesmo ser muito difícil ter algum amigo. – zombou o homem.

Matias estava chorando encolhido.

- Por que está chorando? Se acha que somos apenas protótipos de cadáveres assassinos, não devia estar chorando. Afinal, segundo você nós não temos alma.

Matias não respondeu.

- Alma, espírito, nada disso existe, meu rapaz. Nós criamos o mundo a nossa volta. Deus é cada matéria viva. – ele parou e respirou um minuto. – seu tempo acabou, Matias. Agora terei que desacordá-lo para o bem de todos nós.

Matias se levantou, sem mesmo tocar as mãos no chão. Seu corpo levitou até que ele ficasse de pé. A cabeça estava baixa, os cabelos cobriam a face, seus olhos estavam inchados. O peito doía. Estava mais gelado do que nunca. Agora tudo fazia sentido, tudo voltara ao normal. As lembraças em sua vida. Os sonhos durante a noite. Ele sabia quem era. Sabia de onde tinha vindo. Lembrava do dia em que tinha acordado para a Segunda vida.

Mas de sua curta primeira vida, ele jamais iria se lembrar. O amor que sentia pela mulher e pelo filho era o mais próximo da vida humana que conseguia chegar.

- Venha – disse Rubens, o chamando para dentro, mas ele ficou parado.

A camisa de força foi rasgada brutalmente. Asas negras surgiram por trás de suas costas e se abriram majestosamente como um veludo na escuridão. Matias subiu na sacada e pulou do trigésimo andar, voando para longe dali. Rubens observou o vulto enegrecido sumir no horizonte. O filho da mãe lhe escapara de novo. Mas não por muito tempo. Tinha que capturá-lo logo. No fundo ainda sentia pena dele, pois sabia como era dolorosa a adolescência vampírica. Já provara o gosto de ver todos que ama partirem. E Matias ainda estava passando por essa fase.

Em algum lugar a quilômetros dali, o rapaz deitou sob uma ponte de pedra que cruzava um rio imundo. Em meio a lixarada e ratos que corriam, o mesmo sonho estava em sua mente. Agora real e vívido. O seu nascimento. O nascimento de um monstro assassino. Ele podia se lembrar:

“Tudo estava confuso, distorcido e embaçado, num mar de fundo branco.

Vozes deturpadas ecoavam de lugares desconhecidos.

Vultos disformes se moviam ao redor.

Alguns deles se aproximavam.

E em seguida vinha a dor.”

Glaucio Viana
Enviado por Glaucio Viana em 07/06/2010
Reeditado em 07/06/2010
Código do texto: T2304509
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.