O quadro de Andolini

Tudo começou quando Alberto encontrou o quadro numa loja de antiguidades. Não hesitou em comprá-lo, estava encantado pela obra, e de qualquer modo o preço era uma ninharia. Tratava-se da reprodução de um artista italiano chamando Andolini, que, segundo o ancião proprietário da loja, tornou-se bastante popular internacionalmente por volta da década de setenta. O quadro trazia uma garotinha de cabelo loiro e cacheado usando um vestido branco e segurando algumas rosas na mão. Ela tinha a feição serena, como a das crianças, e embora estivesse num lugar escuro e desolador, não parecia temer a sua sorte, estava de pé no meio do nada, tranqüila, e segurando as suas rosas. Alberto não se sentiu atraído apenas pela beleza da jovem do quadro, mas também pelo atraente clima sombrio que ele sugeria, era de uma grande beleza mórbida. Jogou-o dentro da sua pasta e partiu pra casa.

Alberto sempre foi uma pessoa calma e incapaz de qualquer ato de perversidade. Quando adolescente nunca causou problemas aos pais, na universidade, houve alguns por conta da bebida, mas nada de grave, nada que nenhum jovem tolo não tenha feito entre seus dezoito e vinte e um anos. Mas o álcool ainda iria lhe convidar para um ultimo drink.

Há pouco mais de dois anos ele estava casado com Flávia. Era um perfeito companheiro, marido atencioso e dedicado, sentia muito amor pela esposa e esse amor era muito bem retribuído. Recentemente os dois haviam mudado para uma casa maior, bela casa, e naquela segunda feira Alberto trouxe para o lar o quadro de Andolini. Flávia não gostou dele, "como é mórbido", ela dizia, mas Alberto estava deslumbrado pelo quadro. Às vezes ele parecia perder-se no tempo admirando-o. Seus olhos divagavam na imensidão do escuro que envolvia a menininha loira e ele só voltava a si quando a voz de Flávia finalmente conseguia romper o seu estado de hipnose. Certo dia ele começou a ter problemas para dormir. Primeiro uma noite, depois duas; uma semana inteira, e finalmente comprovou a volta da sua velha insônia que não o afligia desde os tempos da universidade. De repente passou a ter sonhos estranhos. Seus poucos momentos de sono eram ocupados pelo mesmo sonho, a menina do quadro. Ela entrava em seu quarto e ficava parada diante dele, de pé, e com as rosas em suas mãos. Alberto não conseguia mexer-se, permanecia deitado, aos gritos tentava acordar a esposa que dormia ao seu lado, mas estava mudo, por mais que esperneasse não emitia nenhum som. Até que de repente ele acordava e tudo voltava ao normal. Tranqüilizava-se ouvindo a respiração de Flávia que serenamente dormia, e, sem poder ele voltar a dormir, aguardava impaciente o amanhecer sabendo que numa outra noite voltaria a ter o terrível sonho.

Depois dos pesadelos Alberto adquiriu certo receio do quadro. Passava por ele desconfiado e procurava manter-se a certa distância, mas por algum motivo não conseguia se livrar do objeto.

Passou-se um mês desde a chegada do quadro de Andolini e por volta desse período Alberto voltou a beber. Sua desculpa era que a bebida lhe ajudava a dormir, pois já não suportava a privação do sono que o afetava no desempenho da profissão. Aos poucos ele também já dava sinais de não ser mais um marido atencioso. Sentia que precisava com urgência de umas boas e longas horas de sono, a bebida o fazia dormir, porém dormia mal e acordava pior.

Um dia Flávia mostrou-se muito insatisfeita com a vida que eles estavam levando na nova casa. Ela dizia sentir um clima muito ruim no lugar, energias negativas, ela falava, e não estava gostando de ver Alberto de repente começar a beber tanto. Ela sugeriu uma nova vida, vender aquela casa e morar num outro lugar. Se livrar daquele quadro odioso que ele tanto passou a gostar também era necessário. Mas Alberto não deu atenção para o que a esposa dizia. Acreditava que ela estava com algum problema de adaptação e a cada dia que passava ele a achava mais irritante. Até que finalmente a convenceu a ficar por mais um tempo na casa e dar uma ultima chance para a nova vida. Foi o seu grande erro, deveria ter ouvido as queixas da esposa.

A bebida afetava cada vez mais a personalidade de Alberto e ele logo se tornou uma pessoa detestável. Primeiro foi demitido do emprego de professor de literatura, depois começou a ser agressivo em casa até que Flávia já não o suportava e finalmente o deixou. O quadro da menina loira ainda lhe causava um frio na espinha, pois vez ou outra a menina lhe fazia uma visita em sonhos, mas Alberto ainda não conseguia se livrar do quadro, ele o temia e o respeitava ao mesmo tempo.

Com a partida da esposa, Alberto aparentava ter perdido toda a sua autonomia. Passava o dia todo em casa bebendo, não sentia nada, não tinha vontade de fazer nada, era um ninguém e todos da vizinhança tinham-no esquecido, pois fazia um bom tempo que ele não era visto fora de casa.

Um dia, na casa de sua irmã, pois era ali que Flávia decidira morar por uns tempos, vagando pela internet, por acaso ela encontrou algumas informações curiosas a respeito de Andolini, o autor do quadro repugnante que o marido havia comprado tempos atrás. Certo que os sites por onde ela navegou não eram muito sérios, mas mesmo assim ela não deixou de dar atenção a tudo que ia encontrando sobre Andolini, e, quanto mais lia, sentia os pelos arrepiarem-se e a vista quase falhar por completo, estava tomada pelo horror. Segundo as fontes, Andolini vendeu muitos quadros na década de setenta e oitenta, mas antes disso ele não vendia nenhum e já beirava a miséria quando resolveu fazer um pacto com um demônio. Se levarmos em conta a sua lenda, o pintor vendeu a alma e em troca o demônio lhe deu uma terrível inspiração que definitivamente mudou sua sorte. Tornou-se bastante popular e seus novos quadros correram o mundo. Curiosamente todos eles traziam uma menininha loira de cabelo cacheado e que segurava algumas rosas na mão. Os sites afirmavam a existência de mensagens subliminares em todas as telas do pintor. Diziam ser possível encontrar figuras malignas escondidas nas paisagens sombrias onde se encontrava a garotinha, e que ela própria seria um demônio, provavelmente o que fizera o pacto com o Andolini. Flávia viu muitas imagens dos quadros feitos pelo artista maldito e entre elas encontrou a tela que Alberto havia comprado. A casa que possuir um desses quadros, afirmavam os sites, está sujeita a influências negativas que podem levar a um completo desastre. Muitas residências foram vitimas de um repentino incêndio, diziam os mesmos, e, no final, da casa nada se salvou, a não ser o quadro de Andolini que sempre permanecia intacto.

Flávia quase perdeu os sentidos depois de tais descobertas, estava assustada e aflita, e muito preocupada com Alberto. Compreendia agora que seu marido estava apenas sendo vítima de forças do mau e que precisava de ajuda antes que Algo de muito ruim lhe acontecesse. Imediatamente ela deixou a casa da irmã e foi em busca do seu grande amor.

A casa estava entregue aos ratos e baratas. Era visível a falta de faxina por semanas e o silêncio era absoluto. Flávia entrou muito cautelosamente e a primeira coisa onde pousou a visão foi no quadro que permanecia do mesmo jeito de antes, porém mais sombrio.

— Alberto! — Ela disse — Você está aqui?

Nenhuma resposta. Ela tentou acender a luz da sala, mas não funcionou, então, com a mesma cautela pela qual entrou, subiu o lance de escadas e foi em direção ao quarto onde dormia com o marido. Um som de passos, alguém sobe ligeiramente as escadas. Flávia se detém na porta do quarto e se vira. O seu susto é tamanho que só consegue ter tempo de arregalar os olhos e gritar.

— Aaaaaaaaaaaaaah! — Um machado divide o seu crânio em dois e em meio ao jorro de sangue ela desaba feito um boneco.

Alberto retira o machado do crânio de sua esposa e fica por um momento apreciando aquele horrendo espetáculo sangrento. O seu rosto parece um pouco mudado, está muito pálido e ossudo. Ele puxa um maço de cigarros do bolso e põe um deles na boca, acende e fuma, parece muito tranqüilo. Naquela noite houve um misterioso incêndio na residência, os bombeiros foram acionados, mas não puderam fazer muita coisa. As chamas ardiam com muita rapidez e intensidade, tudo foi destruído em pouquíssimo tempo. As autoridades atribuíram ao acontecimento homicídio seguido de suicídio. Alberto teria assassinado a esposa e depois incendiado a casa com ele próprio dentro, sua situação de alcoólatra certamente o havia motivado. No que sobrou da casa foram achados os seus corpos carbonizados. Na parede da sala de estar, no único espaço que curiosamente não foi tocado pelas chamas, estava intacto o quadro de Andolini, a garotinha loira segurava suas rosas e era a única que havia presenciado tudo o que se passou naquele lugar.

Fim

Maurício Ravel
Enviado por Maurício Ravel em 19/08/2010
Reeditado em 28/09/2010
Código do texto: T2447383
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