A Saga de Leanan & Scarecrow - conto 1- PENSAMENTOS DE SCARECROW

Do interior desse espantalho de trapos e palha, observo calado o sofrer daquela que tanto me importa. É curioso como nessas horas me pego a questionar minha condição, a condição dela e de todos os outros seres do universo não-humano.

Ela? Ah, sim...devo explicar: ela é minha doce Leanan Sidhe, alguém que somente por invadir meus pensamentos provoca-me lágrimas. Por isso seu sofrer tanto me afeta, vejo-a perdida em uma bruma de solidão, solidão em que ela não permite que eu entre e que a abrace. Ela sofre, e nada posso fazer, não dentro desse corpo.

Como vim parar aqui? Ah, eu ainda me lembro, sim...eu me lembro! Eu venho de muito tempo, nascido no momento da criação e, assim como meu ex-amigo e atualmente maior rival, Lúcifer, eu era aquilo que os cristãos humanos chamam de anjo. Na época eu tinha um nome, eu era Zaerhaerhael, já não me recordo se um trono ou querubim, faz muito tempo.

Eu estava lá no momento da rebelião, lembro-me que me posicionei ao lado do exército de Gabriel. Sim, sempre apreciei a luta. Com muito prazer eu vinha a este miserável plano para ceifar vidas. Muito daquilo que foi atribuído ao ‘veneno de deus’, Samael, foi realizado por mim. Eu agia nas sombras, mas foi com dor no coração que tive que lutar contra meus iguais. A ‘guerra no Céu’ foi um verdadeiro massacre...aqueles que pensam que anjos não podem morrer, ficariam aterrorizados com a crueldade usada por ambos os lados naquela batalha.

A guerra acabou e o exército de Lúcifer foi vencido. Foram todos banidos e, com o espaço vazio, Gabriel, Auriel, eu e muitos outros passamos a ocupar as altas hierarquias celestes. Quase houve outra revolta quando Deus escolheu Metatron para ser o novo ‘chefe’, mas isso foi rapidamente abafado quando houve farta distribuição de benesses entre a alta cúpula angélica.

O tempo passou, as coisas começaram a ficar enfadonhas. Um dia, deixei meus aposentos e comuniquei a Metatron que deixaria a Cidade Prateada, desejava vagar pelo universo e ter novas experiências. Gabriel fez o que pôde para que eu permanecesse, mas eu estava ávido por novos horizontes e parti. Infelizmente minha partida não foi bem recebida e, embora eu fosse livre para sair, jamais poderia voltar à Cidade Prateada. Meu vínculo estava terminado e, fosse onde fosse, estava sozinho.

Nunca fui de uma memória privilegiada, mas passei muito tempo vagando entre os planos e aprendendo, ensinando; tive muitas amantes e conheci o amor carnal. Como é de minha natureza, um dia isso tudo me cansou e eu parti para um novo local, que seria meu maior desafio...o Inferno! Não tive dificuldades em entrar - jamais alguém encontrará resistência para entrar no Inferno -, já para sair, não seria bem assim!

Lúcifer, claro, não ficou alheio à minha chegada, e me enviou um comitê de recepção. O que posso dizer é que o comitê retornou a ele aos poucos, um pedaço de cada vez.

Na Cidade Prateada, aprendemos a utilizar a energia do inimigo abatido, e uma vez que eu era um de seus guerreiros mais graduados, não tiver dificuldade em me fortalecer de meus inimigos. Em pouco tempo, eu tinha dentro do Inferno meu próprio séquito de demônios. Fui desafiado algumas vezes, e venci todas: Choronzon, Belial, Andrameleck, foram todos vencidos, só os poupei porque as regras de nossos combates eram claras - embora não pareça, existem regras e ética entre os demônios.

Meu poder no Inferno cresceu. Lúcifer, que até então não havia se aproximado, começou a ser vitimado por boatos que davam conta de que não resistiria a mim num combate, coisa que nunca se soube, pois tal combate não ocorreu. Ao invés disso, fui oficialmente aceito como um grande duque do Inferno, com meu próprio exército de demônios.

Eu não me importava com as torturas e não me intrometia nas maledicências contra a Cidade Prateada. Alguns desconfiavam que eu era um ‘espião’; eu apenas ria de tanta infantilidade. Meus objetivos eram muito pessoais, eu apenas queria fazer o que tinha vontade, e nem mesmo Lúcifer me impediria.

Mas eu estava satisfeito.

Um dia, o alto círculo infernal estava em polvorosa, algo havia acontecido. Depois de algumas perguntas, descobri que um alto servidor do Inferno na terra havia sido brutalmente assassinado por uma vampira. Eu sempre tive certa simpatia pelos vampiros, tive até mesmo um caso fugaz com Lilith. Muitas das técnicas dos vampiros foram ensinadas por anjos.

Dirigi-me ao centro da confusão e pude ver uma mulher, estava acorrentada. Keemahiah, uma mensageira, a arrastava enquanto os demônios menores lhe gritavam impropérios. Soube que, durante uma evocação demoníaca, a tal vampira saltou sobre o mago e bebeu seu sangue. A ira dos demônios evocados foi enorme, ela foi imediatamente arrastada ao Inferno para a condenação.

Lúcifer estava furioso, aparentemente aquele mago era uma peça importante no seu tabuleiro. Há algum tempo o Inferno vinha recrutando soldados valiosos, e não aqueles idiotas que caem facilmente na estúpida conversa de Choronzon. Eu, particularmente, sempre achei os humanos uma massa imbecilizada, não entendia porque Deus os amava tanto - talvez sentisse pena da pior de todas as suas criações - e não me importava sobremaneira com os insucessos do Inferno na terra; cuidava apenas de mim.

Enquanto Lúcifer e seus asseclas divertiam-se com as possibilidades de tortura, a curiosidade tomou conta de mim e tive que ver de perto quem era a tal mulher. Abandonei o círculo e fui até sua prisão. Ela estava sentada em um canto, seus cabelos eram longos, estava nua. Involuntariamente fiz um barulho; ela levantou a cabeça e olhou-me. Então, nossos olhos fixaram-se um no outro.

A única palavra que posso usar para descrever é...FASCINAÇÃO...aquele olhar me prendeu completamente. Passei horas ali, num diálogo mudo. Senti algo diferente e inusitado, e sabia que ela sentia o mesmo.

Deixei-a por um instante e voltei ao círculo, eles ainda estavam lá, muitos já completamente bêbados. Em voz alta comuniquei a todos que aquela vampira não seria tocada, e que estava sob minha responsabilidade.

Lúcifer olhou-me colérico, Azazel investiu contra mim, e foi rapidamente repelido, jamais fora bom guerreiro.

Brandi minha espada e disse que lutaria com todos, e que o faria ali mesmo.

Embora Lúcifer fosse o grande rei do Inferno, ele já conhecia minhas habilidades no combate - seu corpo ainda guardava algumas marcas da guerra no Céu – e ele não se arriscaria a perder a autoridade, sendo derrotado numa pendenga física. Mas como comandante habilidoso, sua sentença foi rápida: eu deveria deixar com ela o Inferno, estava banido.

Lúcifer ainda me garantiu que, enquanto eu estivesse ao seu lado, ela estaria segura; mas se por um único minuto eu me ausentasse, ou ainda se perecesse, o Inferno a recapturaria, e ela jamais sairia de lá.

Segurei nas mãos de Leanan e juntos deixamos o Inferno, indo para o único local onde ela poderia viver: o mundo dos humanos. Nos primeiros anos gozamos de um amor que jamais imaginei existir, mas minha constituição energética, infelizmente, cobrou seu preço.

Poucos sabem, mas tanto na Cidade Prateada quanto no Inferno, existe uma certa energia que alimenta constantemente os seus; não importa em que lugar do universo eles estejam, essa energia sempre está a preenchê-los.

No entanto, eu já não fazia mais parte nem de um, nem de outro.

Então, para nossa infelicidade, minha constituição física foi-se perdendo. Como uma fotografia que vai se apagando, o meu corpo perdeu-se. Graças ao seu conhecimento de magia, no entanto, Leanan colocou minha essência dentro de um velho espantalho.

Ainda posso me materializar em nível psíquico, dentro da mente das pessoas e, ali, posso me alimentar delas. Sim, grosso modo eu também me tornei um vampiro, pois sem a fonte do Inferno e do Céu, preciso da força psíquica dos humanos para não morrer. Mesmo nessas condições, Leanan ainda está segura, pois nenhum demônio, egrégora ou outra força externa ao mundo humano pode se aproximar. Eu poderia restituir minhas forças, e tanto a Cidade Prateada, quanto o Inferno, desejam minha morte.

Com isso, acabamos por criar uma interdependência: eu ajudo Leanan a se alimentar, e ela faz o mesmo por mim. Sem ela, eu já estaria morto. E sem mim, o Inferno virá buscá-la.

Essa é minha história.

E hoje, eu a vejo sofrer, vejo-a desejar ter nascido como todos os outros, vejo-a imersa na dor da solidão, e isso me dilacera. Mesmo em depressão, ela ainda me parece tão bela, tão fascinante...como eu gostaria de poder tocá-la.

Mas hoje ela não permite minha aproximação. Só posso contemplá-la, tentar entender seu rosto bonito, e rezar.

Rezar.

Rezar para que o Inferno, ou o Céu, jamais a tirem de mim.