A Saga de Leanan & Scarecrow - conto 4 - JACK

Na Londres das décadas de 1880/1890, jovens artistas reuniam-se na Julian Academy, fascinados pela obra de Gauguin, esses jovens foram chamados de Os Nabis, palavra de origem hebraica que significa “profetas”. O grupo, embora pequeno, gerou grande agitação, tendo ao seu redor algumas das intelectualidades da marginália local, poetas rebeldes e claro, muitas mulheres.

Foi esse ambiente de boemia regada a arte e grandes orgias etílicas que atraiu a atenção de Leanan Sidhe, que observava à distância toda aquela movimentação. Não tardou, a moça foi notada pelo mentor dos Nabis, o impetuoso Sérusier, que a abordou sem maiores pudores. Leanan, com um sorriso enigmático, aceitou sua corte, passou a freqüentar a academia, e não demorou para que logo fosse o maior objeto de desejo daqueles jovens e hormonais pintores.

Bonnard, Vuillard e todos os demais disputavam sua atenção, estudando a obra de Cézanne com afinco, após ouvir de Leanan que apreciava o trabalho do mestre. Leanan adorava aquilo. Sentia-se estimulada, embora por vezes a entediasse a falta de postura forte dos que a cercavam. Eram apenas artífices delirantes dos pincéis.

Junto a Bonnard e Vuillard, que tanto a cortejavam, estava Walter Sickert, que não pertencia aos Nabis, e embora influenciado por estes, preferia a independência. Walter Sickert possuía um espírito vivo e um ar de violência contida. Leanan rapidamente reparou naquele rapaz, que lhe retribuiu a atenção. Conversaram algumas vezes e, enquanto falavam, Leanan percebia o fascínio do jovem, que crescia rapidamente. Ela era uma fonte de inspiração! Desde que a conhecera, a arte do jovem pintor jamais foi a mesma. A visceralidade de seu pincel crescia e assustava aos mais conservadores. A bem da verdade, assustava ao próprio Walter.

As tardes no estúdio perdiam-se em devaneios luxuriosos, cada pincelada tinha a conotação da cópula desejada e inalcançada; isso o frustrava, fascinava e enlouquecia. Transtornado, o jovem procurava refugiar-se em deus e nas orações, com pouco sucesso. Via-se entrando num perigoso labirinto de paixões. Começou a sonhar com ela. Aquela que, durante as tardes, lhe fascinava sem maiores demonstrações, à noite entregava-se por inteiro. Os sonhos eram prazerosos, embora perturbadores. Lembrava-se, nas manhãs, das carícias voluptuosas, acompanhadas dos gritos de exorcismo de um estranho homem cuja aparência lembrava um daquele velhos espantalhos que vira em Arles.

Com o tempo, seus sonhos passaram a exibir somente aquele estranho homem, que lhe gritava disparates, que lhe afirmava estar lidando com o demônio em forma de mulher. Walter acordava assustado e rezava, por horas a fio.

Sua confusão só aumentava. Nas tardes, Leanan costumava aparecer no estúdio: linda, polida e sorridente... Como aquela criatura com ares tão divinais poderia ser um demônio?

Walter costumava contratar os serviços de algumas prostitutas, que posavam para seus quadros e eventualmente satisfaziam suas necessidades masculinas, e até mesmo nisso se via perseguido por aquele rosto. Não raro, suas mulheres lhe sorriam como ela. O mundo não lhe permitia mais pensar em outra coisa. Não havia outras mulheres, apenas ela, aquela ruiva de pele alva e olhos verdes. Gostava que ela invadisse seus pensamentos, seu trabalho, seu mundo. Mas com ela, vinha sempre aquele espantalho a lhe assombrar durante a noite. Ele invadia seus sonhos e os transformava em terríveis pesadelos, gritando impropérios e loucuras.

Leanan desapareceu. Os dias passaram, e Walter se desesperava. Precisava dela como um viciado necessita de sua droga. Caminhava sem rumo, como um cão à beira da loucura!

Foi numa viela qualquer que, tempos depois, ele a avistou. Ela lhe sorria, oferecia-se sem pudores. Sem pensar em nada, ele a acompanhou; cada movimento pélvico era a satisfação da conquista! Ela o olhava com desdém, uma insuportável indiferença. Walter procurava o amor naqueles olhos em vão. Quase podia ouvir sua gargalhada de escárnio. Enlouquecendo aos poucos, Walter copulava com mais violência, até perder o controle, perder a dignidade, e ver em suas mãos a responsabilidade pela vida que dela se esvaía.

E foi em 31 de agosto de 1888, na viela Buck’s Row, que um operário a caminho do trabalho encontrou o corpo de Polly – na verdade, Mary Anne Nichols - na calçada. A garganta havia sido cortada de uma orelha a outra; a lâmina havia penetrado até a coluna vertebral. O crime fora atribuído a uma gangue de exploradores de prostitutas.

Walter não poderia mais encontrar a paz, os gritos do espantalho noturno o desviavam do rumo da sanidade.

Dois dias depois, na mesma Buck’s Row, ele voltou a avistá-la, Leanan lhe sorria provocantemente mais uma vez. O ódio percorreu-lhe o corpo, e da mesma forma o fez o desejo. Já não sabia distinguir o que lhe movia. Dava-lhe imenso prazer seduzi-la, noite após noite, mas dilacerá-la também o satisfazia. Ninguém podia ser tão bela, nem tão sedutora, nem tão viciante. Estava dependente dela. Era além do que Walter podia suportar. Tirou mais uma vez a lâmina de dentro do casaco, encostando-a gentilmente na garganta da moça. Ela gemeu ao sentir o metal gelado encostar em sua pele. Num movimento firme e único, Walter rasgou-lhe o pescoço longo e fino, logo acima da fita de veludo preto, em que ela ostentava um vulgar camafeu dourado. Vendo o sangue que escorria pelo corpo da jovem, Walter sentir seu próprio sangue ferver. Nunca sentira algo assim. Era inspirador! O corpo de Annie Chapman foi encontrado, a cinco metros de Buck's Row. A cabeça estava praticamente separada do corpo, seus anéis e dinheiro estavam intocados.

O artista já não sabia se estava num pesadelo dantesco ou numa realidade cruel. As ruas lhe pareciam um purgatório selvagem, onde seres iam e vinham do inferno para lhe testar. Deixara a companhia dos amigos, tornara-se um ser sombrio, um espectro. Dia após dia, a imagem de Leanan tornava-se mais vívida. E a cada noite, o maldito espantalho continuava a lhe gritar sandices!

Quase um mês transcorreu desde que Walter a encontrara e matara naquela rua escura, mas ela tornara a atormentar-lhe a mente. O dia era 30 de setembro. Walter havia marcado um encontro com alguns artistas de seu grupo, e encaminhava-se para o café, mas a mais simples das atividades já lhe era penosa. Naquele dia, Leanan quase o enviara ao mundo da insanidade total ao manifestar-se duas vezes, impiedosamente!

Como era possível? Ele não sabia. Tinha certeza de ter-lhe rasgado a garganta por duas vezes há poucas semanas, mas ela insistia em reviver. Como uma gata, parecia ter muitas vidas. Quantas seriam necessárias para que ela lhe restabelecesse sua sanidade mental? Era Leanan que ele via naquele beco. Não entendia como, mas era ela. Linda, provocante, inspiradora. Despertava nele os desejos mais obscuros, os instintos mais selvagens. Queria vê-la sangrar, agonizar, pedir clemência. Queria vê-la debater-se e morrer. E assim o fez. O corpo de Elizabeth Stride foi encontrado, banhado por quase dois litros de sangue.

Mas Leanan tinha ressucitava, era sobrenatural, A lâmina ainda nem esfriara, viu-a surgir novamente em outra esquina. Naquela mesma noite, assassinou-a duas vezes. Catherine Eddowes foi encontrada horas mais tarde, de costas, e quase irreconhecível. A garganta estava cortada e um outro corte seguia do reto ao esterno. O corpo estava sem uma parte da orelha direita, e a extremidade do nariz também havia sido cortada.

A arte de Walter era sua única forma de gritar ao mundo o que se passava. Sua voz já não ecoava pelas ruas, sentia-se cansado, abatido; o ódio e desejo devoravam-lhe o corpo. As ruas eram seu refugio e campo de batalha. Ele não desejava encontrá-la, e simultaneamente ansiava por isso. Precisava amá-la ou matá-la, para que o maldito espantalho voltasse para o buraco infernal de onde devia ter escapado!

Noites etílicas e violentas, jogos, sodomia e brigas de bar, Walter consumia-se aos poucos. E como era de se esperar, em mais uma noite ela estava lá. E uma vez mais, Walter caminhou ao seu encontro...

Em 9 de novembro, o senhorio bateu à porta de uma das pensões em que tinha inquilinos. Na ausência de respostas, olhou pelo vidro da janela e avistou um corpo na cama e uma poça de sangue no chão. Era Mary Lane Kelly, a última vítima do Estripador. Como das outras vezes, a cabeça estava praticamente separada do resto do corpo e o rosto, irreconhecível.

Walter deixou-se tomar pela loucura, dominado por um ser que não ele próprio, um ser que debochava de sua condição: um indigente maligno, fraco, quase a capitular, clamando pela morte. Transitando como um fantasma pela Buck’s Row, bêbado, combalido ele caiu numa viela de joelhos e chorou, o frio a cortar-lhe a pele.

Inesperadamente uma carícia lhe trouxe um pouco de conforto, e seus olhos se abriram. Leanan, a mulher que ele tentas vezes matara estava aí, ajoelhada ao seu lado, ainda linda, ainda sorridente, carinhosa a oferecer-lhe um abraço.

Walter não desejava mais o confronto. Queria apenas sentir o gosto daquele abraço, viajar para longe dentro daquele sorriso. Baixando a guarda, deixou-se envolver, e antes de perder-se de vez naquele sonho entorpecedor, viu num canto escuro da viela a imagem daquele espantalho, que agora calava-se. Mas isso já não lhe importava.

Até hoje circulam as lendas sobre Walter, sobre a mulher que enlouqueceu o homem e alimentou o gênio, sobre o artista estripador, sobre o louco, tomado pelo demônio. A verdade? Ninguém sabe, cinco corpos femininos não podem falar. E o corpo masculino jamais foi encontrado.