O andarilho

Posto para vocês, o primeiro capítulo de um livro que estou desenvolvendo. Espero que gostem! Aceito críticas construtivas.

Era uma noite fria, do ano de 2004. Carlos estava na rua, sem um lugar para ficar, como em sua rotina habitual. Era um mendigo desde que se conhecia por gente. Havia nascido naquele meio, perdendo familiares e passando por terríveis humilhações, que lhe marcavam profundamente. Não conhecia um outro estilo de vida. O bem estar, era uma palavra que lhe faltava no seu dicionário da sobrevivência. Apesar dos sofrimentos, considerava-se um homem feliz, junto de sua birita, que o ajudava a passar por madrugadas intermináveis, em que se via sozinho, abandonado, a mercê dos ventos gélidos e da ação de marginais, que adoravam agredir pessoas como ele, para saciar o próprio e insano divertimento.

Caminhava lentamente, sob as luzes enfraquecidas dos postes, que ameaçavam apagar-se diante do poder da ventania, que os assolava de alto a baixo. Fazia tempo que exigiam uma troca, negada pelo prefeito da cidade, que apenas prometia, mas nada fazia pela população de Monte Santo, pequeno e pacato munícipio de Minas Gerais. Era um homem ganacioso, que se importava apenas com a boa vida que levava, sem preocupar-se em garantir o crescimento do local, que perecia por falta de desenvolvimento. A sua fazenda era mais importante do que qualquer outra coisa. Por esse motivo, haviam dezenas de maltrapilhos vagando sem rumo pelas ruas da cidade, perdidos no mundo, sem um objetivo de sucesso ou desejos financeiros, assim como o pobre Carlos, que buscava desesperadamente pelo local ideal para dormir.

E nessa busca ele continuou, insáciavel, com a esperança de livrar-se da temperatura extremamente baixa, que oriçava-lhe os pêlos do corpo como os de um gato enraivecido, preparado para o ataque. Mas nesse dia, Carlos estava com sorte. As suas andanças, acabaram por levá-lo a um velho casarão, símbolo dos tempos de prosperidade da cidade, mas que agora apodrecia ao relento, esperando pela reforma prometida pela prefeitura, que nunca ganhava um prazo definido para se concretizar. Carlos dirigiu-se a entrada da construção, olhando pelas janelas escuras, tentando enxergar algo que ali estivesse. Sem nada ter visto, decidiu adentrar a antiga residência, que com certeza, lhe serviria como um ótimo abrigo. Correria o risco de encontrar outros companheiros ali, que talvez não estivessem dispostos a recebê-lo, terminando por agredi-lo, mas Carlos não se importava com isso. O importante, era ter um lugar agradável para passar a noite. Ninguém seria capaz de impedi-lo de ficar ali. Lutaria bravamente, se fosse preciso.

Entrou por uma das janelas, que estava com o vidro totalmente partido, ameaçando os visitantes indesejados com a sua capacidade cortante e perigosa. Olhou para os lados, deparando-se com um imenso salão, completamente vazio, sem qualquer sinal de vida que pudesse importuná-lo. Haviam apenas alguns resíduos no chão, deixados por animais que ali passaram, o que dava ao lugar um cheiro podrido, parecido com o de uma tampa de esgoto aberta. Carlos não ligou para isso. Já havia fedido muito mais do que aquilo. O fato de ter encontrado uma proteção, lhe garantia uma felicidade tremenda, poucas vezes sentida em sua vida infeliz.

Deitou-se num dos cantos da sala, enrolando-se com o cobertor sujo que usava, que quase não o cobria mais, por conta do desgaste de anos que carregava. Apoiou a cabeça com as mãos, sentindo-se confortável, apesar de uma dor incômoda, que assolava a sua coluna, que nunca havia experimentado uma cama macia na vida. Fechou os olhos, esperando pela chegada do sono, que parecia não estar tão distante, relaxando-o aos poucos, ternamente, como uma mãe faz quando vai colocar o filho para dormir. Quando acreditava-se no mundo dos sonhos, foi acordado por uma voz angelical, que cantava uma canção maravilhosa, daquelas orquestradas por grandes maestros. Abriu os olhos, levantando-se de uma só vez. Ficou apenas escutando aquela música vinda dos céus, deliciando-se com o tom feminino da criatura, que parecia não estar longe. Atraído por aquele som abrandador, decidiu descobrir a sua origem.

Não sabia se estava sob o efeito de drogas, ou se havia bebido demasiadamente durante o dia. O fato, é que escutava uma mulher cantando, com uma voz tão doce, que os anjos tratariam de cortejá-la como uma verdadeira rainha. Carlos sentiu uma paz interna tão pura, que parecia que nunca havia possuído problemas. Parecia que estava prestes a ser levado para o paraíso, e que aquele canto anunciava a chegada de sua hora. Levado pela música, seguiu a sua trilha, atravessando as dezenas de corredores que compunham o imenso casarão, até chegar na entrada do porão, que tratava-se de um pequeno alçapão, aberto por escravos a centenas de anos atrás, quando o poderoso barão de Monte Santo, reinava absolutamente naquela região.

Observou as profundezas daquela passagem, sentindo um medo momentâneo, de uma ameça que ali estivese. Porém, a voz mais uma vez chegou aos seus ouvidos, afastando todos os seus anseios, encorajando-o a explorar aquele recanto abandonado. Desceu as escadas que levavam a passagem lentamente, tomando cuidado para não sofrer um acidente inesperado, por culpa do limo que impregnava os degraus. Alcançou o nível inferior, sendo engolido pela escuridão penetrante que ali reinava, capaz de atemorizar os mais valentes corações. Carlos só não amedrontou-se, por causa da canção que insistia em ressoar no comôdo, espalhando uma tranquilidade incomum, até prazerosa.

Carlos apalpou cada centímetro daquele lugar, para assim conseguir se equilibrar em meio ao breu impenetrável. Deu alguns passos vacilantes, como um cego que aventura-se em explorar um novo ambiente. A canção continuava, induzindo-o a prosseguir. A curiosidade tomava-lhe a razão, que no fundo, avisava-o de um provável perigo, que pudesse estar lhe esperando em algum canto daquela sala, pronto para lhe ferir maldosamente. Carlos tratou de afastar tais pensamentos, continuando a se movimentar, procurando pela localização da deusa que ali estava, chamando-o, clamando por sua compania.

De repente, uma claridade estranha incendiou o comôdo, iluminando cada ponto obscuro. Os olhos de Carlos marejaram, doendo por conta da luz intensa que os fatigava. Olhou para os lados, em busca do causador do inesperado fenômeno. Nada viu, apenas objetos esquecidos, utilizados há anos atrás, quando o casarão gozava de seu esplendor, em pleno periódo colonial. A iluminação fraquejou novamente, deixando Carlos novamente no escuro, que dessa vez, não era tão impenetrável, dando uma chance rara de se definir o que ali se encontrava. O coração de Carlos batia alucinadamente, por conta da repentina surpresa, sem explicação de ocorrência. O fato de não escutar mais a voz da misteriosa mulher, também o deixava exaltado, temendo por algo que ele mesmo não conhecia. Ele só sabia, que alguma coisa estava prestes a acontecer.

Um rosnado assustador tomou conta do lugar, abalando o espírito outroora valente de Carlos, que assemelhava-se agora, a uma garotinha assustada, ameaçada por um inseto de aparência repugnante, mas inofensivo. Um urro monstruoso ecoou pelo comôdo, fazendo Carlos pular de terror. Desesperado, tentou correr até a saída do porão, atemorizando-se ao perceber, que a sua entrada estava fechada. Bateu violentamente na superfície de madeira, em uma tentativa de abalá-la, para assim se libertar. Nada aconteceu. Apenas uma respiração animal se fazia ouvir, espalhando um fedor carniceiro pelo lugar, como o de uma criatura alimentada por carne podre, decomposta. Carlos esmurrou o alçapão com toda a força que possuia, aterrorizado por estar dividindo espaço com um ser desconhecido, ameaçador.

A criatura aproximou-se, espalhando um bafo quente, capaz de derreter qualquer material com o seu calor. Carlos afastou-se, encolhendo-se na parede, fazendo preces sem sentido, desesperadas. O ser chegou ainda mais perto, rosnando maldosamente, como se risse da situação desencorajadora de Carlos, que temia pela própria vida. Uma dor lacinante invadiu o seu peito, fazendo com que um líquido morno escorresse pelas suas vestes rasgadas, empapando-as de sangue. Carlos ajoelhou-se, oprimido pelo sofrimento pelo qual passava. A criatura gargalhou sinistramente, como uma besta dos infernos. Um som cortante rasgou o ar, sendo acompanhado pelo barulho do corpo de Carlos, que caia pesadamente ao chão, sem vida. Assim, o silêncio enfim perdurou.

Canhestro
Enviado por Canhestro em 22/09/2010
Código do texto: T2513658
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